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Entrevista
Luiz Sacilotto

Em entrevista exclusiva à Revista E, o artista plástico Luiz Sacilotto fala da
apropriação da arte pela televisão e prevê que a estética concreta está longe de conhecer seu fim

O artista plástico Luiz Sacilotto, considerado um dos principais expoentes da arte concreta brasileira, fala nesta entrevista exclusiva sobre a motivação de suas criações, contando a gênese de sua arte, além de avaliar seus companheiros de viagem pictórica. Sacilotto comenta o racha que originou o movimento neoconcreto, as histórias envolvendo disputas de poder no mundo artístico e de como a arte concreta acabou influenciando outros meios. Fala ainda dos painéis que realizou no recém-inaugurado Sesc Santo André, cidade onde nasceu e mora até hoje.
Qual foi a base de inspiração para os seus trabalhos criados para o Sesc Santo André?
Eles fazem parte de uma obra que já venho desenvolvendo. Quando me pediram um projeto, pensei em algo que agradasse o público, que tivesse o elemento surpresa, que parecesse uma coisa e fosse outra, que se revezasse. Os painéis, principalmente aquele que dá para o grande salão, são de um jeito à primeira vista mas depois se revertem. Há uma ambigüidade que constitui a essência da obra, algo que cada pessoa percebe de um jeito. Algumas olham e não percebem nada, outras percebem mais ou menos... Isso me interessa muito e parece-me que esse resultado foi obtido.
Como é criar uma obra "pública", no sentido de ela estar num lugar onde será vista, observada e admirada por muitos? É diferente de um quadro que vai para um museu ou para um colecionador particular? Como é a concepção de linguagem que deve ser aplicada, na sua opinião?
Não importa se faço uma obra pública ou para um museu. Quando exponho numa galeria, os colecionadores também vão e vêem. No caso do trabalho para o Sesc, a diferença é que se trata de uma obra que não será vendida. Mas a finalidade é a mesma: faço para agradar. Já tive umas dez experiências em escolas, nas quais eu levava material e começava a pintar. Na primeira vez foi uma algazarra terrível; na segunda, o barulho já tinha diminuído; na terceira, ouvi os suspiros de admiração das crianças; no final, elas queriam mais. Essa experiência foi a mais gratificante. Ou seja, devemos perceber que a nossa arte não deve ser feita apenas para o crítico, mas sim para todos, para quem entende e para quem não entende. Quando a TV Cultura esteve aqui, a entrevistadora perguntou para um senhor o que ele achava de uma escultura minha, localizada em uma das ruas de Santo André. O senhor olhou para ela admirado e respondeu "Ah, é uma escultura?! Acho fantástica!". Ele nem sabia que aquilo era uma escultura e muito menos de quem era.
Qual foi o estalo que o fez deixar de ser figurativo e passar para as figuras geométricas? Qual foi a inspiração?
Eu não acredito em inspiração. Era figurativo por causa da minha formação acadêmica, mas depois, na década de 1940 - quando não havia possibilidade de livre formação -, comecei a sentir que alguma coisa não estava certa. Por que copiar a natureza? Por mais que eu me esforçasse nunca seria igual. Então, um dia, desenhando enquanto estava ao telefone, fiz abstrações de forma inconsciente e isso me despertou uma grande vontade de fazer aquelas abstrações de forma consciente. Daí, aprimorei a técnica dentro da linguagem que eu queria. Minha profissão também me ajudou. Fui desenhista de arquitetura, depois desenhista de esquadrias metálicas. Na empresa, tinha acesso a retalhos de chapa de alumínio e comecei a pensar em fazer um trabalho com esse material. Cortava e juntava quadradinhos, fazendo grupos e subgrupos que formavam desenhos surpreendentes. Passei a fazer quadros concretos dentro desse mesmo princípio. Com o tempo, passei a produzir quadrados em relevos bidimensionais e fui crescendo, crescendo. Cada quadro me inspirava outro. Os quadradinhos e os triângulos foram crescendo como quadros; um deles, inclusive, pertence ao MAC (Museu de Arte Contemporânea). É um trabalho que apresenta vinte ou trinta retângulos em alumínio pintado de branco, postos com uma espécie de distanciador pintado de preto. Pensei nos círculos. Se há um círculo preto sobre uma superfície branca não há movimentação. Então, o que eu fiz? Fiz um pequeno corte no círculo, um ângulo de 15o, depois sobrepus outro círculo movimentando mais 15o e assim sucessivamente. Dessa forma, criei um movimento fabuloso no quadro, que chamei de Revolução. Para quem olha, parece que o quadro está se movendo, mas se trata de um rigor preciso do primeiro ao último elemento.
