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Beleza fabricada

Ao longo da história, homens e mulheres adaptam seus corpos aos padrões estéticos de cada época. Em artigos exclusivos, especialistas discutem o apelo da boa aparência

Giulia Crippa é docente de história da Fundação Santo André

Franz Kafka, em seu conto "A Colônia Penal", mostra de que maneira a lei era "ensinada" aos condenados: "Grava-se simplesmente, com o auxílio do rastelo, o parágrafo transgredido sobre a pele do culpado". Seria inútil levar a sentença ao conhecimento dele, por isso ele iria "aprendê-la no próprio corpo". A tatuagem é uma punição, que inscreve indissoluvelmente a lei no corpo.

Com a formação do Estado moderno no Ocidente, por volta do século 17, procuraram-se caminhos para levar ao conhecimento de todos leis e regras escritas, que deviam ser divulgadas por meio da instrução. As leis, as normas e os fundamentos culturais são aprendidos, no Ocidente, com o exercício privilegiado da leitura. Todavia, sociedade sem escrita não significa sociedade sem normas ou regras. O que muda são os meios e os códigos de transmissão: tatuagens, perfurações e feridas representam, freqüentemente, um conjunto de rituais de passagem que permitem a identificação social através da inscrição escrita no corpo, que conhece o mundo e suas regras diretamente na carne.

Herman Melville, em seu romance Moby Dick, descreve Queequeg, o companheiro "selvagem" do protagonista Ishmael, como um livro ilustrado. A visão exterior do seu corpo tatuado transforma-se em uma reflexão perplexa e profunda sobre o próprio sentido da vida, talvez uma das primeiras expressões de conhecer e descobrir o mistério do "outro", do "selvagem", do "diferente", sem preconceito, mas com curiosidade: "e esta tatuagem tinha sido a obra de um profeta e vidente finado de sua ilha que, através daquelas marcas hieroglíficas, escreveu sobre seu corpo uma teoria completa do céu e da terra, e um trabalho místico sobre a arte de se ater à verdade; assim Queequeg, na sua própria pessoa, era uma charada a ser desvelada; um maravilhoso trabalho em um único volume".

Seria difícil, do ponto de vista histórico e antropológico, chamar de "moda" um ato que transforma de maneira tão definitiva a carne e a pele. Há vinte anos, o piercing no mamilo do fotógrafo Robert Mapplethorpe ainda provocava bastante impacto no público, mesmo que notícias dessa prática, na moda desde o século 19, chegassem do lugar mais inesperado, a sociedade burguesa ocidental: já em 1880, cartas para a revista Family Doctor (Médico de Família) descreviam jovens que tinham suas orelhas, nariz e mamilos perfurados em uma escola particular. Em 1899, a revista Society recebia amontoados de cartas sobre a "última moda louca": homens e mulheres que tinham seus mamilos perfurados.

O piercing entrou na moda "oficial" pelo contato com a cultura gay e a sadomasoquista, cada vez menos marginalizadas, e também com a new age, que, já nos anos de 1970, afirmava que tatuagens e piercings seriam muito populares na Era de Aquário, com o florescimento da inclinação natural do homem para a decoração. Nos anos de 1990, body piercings e tatuagens se transformaram em práticas mais comuns, assim como o branding: cicatrizes de queimaduras...

Wilson Rubens Andreoni é cirurgião plástico e primeiro vice-presidente da SBCP (Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica)

Sem dúvida alguma a abrangência de procedimentos, técnicas e novos materiais em cirurgia plástica, nesta última década, superou todas as expectativas possíveis, entrando numa fase "high tech" de "no limit". Dessa maneira, essa área acompanhou o progresso contínuo da medicina como um todo, permitindo às pessoas melhores condições de saúde e qualidade de vida.

A cirurgia plástica integra perfeitamente a definição de saúde preconizada pela Organização Mundial da Saúde (um estado de bem-estar físico, mental e social), pois, socialmente, os indivíduos anseiam pela beleza e pelas formas harmônicas, tanto na juventude como na maturidade. Assim, tratamentos estéticos cirúrgicos e clínicos atuam sobre as marcas deixadas pelo tempo, detendo e mesmo suavizando os efeitos deletérios, proporcionando recursos substanciais ao antienvelhecimento.

Todavia, deve-se atentar para a qualificação do profissional de cirurgia plástica, ou seja, ele deve ter boa formação humanística e técnico-científica, a fim de realizar o melhor trabalho para o paciente.

