Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Viver sozinho

“Preciso aprender a ser só”, diz a canção homônima dos compositores Marcos e Paulo Sérgio Valle, imortalizada por Elis Regina, na década de 1970. Além dessa, muitas letras, longas-metragens, livros, entre outras expressões artísticas, abordaram, de diferentes modos, a tal solidão como se fora a vilã da história. Mas estar só precisa ser um martírio? O fato é que quando há uma imposição a essa condição, o cenário é amedrontador. Agora, quando se trata de uma escolha, a solidão muda de nome. E como solitude transforma-se em opção: a escolha pela própria companhia em detrimento de outras. Poeta, ensaísta, jornalista e tradutor, Nelson Ascher desfaz a ideia de que este estado é inerente ao ser humano. “A solidão (...) é um problema essencialmente moderno. Os instintos que fazem de nós animais sociais são algo que a seleção darwiniana nitidamente favoreceu: a sobrevivência para qualquer indivíduo era muito mais difícil fora de um grupo”, reflete. No entanto, como lidar com esse problema contemporâneo? A psicóloga e psicanalista Helena Lima observa que “alguns recorrem à geladeira, outros ao bar ou às redes sociais”. E pondera, “o efeito de satisfação dura pouco e dá-se início a uma nova busca”. Afinal de contas, o que está por trás da solidão?

 

Carrossel Performático de Fyodor_Foto: Divulgação

 

Solitude versus solidão

HELENA LIMA


Nossa sofrida e complicada existência, na prática, apoia-se em três pilares: tempo, espaço, zelo pessoal. Como lidamos com nosso tempo? Como nos deslocamos pelo espaço físico? Que espaços virtuais criamos e orbitamos? Como cuidamos de nós mesmos? Nessas tarefas todas, como nos sentimos?

Em 1984, foi lançado o filme Um Rapaz Solitário (The Lonely Guy), de Arthur Hiller). Classificado como “comédia romântica”, ele traz, na forma de humor, cenas e situações absolutamente dolorosas para quem já viveu ou se sentiu solitário. Por exemplo: quando o protagonista (interpretado por Steve Martin) chega a um restaurante e pede “mesa para um”, todos do recinto ficam em choque. Um holofote ilumina apenas o rosto do ator enquanto o maître, estupefato, responde: “Mas... só pra um?”. Outra cena tragicômica acontece durante uma “festa”: o solitário protagonista aumenta o som da música e preenche a sala com grandes bonecos de papelão – todos voltados para a janela, contra a luz, de tal modo que as pessoas da rua, ao olhar para a janela, enxergam o que parece ser uma animada festa.

É fácil identificar-se com tais cenas, personagens e situações. No entanto, existe uma diferença entre estar numa multidão, numa relação a dois, num grupo, numa viagem, ou mesmo numa festa, e sentir-se sozinho e angustiado (“Angústia é o afeto que não engana”, disse o psicanalista Jacques Lacan), e estar em casa, lendo, escrevendo, planejando um passeio, ou mesmo viajando, mas se sentindo bem, disponível para si mesmo e para o mundo. Essa é a diferença entre a solidão (dolorosa) e a solitude (serena).

A solidão angustiante é marcada pelo tédio. Não importa onde, com quem, fazendo o quê. Aquele sentimento bate e não tem nome ou sobrenome. Está ali. Implacável. Alguns recorrem à geladeira, outros ao bar ou às redes sociais. O movimento, quase desesperado, é de sair daquele estado de espírito e se ocupar, ou melhor, preencher “um buraco”. Em geral, o efeito de satisfação dura pouco e dá-se início a uma nova busca. O tédio é a matriz de todas as más decisões que se toma na vida. É o tédio, em geral, que provoca as separações e os afastamentos.

Já a solitude, ou a alegria de cuidar de si, a possibilidade de estar com alguém em especial, ou com os outros, a vontade e a disposição para ir e vir, tem outra cor. Posso morar sozinho, não ter um carro, mas me deslocar pela cidade, pelo país e pelo mundo, aberto às possibilidades. Posso estar em boa companhia, posso ouvir música. Solitude é poder, enquanto solidão é dever. E, em geral, solidão é estar sempre em dívida.

A ESCOLHA É SUA

Curiosamente, solitude não é uma palavra muito popular. Quase não a lemos ou ouvimos. É uma palavra silenciosa. A tarefa de cuidar de si é, sem dúvida, a tarefa mais complicada que precisamos realizar na vida. Cuidar do corpo, da alimentação, da limpeza, do que vestimos, das alterações que percebemos. Cuidar das dores visíveis e das invisíveis. Trabalhar, estudar, produzir, construir. Dar conta das atividades, dos projetos inacabados. No entanto, no atual contexto, tornou-se imperativo executar todas essas ações de maneira feliz e ainda ser bem-sucedido no trabalho, nas amizades e nas relações amorosas.

