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Ficção inédita
O enfermeiro Militão - Uma lenda urbana
Dionisio Jacob É fácil contar a história da breve vida do enfermeiro Militão: ele mesmo era uma pessoa da mais profunda simplicidade. O difícil é tentar explicar por que Militão tornou-se um enfermeiro. Seria o mesmo que tocar aquelas forças insondáveis que presidem o destino humano e que, seguramente, estão fora do alcance das nossas especulações. Isso porque ninguém poderia ser menos enfermeiro do que Militão. Ele era a própria antítese do enfermeiro, principalmente se levarmos em conta o quanto de pequenos movimentos sutis com que é feita essa profissão nobilíssima. Trata-se, sem dúvida, da mais atenciosa das ocupações humanas. E Militão tinha o tipo físico de um sargento, desses que arrepiam a tropa com o mínimo levantar de sobrancelhas. Enorme, escurão, bigodudo, sua voz grave dominava qualquer ambiente. Que pulmões! Neste ponto alguém poderia contra-argumentar que tamanho grande não significa necessariamente insensibilidade ou falta de destreza. Basta lembrar daqueles elefantes que são capazes de atravessar um ambiente repleto de vidros sem quebrar nenhum. Mas esse não era o caso do Militão. Para ele, atravessar uma sala era uma operação que devia se dar em linha reta, independentemente do que estivesse no caminho. Tudo caía quando ele passava. O certo é que, por algum motivo, ele fez o curso de enfermagem, com especialização em terceira idade, e foi trabalhar numa casa de repouso, onde se transformou numa espécie de terror constante para os idosos que lá pensavam em encontrar um ambiente sereno. Mas se faltava algum jeito, sobrava seriedade e atenção. Atendia ao menor chamado sem jamais aparentar cansaço. Ria com estridência de piadas antigas e era ótimo ouvinte. Com o tempo foram aumentando suas atividades no estabelecimento. Além da ocupação profissional de enfermagem, limpava calhas, realizava serviços hidráulicos e servia como mecânico dos carros da casa. Também era pintor de paredes, quando necessário. E cuidava do almoxarifado. Fora que a segurança do local nunca foi tão garantida, pois sua presença impunha considerável respeito. Tornou-se, pois, insubstituível. Por causa disso, os velhinhos, depois de passado o primeiro susto, afeiçoavam-se muito a ele. Sua presença nas dificuldades era tão certa como a própria morte e havia nele alguma coisa de rochedo, de firmeza, de vigor físico que decerto devia assombrar aqueles seres fragilizados pela longa existência, cujo menor movimento demandava toda a energia disponível. Às vezes surgiam reclamações. Principalmente pela falta de paciência, seu grande defeito. Militão não conseguia esperar que o idoso se locomovesse até a cadeira de rodas, mesmo que isso fosse recomendado pelo fisioterapeuta. Ia logo agarrando o venerável senhor e o entrunchava na cadeira de um modo talvez brusco, mas indolor. Manuseava os velhinhos como se fossem de brinquedo. Alguns pareciam criaturas portáteis nas suas mãos grandes, tal o modo como os erguia, dobrava as pernas, cruzava os braços, fazendo em poucos minutos, às vezes segundos, o que o paciente levaria, inevitavelmente, parte da manhã para realizar. Pareciam bonecos que Militão transportava para cima e para baixo, tirados e postos seguidamente da cama, da cadeira, do sofá, do sol, da sombra e do banho. A presença do enfermeiro no ambiente tinha também o poder milagroso de terminar com todos os achaques e tremulências. Para não serem manuseados daquela forma imprudente, todos procuravam manter-se rijos e bem dispostos, dentro, é claro, das suas possibilidades. Outra reclamação constante contra o enfermeiro dizia respeito à sua suposta grosseria. De fato, Militão era duro com coisas como incontinência urinária. Possuía um olfato apurado e no meio de uma tarde calma, sua voz possante era muitas vezes ouvida ecoando pelos aposentos: — Quem mijou?!? Era um tanto constrangedor, sem dúvida. E, para piorar, ele ainda tinha a mania de chamar todos de "velho", ou "velha". Não conseguia decorar nomes. Parece mesmo uma grande grosseria dizendo assim. Mas não era algo agressivo, feito com a intenção de ofender. Era tão-somente um traço do caráter de Militão, uma falha de formação, um jeito "bronco" de ser. Mas ele jamais se negava ao mais humilhante dos serviços, jamais deixava transparecer desânimo ou enfado. Assim, como já foi dito, apesar dos pesares, era muito querido. Principalmente porque muitos daqueles