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O festival internacional SP Rima com Paz encerra a programação de hip hop do Sesc em 2001, e abre a discussão sobre os rumos da produção nacional do gênero

Final da década de 1960. A sociedade norte-americana vivia uma situação especialmente delicada. Grandes derrotas na Guerra do Vietnã, a morte de Martin Luther King, a radicalização de diversos movimentos civis e uma onda de conflitos inter-raciais tomavam os noticiários e as atenções do país. Foi nesse cenário que Africa Bambaataa, um jovem negro que vivia nas violentas ruas do Bronx, em Nova York, propôs uma nova forma de confronto entre os integrantes das gangues de rua: o embate artístico. Em vez do uso da força e das armas, duelos de break. Assim nasceu o hip hop, termo criado por Bambaataa para designar esses encontros. A nova dança refletia o momento histórico do país. Os movimentos remetiam principalmente à Guerra do Vietnã, aos jovens feridos ou mortos e às máquinas usadas no confronto.

Na técnica do DJ jamaicano Kool Herc, Bambaataa foi buscar elementos para compor um novo estilo musical. Além de um peculiar manuseio de toca-discos para compor músicas, Herc trazia da Jamaica saudações para animar os bailes e incentivar a dança. Outra figura importante para o movimento que surgia foi o DJ Grandmasterflash, que aprimorou as técnicas existentes e desenvolveu outras.

No momento em que Bambaataa percebeu o potencial mobilizador do movimento, sua capacidade de agregar centenas de jovens em torno de uma celebração artística, decidiu começar a compor letras de caráter pacifista, que estimulavam a auto-estima dos jovens negros e denunciavam a exclusão a que eram submetidos. Surgia o rap, a manifestação musical do hip hop.

No Brasil, os ecos do movimento começaram a chegar no início dos anos 1980, por intermédio de equipes de baile, discos e revistas importadas. Segundo o antropólogo Marco Aurélio Paz Tella, foi através do estilo criado por Bambaataa que muitos jovens que vieram a se tornar rappers entraram em contato com a cultura negra. "Eles viam figuras como Malcom X nos clips que passavam na televisão e procuravam saber quem ele era e o que dizia. Na maioria das entrevistas que recolhi para minha tese de mestrado (Atitude, arte, cultura e auto-conhecimento: o rap como voz da periferia, PUC-SP, 2000), os rappers afirmavam não ter nenhum contato anterior com a tradição cultural negra. Eles estabeleceram os primeiros contatos com esse movimento político e cultural através do rap norte-americano. Isso os incentivou a buscar também referências brasileiras. E aí encontraram uma riqueza tremenda", afirma.

Preconceitos

Uma das críticas mais recorrentes quando se trata de rap é tachar as músicas nacionais do gênero como cópias das norte-americanas. O que seria natural, dado que a origem do rap vem dos EUA, foi usado de modo a desclassificar o movimento no Brasil. Ninguém estranharia que o samba no Japão tivesse referências claras de música brasileira, mas no país do samba o rap não foi acolhido de maneira muito receptiva. "As coisas, quando começam, surgem como uma certa imitação. A originalidade vem surgindo com o tempo. E esse é um processo que está acontecendo no Brasil", argumenta Marco Aurélio.

Porém, desde os primórdios do movimento no Brasil, é inegável que havia características nacionais, já que faz parte do gênero um discurso que trata das realidades locais, do cotidiano das periferias e das dificuldades por que passam os jovens pobres de grandes cidades como São Paulo. "O hip hop é uma cultura de caráter metropolitano, cheio de referências cosmopolitas. A identificação com o rap americano ocorre não só porque o ritmo veio de lá. Talvez a proximidade mais forte se dê pela identificação social", afirma Janaina Rocha, uma das autoras do recém-lançado livro-reportagem Hip Hop: a periferia grita. "O hip hop é uma cultura que se espalhou pelo mundo justamente porque existe uma força social que torna semelhantes sujeitos que vivem nos Estados Unidos, na França, no México ou no Brasil." "Os rappers fazem um fazem um raio X da cidade, de seu bairro, de sua favela, de seu morro", retoma Marco Aurélio. "E aí surgem temas como a violência e o tráfico de drogas. Mas em nenhum momento eles fazem apologia a isso. Pelo contrário. De maneira geral, o discurso prega que, se o jovem conseguir ficar longe desses problemas que eles conhecem tão de perto, eles serão vitoriosos", afirma, fazendo referência a outro estigma que acompanha o movimento no país.

Segundo os integrantes do grupo OS + NÃO (dois jornalistas e músicos que ocultam sua identidade em um nome que alude às assinaturas dos grafites, outra expressão artística do hip hop), às vezes a brasilidade tantas vezes esperada dos raps nacionais não se dá de maneira direta e evidente. "A cadência que você coloca numa música, o jeito como você fala e a própria língua produzem um som diferente, que não é o som dos gringos. As referências de música brasileira são legais, mas têm que surgir de maneira natural. Não faz sentido ficar sampleando músicas brasileiras só para dar ‘brasilidade’ ao som."