Ou seja, resta pouco espaço ao sofrimento, ao “estar só”, à angústia da solidão. Até porque, nos mínimos espaços em que os sentimentos difíceis aparecem, sempre há um “remedinho”, uma compra a fazer, um dízimo a pagar, alguma coisa “a ser feita”. Viver é trabalhoso. Ou melhor: dá trabalho cuidar de si mesmo.
E como não há curso que nos ensine isso, em geral, atribuímos a outros essa árdua tarefa. Terceirizam-se especialistas, remédios e líderes religiosos. Se der certo, comemora-se. Mas, se der errado,  a culpa é sempre do outro. Então, como sair desse círculo vicioso? O psicanalista Sigmund Freud tinha uma frase: “Qual sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?”. Ou seja, nesse buraco onde você entrou e de onde você se vê, qual foi sua participação para cavá-lo? Porque a solidão pode ser a contrapartida de uma aposta que deu errado.

PERDAS E GANHOS

Sentir-se só junto a alguém com quem se dividem lençóis pode ser uma das piores experiências do ser humano. Fica fácil culpar o outro: “Fiz tudo por ele ou por ela”. Fazer tudo pelo outro pode ser uma forma de querer enganar a solidão. Responder por seus atos e escolhas parece tarefa simples, mas não é. Muito mais fácil atribuir ao outro, ao demônio, à inflação, ao país.

Estar só implica sentir-se capaz, livre, em movimento. Dono da possibilidade de estar aqui e ali, com ou sem outras pessoas. A solidão é a armadilha de uma prisão cujas grades foram também erguidas por escolhas e apostas. Sair da solidão e construir sua própria solitude é estar só e bem. Depende de autoconhecimento, de alguma dose de humor e alegria. Acima de tudo, depende de saber de si e de não delegar essa tarefa a outros.

 

ESTAR SÓ IMPLICA SENTIR-SE CAPAZ, LIVRE, EM MOVIMENTO. DONO DA POSSIBILIDADE DE ESTAR AQUI E ALI, COM OU SEM OUTRAS PESSOAS

 

Quando perdemos alguém que amamos muito, por separação ou por morte, nem sempre ficamos solitários. Porém, há que se ficar consigo para poder elaborar o luto, cuidar das feridas e seguir em frente. Estar consigo pode ser uma experiência de solidão insuportável, como também pode ser usufruir da melhor companhia.

Como psicanalista, acompanhei muitas pessoas em sofrimento agudo: diagnósticos de doenças graves, mortes de pessoas amadas, separações, perdas de emprego. Em geral, chegavam (e chegam) com tanta dor que mal conseguem dar nome ao que sentem. Como paciente, também já me deparei com meus próprios sofrimentos.

Nessas situações, há um esforço para identificar possibilidades de integração do sofrimento, de redes de apoio e de suporte. Sem aguardar uma resolução mágica, nem culpar outros pelo que se está passando, mas enxergando sua responsabilidade em jogo. A boa companhia estimula um autocuidado e ela pode ser a gente mesmo. Reconhecer a cada dia o próprio estado de espírito já é um grande passo para o zelo pessoal.

 

HELENA LIMA é psicanalista, bióloga e psicóloga, consultora da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) nas áreas de Aids, drogas e tuberculose. Autora de Nem Tudo É Doença (Iglu Editora, 2010), entre outros livros.

 

Foto: Divulgação

Solidão: um problema moderno

NELSON ASCHER


A solidão, o isolamento prático, psíquico e existencial de cada vez mais indivíduos é um problema essencialmente moderno. Só pode ser um problema moderno, pois, quanto mais recuamos no tempo, essa solidão e isolamento tornam-se raros e inviáveis. Os instintos que fazem de nós animais sociais são algo que a seleção darwiniana nitidamente favoreceu: a sobrevivência para qualquer indivíduo era muito mais difícil fora de um grupo.

Não é só que a reprodução da espécie impunha o convívio e a cooperação. Aliás, nossa reprodução é a única, entre os mamíferos, que coloca no mundo um filhote praticamente pronto e acabado, mas indefeso e incapaz até de se alimentar por conta própria. A partir dessa condição de convívio, a sobrevivência da espécie assistiu a sua escalada rumo ao topo da cadeia alimentar. Algo que é, nada mais, nada menos, o principal instrumento de praticamente toda colaboração entre seus membros individuais.

A VIDA EM TRIBO

Desde o começo, a complexidade – que só cresce exponencialmente – da vida humana é tamanha que se faz necessário esclarecer de onde partimos e, mais ou menos, aonde chegamos até o momento quando falamos de solidão. Há cerca de dois séculos, a humanidade alcançou dez dígitos. Ou seja, a população de seres humanos do planeta chegou a seu primeiro bilhão. Foi o cume de um processo recente e vertiginoso desencadeado há dez ou 12 milênios, quando ocorreu a Revolução Neolítica. Esse período levou uma parcela crescente de caçadores nômades (nossos ancestrais) a adotar um modo de vida sedentário, baseado na recém-descoberta, ou recém-inventada, agricultura e pecuária.