velhinhos estavam sendo abandonados de forma educada pelas suas famílias e não tinham uma opinião muito positiva da humanidade àquela altura das suas vidas. Alguns construíram pequenos impérios que agora estavam sendo disputados avidamente pelos filhos. Uma senhora possuía uma linda casa num bairro elegante, que passou para o nome da filha. E esta não queria mais a mãe em nenhum aposento. Militão se enervava quando ouvia algumas dessas crônicas azedas. "Assim é a vida", refletia, indignado com a ingratidão. Mas o que tornou Militão um personagem público, com direito a uma breve — porém impressiva — aparição na mídia foi o episódio que narrarei em seguida, e que se iniciou na casa de repouso. Aconteceu num dia de verão quando, depois de um calor insuportável, caiu uma daquelas tempestades tremendas que paralisam a cidade. As avenidas marginais inundaram, as árvores caíram, o trânsito pareceria uma fotografia de tão parado, não fosse o som ensurdecedor das buzinas que entoavam uma ode apocalíptica. No meio daquilo, um dos velhos da casa de repouso foi vítima de um ataque convulsivo grave. Havia um quadro clínico, trazido pelos filhos, dizendo que nesses casos ele deveria ser internado num hospital utilizado pela família, situado no bairro do Paraíso. Ora, a casa de repouso ficava em Perdizes, de modo que algo entre quatro e cinco quilômetros separava os dois locais. Na hora da crise, Militão estava enfrentando a fúria da natureza com um rodo na mão, pois a água havia invadido um dos quartos superiores, através de uma fenda na laje. Com a calça arregaçada até as canelas, descalço, o negrão parecia um possesso tentando controlar o elemento líquido. Num dado momento, olhou pela janela e viu, no pátio da entrada, um movimento anormal. Desceu para verificar a que vinha aquilo tudo e inteirou-se da situação: o motorista não tinha conseguido sequer sair da clínica, pois a rua em frente estava inteiramente congestionada. E o estado do enfermo piorava. Enquanto todos discutiam o que fazer, Militão permaneceu em silêncio, como que pensativo e, num ímpeto, gritou: — Me dá o velho! Não houve tempo de reação. Ele agarrou o idoso como se fosse algo muito leve, um saco de farinha, um embrulho, e desabalou a correr. O gerente do asilo ainda tentou gritar para que ele voltasse. Tarde demais. A partir daqui a realidade se mistura com a lenda. Algumas testemunhas oculares da incrível corrida de Militão afirmam que se impressionaram com o surgimento daquela "coisa" gigantesca, negra, vestida de branco, descalça, voando pelas ruas com "alguma coisa" nos braços. Dizem que, quando não via por onde correr, não hesitava em saltar pelos capôs dos carros, chegando a percorrer um quarteirão todinho sobre os automóveis. O que provocava a saída apavorada de quem estivesse dentro dos veículos, que julgavam por certo estarem sendo atacados, quem sabe, por alguma chuva de meteoros. E quando Militão voltava para a calçada, disputava cada espaço com a fúria de um Obdúlio Varela batendo em brasileiros na final de 1950. Latas de lixo espirravam e quem não saltasse estava arriscado a ser atropelado pelo implacável velocista. A sorte é que ele gritava "Olha a frente!", com uma poderosa voz de puxador de escola de samba. O certo é que Militão conseguiu chegar ao hospital e entregar o paciente aos cuidados necessários. O "velho" não apenas sobreviveu, apesar dos 80 anos, como chegou até os 86. Já Militão morreu naquela noite mesmo. Logo que "entregou" o homem que acudia na recepção, começou a passar mal e teve um ataque fulminante do coração. Nem ele mesmo sabia que era cardíaco. Ao seu enterro foram todos os velhinhos que viviam sob os seus cuidados e que admiravam, assombrados, a figura expressiva do negrão, rijo, em seu humilde esquife. Olhavam absortos para a falência do vigor físico, eles sempre tão frágeis em suas eternas constipações. Sentiam-se órfãos de algum modo e perguntavam-se, por certo, onde se encontraria, afinal, a verdadeira delicadeza, a nobreza da alma. O enquadramento da morte transformara a vida do enfermeiro de circunstancial em destinada e o que era grosseiro passou a ser digno. Alguém fez um discurso no qual mencionou o célebre maratonista grego. E alguém comentou em voz baixa que o rosto de Militão, escanhoado, parecia o de uma criança crescida. Mas, afinal, quem de nós — incluindo os mais provectos — não é uma? Dionisio Jacob é escritor e autor de A utopia burocrática de máximo modesto (Companhia das Letras) |