A cirurgia plástica é uma especialidade médica igual às demais e, portanto, deve oferecer ao paciente assistência e procedimentos médicos com técnicas adequadas e atualizadas para cada caso, incluindo cuidados pré e pós-operatórios, com informações detalhadas, necessárias para a compreensão e decisão do paciente quanto ao tratamento. Em resumo, nesse tipo de cirurgia, devem-se proporcionar todos os meios apropriados para atingir um bom resultado, porém jamais garanti-lo, uma vez que todo ato médico clínico ou cirúrgico está sujeito a uma série de intercorrências que independem do profissional.

No momento, os procedimentos de tratamento do contorno corporal, como a lipoaspiração e a lipoescultura, aliados a inclusões de próteses de silicone no mento, seios, regiões glúteas e panturrilhas, contribuem decisivamente para um perfil mais anatômico e funcional.

O mesmo pode-se dizer em relação à plástica nasal, das orelhas de abano, dos seios e do abdômen e à correção dos excessos de pele e tecido dermogorduroso nos braços, nos quadris e nas pernas, que modelam, melhorando a forma e a simetria e diminuindo sobremaneira a celulite e a flacidez do organismo. A cirurgia plástica facial, incluindo as pálpebras, o mento e o pescoço, suaviza e elimina as rugas, rejuvenescendo o paciente.

A par desses procedimentos cirúrgicos, contamos ainda com os formidáveis aparelhos de laser de metais como rubi, diodo, alexandria, érbio, neodímio, írio, alumínio, ermânio e outros, e gasosos como dióxido de carbono, argônio, hélio e neônio, que, ao lado dos que apresentam luz intensa pulsada, constituem arsenal inesgotável para o tratamento não invasivo de tatuagens, anomalias vasculares, epilação e tumores cutâneos.

Finalmente, não podemos nos esquecer das substâncias de inclusões cutâneas ou subdérmicas, aliadas aos peelings químicos e às toxinas botulínicas, que complementam e aprimoram os resultados estéticos desejados pelos pacientes.

Denise Bernuzzi de Sant’Anna é professora de história da PUC-SP

Lipoaspiração, silicone nos seios, injeção de colágeno, remoção de pintas, aplique de cabelos, correção das orelhas de abano... a miss Brasil 2001, Juliana Borges, fez todas essas intervenções para adquirir um corpo belo. Sua aparência expressa a realização de um sonho hoje massivamente banalizado: modificar o corpo de acordo com os desejos pessoais e os caprichos da moda, "produzir" uma silhueta independente das tendências genéticas e das marcas do tempo.

Esse sonho é muito antigo. A busca da beleza sempre fomentou a criação de diferentes produtos e receitas. Sem precisar ir muito longe, basta lembrar que, já em meados do século 19, uma crônica de José de Alencar menciona a venda dos "postiços", capazes de embelezar todo tipo de corpo. No entanto, escreve ele, "imagine-se na posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para casa uma mulher toda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de vestidos, onde toda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria. Quando chegar o momento da decomposição deste todo mecânico – quando a cabeleira, o olho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando sobre o toillete – quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos progressos da indústria humana!" (José de Alencar, "Moedeiros falsos e falsificadores da mulher", em Crônicas escolhidas, Ática e Folha de S.Paulo, 1995).

Entre Juliana e o "todo mecânico" de Alencar há mais de um século de distância e muitas diferenças. Em ambos os casos permanecem, certamente, a antiga vontade de adquirir um corpo belo. Contudo, ao contrário da mulher "postiça" de Alencar, vários "artifícios" de Juliana estão dentro do seu corpo. Ela não os retira para dormir, são produtos que se confundem com seu organismo e fazem parte de sua identidade.

A tendência de naturalizar os artifícios da beleza é solidária à banalização das cirurgias plásticas e expressa mudanças profundas no modo de conceber o corpo. Desde a década de 1950, por exemplo, a beleza deixou de ser considerada unicamente um "dom" para ser algo que se compra e se inventa, diariamente. É quando a cosmetologia se torna uma ciência independente da química e da dermatologia e a publicidade anuncia que "não há mais idade nem um único momento para se embelezar; doravante só é feia quem quer". Diferente dos anos anteriores, agora o embelezamento é aceito como um gesto rotineiro, não apenas um dever, mas, também, um direito. A venda de produtos de maquilagem portáteis, práticos de usar, contribui para dotar o gesto embelezador de uma naturalidade outrora rara. Para as brotinhos que abandonam o lânguido glamour dos vestidos rabo-de-peixe dos anos 1940 e ingressam na moda do prático jeans ou do refrescante sex-appeal em voga, não basta parecer bela: o uso das tradicionais "cinturitas" é substituído pelos novos regimes e ginásticas, o trabalho embelezador ganha produtos "naturais" e conta com cirurgias cada vez menos invasivas.

