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Entrevista
Paulo Vanzolini

Em entrevista exclusiva à Revista E, o biólogo e compositor fala de sua paixão pela Amazônia e relembra a época em que compôs "Ronda", um dos grandes sucessos da música brasileira

Música e biologia convergem harmoniosamente nas palavras de quem entende do traçado. Aos 77 anos, Paulo Vanzolini, hoje em dia muito mais zoólogo do que compositor, fala com a tranquilidade que só a experiência traz. Na bagagem, dezenas de viagens à Amazônia, uma relação honesta e lúcida com os índios e a autoria de um dos recordes de intrepretação na música popular brasileira, a canção "Ronda" – "muito piegas", segundo ele. Na entrevista a seguir, Vanzolini é direto e objetivo nas respostas. "ONG é coisa de analfabeto", "perdi a vontade de compor" e "a solução para os índios é colocá-los em zoológicos".

Você já viajou dezenas de vezes para a Amazônia, não é mesmo?

Já viajei para o Brasil inteiro. Trabalhei em todos os estados. Só não trabalhei muito em Santa Catarina e Rio Grande do Sul porque estão fora do trópico. Mas já trabalhei muito no Brasil Central, na Amazônia e no Nordeste.

Eu li uma vez que só para a Amazônia você já tinha viajado mais de cinqüenta vezes...

Não tenho idade para isso... Fui umas 25, 30 vezes. Deram mais ou menos uns 12 mil km de rio. No tempo que tínhamos barco, mas os militares tomaram nosso barco. Tínhamos barco na Amazônia, então a gente entrava de barco, que é o jeito na Amazônia. A última vez que fizemos a conta deram de 11 a 12 mil km de rio.

Como é uma expedição?

É a coisa mais linda do mundo. Há um barco com uma tripulação treinada que se separa em pequenos núcleos. Todos tomam conhecimento das picadas que já existem, pegam o bote para os trechos de rio e compram os animais da população local. É necessário levar muito dinheiro trocado.

Você lembra qual foi o bicho mais caro que você já comprou?

Não, porque não se pode ensinar às pessoas a diferença entre um bicho bom e um ruim; não se pode fazer um diferencial de preço porque elas se sentem discriminadas. Era assim: uma lagartixa pelo preço de um picolé e uma cobra pelo preço de uma cerveja. Mas o problema era que as pessoas não sabiam se haviam capturado algo bom ou ruim, principalmente em relação aos répteis; já com os mamíferos era diferente, elas conheciam.

Em todos esses anos de viagem, algo mudou em relação à pesquisa?

Pesquisa é uma questão de rotina bem feita. Fico meio chateado quando falam da aventura da expedição. Expedição que acaba em aventura é malfeita. A expedição competente acontece para pegar o bicho; além disso, ninguém fica doente, ninguém se machuca, ninguém passa fome. Os profissionais pegam os bichos e fazem as observações. Isso é uma boa expedição. As pessoas sabem para onde estão indo, elas têm prática. O resto é coisa de televisão.

Como você analisa a extinção das espécies?

A extinção é um fato biológico. Se nada se extinguir, não haverá lugar para todas as espécies. Além disso, o homem precisa de espaço. Estupidez é exterminar a natureza. A Amazônia, por exemplo, deveriam trancar a porta e perder a chave. Não há nada que se possa fazer com ela que renda dinheiro; se houvesse, como se poderia impedir? As pessoas precisam dar comida aos seus filhos. A fonte de renda do caboclo, por exemplo, é vender couro de bicho. Fora isso, o que ele tem para viver? Um quilo de farinha, meia dúzia de peixe... Você vai dizer a ele que vender couro de tamanduá ou veado é ilegal? Vai negar a ele o direito de viver? Existe o direito da natureza, mas também existe o direito do homem. Ninguém quer exterminar, ninguém quer liquidar e jogar fora, mas todos têm direito ao mínimo. A sorte é que o peixe não acaba, apesar da quantidade estar diminuindo. A pesca no rio Amazonas está começando a ficar mais difícil, o barco vai cada vez mais longe para poder voltar cheio.