Esses quadros têm essa vibração até hoje. Além das formas, você também incorporou esse elemento. Isso foi procurado?
Os resultados são imprevisíveis. Eles sempre me surpreendem. É o inconsciente que faz isso, são efeitos incontroláveis.
É curioso como a sua arte funciona como uma pauta de música, basicamente geométrica e com vibração. A sua pintura ganha, assim, um caráter musical.
Pode ser. Não entendo muito de música, embora seja fanático por música de todas as épocas. Pode ser que o inconsciente pegue os timbres e as passagens da música. Quando ouço Beethoven, por exemplo, fico em estado de transe. Pode ser que haja esse reflexo involuntário.
Em que contexto se deram os seus primeiros trabalhos geométricos? Foi uma pesquisa solitária ou você já estava mantendo contato com artistas como Waldemar Cordeiro, por exemplo?
Nós tínhamos muito contato. Estávamos perfeitamente de acordo, mas ninguém sofreu influência do outro. Cada qual era livre. O Cordeiro e o Geraldo de Barros têm linguagens diferentes. Próximas porque são igualmente concretas, mas livres.
Quando você começou a chamar o seu trabalho de pintura concreta?
Em 1948; tenho um quadro adquirido pelo MAM (Museu de Arte Moderna) que é quase concreto. Não é concreto ainda porque as linhas e o motivo do quadro não concluem isso. Eu só começo a ter consciência de que um quadro é concreto a partir de 1950, quando a linguagem concreta rompe com a arte figurativa e passa a ser programada. Até então, os meus trabalhos não eram programados. Eu punha e tirava elementos. Se você fizer isso num quadro concreto, você o destrói.
Qual é a diferença entre a sua arte geométrica e a sua arte concreta?
Eu não faço distinção entre elas.
É interessante notar que o seu processo era de desconstrução e reconstrução da mesma imagem sob nova forma.
Eu não falaria em desconstrução. Não pretendo, de forma nenhuma, desmanchar o que já conhecemos. Quero apenas criar uma forma nova. Tenho verdadeira paixão pelos clássicos anteriores ao renascimento. Depois deles vieram o renascimento, o maneirismo, o impressionismo, o neoimpressionismo, o expressionismo e os grandes movimentos modernos. Respeito todos eles, não há nenhum que eu considere ultrapassado. Eles passaram porque suas épocas passaram. A arte concreta é praticamente um novo renascimento, que ainda vai durar muitos anos. Não há nenhuma possibilidade de destruição. O que está sendo feito e inventado é o mais importante na arte concreta. Isso vai aumentar até chegar a um limite, quando ela pode se transformar em outra coisa ou pode desaparecer.
Em geral, costuma-se dizer que as maiores inovações da arte concreta foram absorvidas pela publicidade. Você identifica aspectos do seu trabalho nessa área?
Não. Talvez a televisão no fundo no fundo tenha uma linguagem concreta. O Faustão e até mesmo o Ratinho - esculhambado como ele só - talvez tenham uma linguagem concreta. No cenário do programa Sai de Baixo há alguns quadros que lembram arte concreta. Não que a televisão esteja incorporando essa arte, ela está apenas aproveitando o que tem.
Vamos falar do seu grupo de parceiros aqui de São Paulo. Qual era o temperamento artístico de Geraldo de Barros e de Waldemar Cordeiro? Você já disse que cada um tinha a sua personalidade artística.
O Cordeiro era uma figura extraordinária. Ele nasceu na Itália (pai brasileiro e mãe italiana) e se formou em pintura numa escola de belas-artes. Escrevia muito bem e tinha jeito de líder. Qualquer discussão que houvesse, ele sobrepujava a todos. Era agressivo e essa era uma das suas qualidades. A arte concreta também foi culpa dele. Ninguém sabia o que ia acontecer quando formamos o grupo. Já o Geraldo era funcionário do Banco do Brasil. Era bem comportado, falava o necessário, depois trabalhou um pouco com propaganda. Não se pode nem comparar o temperamento dos dois.