Os dois integrantes do OS + NÃO foram os curadores do festival SP Rima com Paz, que em dezembro promoveu um grande encontro internacional entre rappers norte-americanos e brasileiros no Sesc Belenzinho e no Sesc Itaquera. "A idéia do festival foi coroar um ano muito produtivo para o rap nacional. O Sesc se ligou nisso e promoveu vários eventos de hip hop, como o campeonato de DJs no Sesc Pompéia e a série de oficinas e shows Fala Mano!", afirmam. "Além disso, o festival serviu como um símbolo da comunidade hip hop pedindo paz na cidade."

Para Rappin Hood, um dos destaques da programação do festival, apesar de uma evidente ampliação do mercado de rap no país, ainda existe muito preconceito em relação ao universo do hip hop. "O rap ainda é um som marginalizado, de gueto. Ainda é considerado como música de bandido, de ladrão, de periferia. O hip hop chegou às altas camadas, o mundo hoje sabe o que é o hip hop, mas ainda o discrimina."

Identidade brasileira

O salto mais significativo do rap no Brasil talvez tenha se dado em 1997, com o lançamento do disco Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s, outra atração do SP Rima com Paz. O disco do grupo que surgiu em São Paulo no final da década de 1980 alcançou mais de 500 mil cópias vendidas em um esquema alternativo de divulgação e distribuição. Aos que criticam a norte-americanização da banda, dispararam Jorge da Capadócia, de Jorge Ben Jor, logo na abertura do disco. Junto com Tim Maia, Ben Jor é uma das referências mais presentes na nova safra do rap brasileiro. "Acho que o rap nacional está cada vez mais se encontrando. Daqui para a frente ele vai se incorporar ainda mais à música brasileira", retoma Rappin Hood. "Eu fui um cara que corri risco. Dei a cara para bater. Meu público podia me hostilizar, mas correu tudo bem e hoje sou uma realidade." Segundo Janaina, há uma tendência de cada vez mais o rap ser apropriado pela cultura local. "O movimento ganhou maturidade. O rap brasileiro está criando uma identidade brasileira. Está longe de ser uma mera reprodução norte-americana."

Apesar da ampliação do mercado para o gênero, o circuito de rap ainda é muito reduzido. "O público de classe média começou a consumir o rap. Hoje em dia você vai em qualquer grande loja e encontra uma quantidade de discos que certamente não encontraria há três anos", afirmam OS + NÃO. "Porém ainda há poucos lugares em que você pode fazer bons shows. Em São Paulo, praticamente só há o Sesc. As bandas novas têm poucas possibilidades de mostrar seu trabalho." Rappin Hood, sem dúvida um dos grandes destaques da música brasileira dos últimos anos, também sofre com o problema e reivindica novos espaços. "O movimento precisa de mais casas de show como o Sesc, com preços acessíveis e onde nosso público seja tratado com dignidade."

Apesar de já estar bem estabelecido no circuito, Rappin Hood afirma que não é fácil viver de rap no país. "O negócio é que nem matar um leão por dia. Mas tenho orgulho do que faço. A gente é pioneiro, abrindo o caminho a machadadas. Pode ser que daqui a dez anos existam moleques vendendo milhões de cópias e andando com carro importado. E provavelmente a gente vai ser o rap de raiz, como existe o samba de raiz, que foram os caras que abriram espaço mas não ganharam tanto dinheiro", presume. "Os cachês dos grupos de rap não são como os dos grupos de rock, ou de pagode. Mas se eu puder sobreviver, conseguir o mínimo para poder cuidar de meu filho que vem vindo agora, já estou contente. A gente quer dinheiro, mas não a qualquer custo", afirma o rapper, deixando também transparecer um tom de preocupação familiar tantas vezes presente nos discursos dos rappers. "Não posso falar que me falta arroz ou feijão. Mas eu continuo andando de ‘busão’. Só que hoje em dia a diferença é que eu pago a passagem, não passo mais por baixo da catraca."

 

SP rima com Paz - Festival trouxe Pharcyde, Kid Koala, Racionais e outros

Poucos hoje têm dúvidas de que o hip hop seja um importante agente contra a violência em São Paulo. O movimento, que engloba artes plásticas (grafite), música (rap) e dança (break), ganhou espaço e é hoje reconhecido como um bom instrumento para tirar as crianças e jovens das ruas e oferecer-lhes alternativas artísticas e até profissionais. Valorizando essas características do movimento, o Sesc desenvolve há alguns anos eventos relacionados ao universo do hip hop. O ano de 2001 foi repleto de shows, competições e oficinas relacionadas ao tema. Destacam-se, entre eles, a série de shows e oficinas Fala Mano!, que ocorreu em diversas unidades da capital em abril; a quinta edição do campeonato de DJs Hip Hop Dj, durante o segundo semestre de 2001 e a série de palestras e espetáculos Linguagens da Violência, em setembro. Para fechar o ano, o Sesc promoveu o festival internacional de rap SP Rima com Paz, no Sesc Belenzinho e Itaquera. Entre os destaques do evento, os rappers californianos do Pharcyde, os Racionais MC’s, o rapper Sabotage, autor da premiada trilha do mais recente filme de Beto Brandt (O Invasor), Zion I, sensação do underground norte-americano, e Kid Koala. Além das apresentações, o evento foi repleto de dança e contou com a decoração do artista plástico e grafiteiro Flip.