Você acredita em desenvolvimento sustentável na Amazônia?

Não. Isso é uma bobagem! Quando a qualidade de vida melhora, a densidade populacional aumenta, o que provoca o declínio na qualidade de vida. Vivemos nessa gangorra.

Ou seja, vendo por esse ângulo, nós é que atrapalhamos...

Exatamente. O meio ambiente pode suportar uma certa quantidade de pessoas. É um conceito primário em ecologia, chama-se "carring capacity" (capacidade de suporte do ecossistema). Cada ecossistema agüenta uma certa quantidade de carga em cima dele.

Há pessoas que acreditam num tipo de economia "saudável" dentro da Amazônia. Você acha isso possível; por exemplo, prisma ecológico dentro da Amazônia?

Tudo o que é viável existe, o que não existe é porque não é viável. Todos estão sempre experimentando, sempre tentando. Darwin já descobriu isso. A natureza está mudando porque a população humana está crescendo. Isso não tem jeito. Inclusive quem decide é o povo que quer comer.

Diz-se que o Brasil não permite a pesquisa e a análise de sua biodiversidade para o desenvolvimento de remédios e que, em função dessa proibição, acontecem roubos...

Essa é a maior bobagem que eu já ouvi na minha vida. Sabe onde os pesquisadores estão indo atrás de novas drogas? No fundo do mar. Procurar somente na floresta tropical já é coisa do passado.

Mas ainda se vêem pessoas sendo presas com plantas...

Isso é tolice. O que elas roubam são pedras semipreciosas e peixes ornamentais. Mas biodiversidade, plantas e outras coisas, isso é uma bobagem, uma fantasia.

Em que estágio está a exploração da Amazônia? Quanto ela está rendendo?

Já tiraram quase tudo dela. Atualmente ela está rendendo pouco.

Então a história de que a Amazônia vale milhões e milhões é conversa de pesquisador?

Sim, mas o ponto de vista que vale não é o meu, vale o de quem ganha dinheiro fazendo isso. E se não tem ninguém fazendo mais nada é porque o negócio não está mais dando dinheiro. Atualmente, as pessoas estão indo para o fundo do mar.

Têm-se conseguido resultados melhores do que os obtidos com a floresta tropical?

Não existe uma avaliação sobre isso.

Quando você ouve naturalistas, ou pessoas ligadas a essa área, dizendo que deveríamos abandonar a alopatia e voltar para o uso de plantas medicinais, da época dos índios, você acha isso uma bobagem?

Um pouco. Muitas plantas são usadas. Isso é verdadeiro, mas não na quantidade e da maneira como as pessoas imaginam. Acho muito engraçado falar em drogas naturais. Todas as drogas começaram como um produto natural. Se você pegar qualquer receita, verá que todas têm sempre um "ingrediente" natural, uma planta, um chá. É o caso da Ralvopia, por exemplo, uma raiz, famosa na Índia, na medicina popular, por amansar loucos. O governo da Índia, que tem muita crença na medicina popular, começou a testar essa raiz. Descobriram que a Ralvopia não era boa para tratar louco, mas era boa para controlar a pressão arterial. Investiram muito nessa pesquisa e acabaram descobrindo que ela não era boa para pressão arterial e sim para amansar louco mesmo. Agora, quanto a nós aqui no Brasil, o que temos? Meia dúzia de alucinógenos? Os índios é que entendem bem de ervas medicinais.

Em relação aos índios, há solução para o problema deles?