Depois da década de 1980, essa tendência se acelerou. O embelezamento tornou-se um gesto mais exigente, convocando partes do corpo até então alheias aos cosméticos e cirurgias. Trata-se de um gesto desdobrado num consumo infinito de serviços para a boa forma e numa atenção intensiva e, por vezes, exclusiva, sobre o próprio corpo. E, quanto mais facilmente o corpo se libera e se despe, maior é a necessidade de "vesti-lo" com cremes, músculos e próteses. De uma beleza passageira e provisória, elaborada com antigos "postiços", passa-se, então, a uma beleza permanente, infinita e industrialmente assistida.

Jorge Forbes é psicanalista, presidente do Instituto de Pesquisas em Psicanálise de São Paulo

Um dia, talvez quando os historiadores se debruçarem sobre os últimos vinte anos do século 20, notarão que uma das suas mais claras características foi o estabelecimento do "sem limite". Sem limite de distância, com a revolução da Internet; sem limite da cura, com novos medicamentos, clonagens, partos fabricados; sem limite da segurança, com carros blindados e guardas armados; sem limite da beleza, com plásticas estéticas e dermatologia cosmética. E esses historiadores constatarão um paradoxo: ao contrário do que o "bom senso" poderia esperar, não acompanhou esse formidável progresso uma taxa equivalente de felicidade e de bem-estar, ao contrário, o que se viu foi o crescimento dos quadros depressivos e das toxicofilias. Surpresa! O que aconteceu? Em um primeiro momento pensou-se que os novos métodos não traziam a almejada felicidade por estarem sendo sub-utilizados e, em conseqüência, tocou-se a multiplicá-los. Se um guarda é pouco, contratam-se dois, ou três, ao mesmo tempo que se transforma a casa em casamata, nada ficando esta a dever às celas de um presídio de segurança máxima. Conclusão: é a vítima em potencial, em seu afã de proteção, que acaba na cadeia, e, pior, por auto-aprisionamento.

Raciocínio semelhante pode ser empregado para os outros novos remédios tecnológicos. Tomemos a beleza. Descobriu-se que o botox tem propriedades paralisantes da pele que propiciam o desaparecimento das rugas, porta-vozes da velhice. O local onde é mais aplicado é na testa, fazendo-a ficar "lisinha" (sic), esse é o efeito pretendido. Ocorre que, ao ser aplicado no meio da testa, muda a expressão facial da pessoa, pois, as laterais estando livres, as sobrancelhas se arqueiam só nas pontas externas, reconstituindo, em anima-nobili (o nome acadêmico da espécie humana), os mesmos traços das terríveis bruxas das histórias em quadrinhos. Belas, sem dúvida, mas bruxas. Aí, para retirar o efeito bruxa, só aplicando um pouquinho mais de botox nas laterais. Pronto, agora não é mais bruxa, é só uma Barbie aparvalhada, com cara de vazio. Finalmente, é o prêmio de consolação, basta aguardar alguns meses para o botox ser reabsorvido, voltando tudo à velha forma; no caso do botox ainda dá para remediar.

Onde está o limite? Deslocadas pelas evoluções científicas de seu terreno chamado "natural", as pessoas sofrem hoje de uma verdadeira síndrome do "sem limite". Será que a única solução é o limite da dor, como quando uma pessoa se vê encarcerada em sua própria casa (ainda está na memória de todos a história do banqueiro que morreu queimado em seu banheiro superprotegido), ou de quando seu rosto perdeu a vida? Ou, ainda, seria uma solução marcar o próprio corpo na tentativa de fixar um limite? Da automutilação às tatuagens e aos piercings a fronteira é tênue.

O que esperamos é que a crítica esclarecida faça um trabalho de separação entre os formidáveis avanços científicos dessas últimas décadas e a ideologia a eles parasitária do tudo-pode, tudo-tem-jeito. Caberá a médicos e pacientes e, de uma forma mais ampla, a fornecedores e usuários, responsabilizar-se pelo estabelecimento de novos limites. Deverá se privilegiar aquilo que se quer e não o que se pode.