Qual é a diferença entre arte concreta e arte neoconcreta?
Somente a terminologia. A arte neoconcreta não existe, ela é uma invenção do Ferreira Gullar. Pintávamos com as cores primárias, o branco e o preto. Gullar disse que éramos frios, que não éramos como os cariocas, que eram diferentes... Eu não vejo diferença nenhuma. O manifesto neoconcretista é uma palhaçada. Obra exclusiva do Gullar. Perceberam que Lígia Clark era muito boa, ela fazia uma série de quadros em preto e branco. Ela teve um período concreto comportado, assim como Hélio Oiticica. Mas Lígia começou a fazer arte sensorial, depois surgiram os bichos e ela começou a usar psicologia. Hélio Oiticica colocou aqueles caras para jogar bilhar... O que os parangolés tinham a ver com arte concreta?
Como você definiria os "parangolés" criados pelo Oiticica?
É uma besteira inventada por ele. Eu vi uma exposição na Casa das Rosas que tentava trazer a arte concreta paulista e carioca com um pessoal que fazia parangolés. Teve um negão que batucou por apenas uns quinze minutos. Hélio Oiticica é importante pelo que ele fez na arte concreta e não por outro motivo.
Dos seus colegas de viagem, quais, de fato, avançaram em termos de contribuição à arte?
Hércules Barsotti. Tenho muito respeito pela arte dele. Ele foi renegado num momento de ruptura, em 1952, porque o Cordeiro não se dava muito bem com Willys De Castro, que pintava com o Barsotti. Houve um clima de antipatia porque Willys não ficava quieto, respondia à altura e o Cordeiro não queria saber de concorrente. Por isso os dois se filiaram ao neoconcretismo do Rio de Janeiro.
Do seu grupo, você acha que o Barsotti foi quem foi mais além?
O mais fiel.
O mais original também?
Também.
Em que sentido?
Ele criou uma série de quadros com uma espécie de corte, mas que na verdade é uma parte pintada de preto. Isso dá um desequilíbrio muito sutil. Essa é a contribuição maior. Eu vi uma exposição dele muito interessante com uma série de quadros que iam do retângulo baixinho até um quadrado perfeito. Isso mostra uma grande dose de originalidade.
Nos anos de 1950, por causa da arte concreta, houve o predomínio do branco e do preto. Essas cores, casadas com as formas geométricas, representaram um choque dentro do que vinha sendo feito pelos modernistas. É uma contraposição muito forte.
Não tenho nada a ver com o que os outros fizeram, muito menos com o que já existia ou não. Para mim, o branco e o preto são cores. Os quadros que eu fiz em branco e preto poderiam ter sido feitos em azul. Só não fiz porque determinadas obras pediam um impacto maior, e o preto e o branco dão esse impacto. Para alguns serve, para outros não. Depende da forma.
Não era uma análise do contexto pictórico brasileiro, uma reação?
Não. Era o que era. Já pintei painéis em preto e branco e outros em vermelho e azul.
Em termos de influências internacionais, quais são as suas? Quais foram os pintores que o influenciaram?
Nenhum. Nada de Matisse nem Picasso. Mondrian? Poderia. Eu o acho fabuloso. Estudei muito a vida e a obra dele. Percebi que ele teve uma fase acadêmica, mas ao mesmo tempo livre. Depois, cresceu e pintou paisagens. Até vaquinhas. Só que tudo tem o seu valor. Foi em 1910-12 que ele se interessou pelas formas geométricas. Em 1915, começou a pintar um quadro quadrado.
Qual é o grande pintor brasileiro?
Volpi.
Você acha que o manifesto do seu grupo, Ruptura, ainda é válido?
Sim. Depois da invenção da máquina fotográfica não faz mais sentido pintar figuras. Mas a arte concreta caminha paralelamente. A figura não deve estar incorporada à pintura. Nem dissimulada, nem moderna. O próprio Picasso, se você analisar friamente, é um grande caricaturista.