Tal modo de vida permitiu rapidamente que, após dezenas de milênios, nossa espécie, cuja população permanecera escassa e estática desde seu surgimento, crescesse e se multiplicasse, como mandavam as escrituras sagradas judaico-cristãs e de outras religiões que se constituíram nesse período.

O homo sapiens tem algo em torno de 200 mil anos, e passou 190 mil deles vivendo em tribos de 100 a 150 pessoas (de fato uma família extensa ou clã), preferencialmente isoladas de todas as demais tribos. Como não se produziam as calorias que se consumiam, convinha à humanidade não crescer para além da capacidade que os diversos habitats tinham de sustentá-la.


NOSSA IDEIA DE LIBERDADE, SOBRETUDO COMO AUTONOMIA INDIVIDUAL, SOARIA ININTELIGÍVEL AO OLHAR DE NOSSOS ANTEPASSADOS. E MESMO O CONCEITO DE
SOLIDÃO NÃO SERIA COMPREENDIDO NEM HÁ CINCO MIL NEM HÁ 50 MIL ANOS

 

Assim, nessa fase, supõe-se que o tamanho da população, no planeta inteiro, não tenha ultrapassado os 10 milhões de indivíduos. Até que, de súbito, passamos a produzir mais calorias ao ingressar no neolítico – dez mil ou 12 mil anos atrás – e nos multiplicamos. É verdade que o preço desse crescimento foi uma acentuada queda na qualidade e expectativa de vida. Vale dizer: havia bem mais gente do que antes, mas vivia-se em piores condições e por menos tempo.

O bilhão a que chegamos há dois séculos estava em toda parte sujeito à miséria, fome, desastres naturais e epidemias. Tanto que da Revolução Neolítica até a consolidação da Revolução Industrial, no século 20, a grande maioria de óbitos se deu por causa de moléstias infecciosas, despotismo e escravidão.
Tampouco existiu, enquanto vivemos como caçadores, nada que hoje reconheceríamos como privacidade. Ou, mais especificamente, como a vida privada, que se contrapõe ou, ao menos, distingue-se da vida pública. Trata-se de coisas que surgiram e se consolidaram devagar. Sendo assim, nossa ideia de liberdade, sobretudo como autonomia individual, soaria ininteligível ao olhar de nossos antepassados. E mesmo o conceito de solidão não seria compreendido nem há cinco mil nem há 50 mil anos.

A SOLIDÃO DEVORA

Parece um paradoxo: quanto maior a população e quanto mais emaranhadas as relações entre os indivíduos, maiores eram as oportunidades para certos tipos de solidão. Enquanto para alguns trata-se de uma preferência, para outros tornou-se uma imposição dolorosa.

Numa metrópole paradigmaticamente moderna, como Paris, a maior parte das unidades residenciais é ocupada por um único morador. Muitos são idosos enviuvados, ou separados, cuja prole, quando há, mantém relações superficiais e inconstantes. O significado desse contexto foi trágico no verão de 2003. Uma onda de calor matou 15 mil pessoas das quais a absoluta maioria era de idosos solitários que habitavam andares superiores de antigos edifícios, sem elevador, e com mobilidade reduzida. Eles não tinham a quem recorrer quando a temperatura elevada passou a ameaçar suas vidas.

Os serviços de emergência, sobrecarregados, não deram conta do problema. O mais trágico, no entanto, foi o seguinte: muitos deles tinham filhos adultos. Porém, como era o ápice do verão – e das férias –, as vítimas não puderam ser rapidamente sepultadas, pois os primogênitos optaram por não interromper suas respectivas viagens. Aqui verificamos outra raiz daquilo que os tipos modernos de solidão possuem tanto de bom quanto de ruim: a ampliação da autonomia individual, do grau mais avançado de liberdade que se conquistou até hoje. O que só prova, como se necessário fosse, que muito do que torna a vida digna e satisfatória pode também, em outros momentos e/ou sob condições diferentes, gerar formas inéditas de solidão.

Seja como for, milênios de criação e aperfeiçoamento de tais e quais recursos de sobrevivência permitiram o que seria quase impensável nas nossas primeiras dezenas de milênios de existência: viver sozinho. Claro que ninguém vive exatamente sozinho. Vive-se de fato sozinho no meio de uma multidão com a qual cada indivíduo interage de infinitas maneiras.

NELSON ASCHER é poeta, ensaísta, crítico, jornalista e tradutor. Autor de O Sonho da Razão (Editora 34, 1993), Algo de Sol (Editora 34, 1996) e Parte Alguma (Companhia das Letras, 2005), entre outros livros.


 

:: @sescrevistae | facebook, twitter, instagram