A época da globalização em que estamos entrando exige de cada um o exercício de seu próprio limite, que hoje em dia vem menos da "natureza" que da própria escolha responsável. É aquilo que eu quero que me restringe, e não o que o outro, o tempo, por exemplo, me impede de conseguir. Ah, mas não é nada fácil o exercício da expressão do querer. A pergunta: "Você quer o que você deseja?" é uma das mais difíceis de responder, tanto por mulheres quanto por homens. Mas isso já é assunto para um próximo artigo, porque também aqui há limite.

Érika Mourão Trindade Dutra é professora de educação física e técnica do Sesc

Em diferentes fases da vida, desde a infância até a maturidade, os indivíduos constroem referenciais para conhecer o próprio corpo: o brincar infantil e o uso da linguagem corporal para comunicar-se, as descobertas e incertezas do corpo adolescente, as mudanças do corpo adulto e as histórias do corpo maduro. Entretanto, a primeira imagem consciente que construímos obedece a modelos impostos por valores culturais vigentes.

A sociedade contemporânea assiste ao crescimento exacerbado do culto ao corpo, a busca por padrões de beleza que não necessariamente condizem com as características individuais. A supervalorização do corpo é foco de atenções e investimentos, tanto por parte da mídia como do poder econômico.

Nas grandes metrópoles, observamos o dualismo entre um estilo de vida calcado em hábitos por muitas vezes inadequados (sedentarismo, estresse, fumo, alimentação desequilibrada etc.), associados a inovações tecnológicas (que provocam maior inatividade física), e a "necessidade" de construir um corpo aceitável, que possa ser exibido. Mas não sejamos hipócritas. A corpolatria não pode ser condenada ou considerada nociva, pois é extremamente positivo uma pessoa se exercitar, investindo tempo e disposição em si mesma, com a consciência de estar adquirindo benefícios para a saúde. O preocupante é quando se substitui esse esforço e consciência por fórmulas milagrosas e imediatistas que possam garantir um corpo bonito. É claro que todos gostaríamos de ser bonitos e admirados, porém, a estética não pode ser o único valor a ser conquistado, em detrimento da boa saúde e do bem-estar físico, emocional e social.

Paralelamente à corrente do culto ao corpo, verifica-se o alentador crescimento do número de pessoas que aderem a diferentes atividades físicas e esportivas com o intuito de melhorar ou manter a saúde e ampliar a percepção e consciência corporal. Como conseqüência, elas administram melhor a vida, relacionam-se efetivamente com outras pessoas e são mais felizes.

O corpo é a expressão da cultura, é a nossa história, portanto os valores da sociedade lhe impõem regras de comportamento social (vestimentas, cuidados, higiene e hábitos cotidianos em geral). Nosso corpo é uma fonte de prazer e felicidade, ele passa por diferentes momentos e cada um é único, com beleza própria. Está em constante construção e transformação. Estar ciente disso e viver essas mudanças significa resgatar a corporeidade do homem como um ser integral.

Pessoas que incansavelmente buscam a perfeição corporal são influenciadas pela visão discriminatória daqueles que rejeitam o corpo que não condiz com os padrões instituídos de beleza. A atividade física é essencial para modificar esse quadro. Ela propicia o aumento ou o resgate da auto-estima e melhora a imagem e a consciência corporal. Ao nos exercitarmos, devemos estar atentos às reações do nosso corpo, a fim de estabelecer com ele uma relação de prazer e honestidade, distante de sacrifícios ou da dor.

O conhecimento corporal passa pela busca de um equilíbrio pleno, orientada em duas direções: a descoberta da nossa imagem corporal – a nossa própria beleza – e a descoberta do outro. É preciso ir além da prática físico-esportiva e alcançar a relação com outras pessoas. Compreender o próprio corpo torna-nos autônomos. Embora único, com todas as suas limitações, ele é parte de um todo, parte do mundo. Um mundo contraditório que nem sempre mostra beleza, mas que nos convida a caminhar com o corpo que somos. Nossa corporeidade está na essência do nosso ser. Uma essência que se constrói com a unidade dos corpos na diversidade da existência particular de cada um.

É preciso investir em processos educacionais que promovam a consciência crítica e o discernimento sobre os benefícios da atividade física regular, orientada e acima de tudo prazerosa, como forma de obtenção da verdadeira beleza, aquela que extrapola a aparência. O desafio dos educadores corporais é atuar na formação de crianças e jovens e na reeducação de adultos que reconheçam a importância do corpo saudável, ativo, social. O corpo cidadão, este sim, o corpo realmente belo.