Eu me dou muito bem com os índios. Mas não há como prepará-los para a civilização e não há como deixá-los fora dela. O único projeto bem-sucedido feito para o índio no Brasil é o parque do Xingu. Porém, se prestarmos atenção, perceberemos que ele é uma jaula. Eu trabalhei muito no Xingu. O cacique Raoni era um cara genial. Eu o conheci quando ele tinha apenas 9 anos de idade, e ele já era criado para ser um grande chefe. Mencionei o Xingu justamente para dizer que se há solução, a solução é essa: o jardim zoológico.

No caso dos Yanomami, embora lhes tenha sido reservada uma boa extensão de terra, ainda há muita disputa?

O problema dos Yanomami é muito sério. Primeiro porque a cultura deles é baseada em assassinato. Os Yanomami não têm caminho. Eles são muito complicados. Em segundo lugar, quem é o vizinho do Yanomami? É a criatura mais desprezível do mundo, o garimpeiro. Se fosse para matar alguém, que fosse o garimpeiro. É de perder o sono pensar no que os garimpeiros fizeram com os Yanomami, em como alguém pode ter sido tão cruel, estúpido, brutal e desumano.

Qual é a sua opinião sobre as ONGs?

Para mim, as ONGs são coisa de analfabetos e frustrados com delírios de poder: "Eu embarguei essa obra", "Eu impedi essa estrada", "Eu acabei com essa represa". Se eu pudesse ter o Brasil de 1500, seria mais feliz. Mas a realidade é que existe uma densidade populacional que deixa muitos morrerem de fome. Isso vai contra o espírito humano. Além disso, se você tiver um indivíduo honesto, medíocre e recalcado e der uma causa para ele, ele funda uma ONG e ninguém mais o segura.

Para o seu trabalho, qual foi a região mais rica que você visitou?

Todas. Amazônia, Nordeste, Brasil Central... Eu conheço o Nordeste como o fundo do meu bolso. Se você quiser saber como faz para ir de tal lugar para tal lugar, é só falar.

Agora, abordando o seu lado compositor. Eu soube que você não está mais compondo, isso é verdade?

Eu parei. Perdi a vontade. Nunca fiz carreira de compositor, compunha para me divertir, mas agora já não tem mais tanta graça. O biólogo tem muitas vantagens porque ele entende o ciclo vital. Uma hora você fica velho. É normal. Acho até que nem faria mais coisas de qualidade em música.

Quando você fala de ciclo, tem relação com envelhecimento?

Tem. Para mim ser compositor é muito trabalhoso, você fica remoendo, leva meses para fazer um trabalho.

Você não gosta de "Ronda"?

"Ronda" é muito piegas. É um pequeno golpe, na verdade. Parece que a personagem da música procura a outra pessoa para amar, mas vai se encontrar para dar um tiro nela. O mais engraçado de "Ronda" é que eu acho coisa de meretriz. Fiz "Ronda" em 1945, quando estava no Exército patrulhando. É uma música fácil, que tem essa surpresa. Roberta Miranda me contou que uma vez ela teve de cantar essa música dezoito vezes num bar. Se você vai a um show, todos cantam junto.

É uma espécie de hino da cidade.

É verdade. Eu encontro gente na rua que fala que é o hino nacional. O japonês me pára na fila para dizer que é o hino nacional dele.

Você acha que a música brasileira vem se modificando nos últimos tempos?

Vou fazer a antologia da minha vida para gravar minhas músicas como eu as fiz. O samba não está nas mãos de bons artistas, ele está nas mãos de comerciantes. E isso leva qualquer coisa para a ruína. Por que o samba era bom? Porque ninguém fazia samba por dinheiro.

As pessoas costumam dizer que você e Adoniran são o retrato da música paulista. O que você acha dele?

Adoniran tem uma música que começa assim: "Inês ia comprar pavio para lampião". Se você escrever cinco volumes sobre a periferia, não irá conseguir defini-la melhor do que dizendo que alguém na cidade de São Paulo precisa comprar pavio para lampião. O poder de síntese de Adoniran era fabuloso. As vinhetas eram maravilhosas. Ele era muito inteligente, muito sofredor.