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Constelações subterrâneas

Foto: Zarella Neto
Foto: Zarella Neto

Por Rodrigo Souza*

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Final de tarde de dezembro. O dia abafado vai dando lugar a uma noite fresca. As luzes dos postes de uma praça em Taboão da Serra começam a acender. Aguardo o início do ensaio do espetáculo Subterrâneo, da Companhia Gumboot Dance Brasil, no Espaço Clariô. Observo o movimento daquele fim de dia. Trabalhadores voltando para suas casas, barraquinhas de comida se espalham pela praça. A claridade da luz do sol não se foi, mas ainda não é possível ver as estrelas. Dizem que o lusco fusco pode causar uma cegueira momentânea em alguns motoristas. Nessa hora o olho começa a se adaptar para uma visão noturna, e é nesse momento em que enxergamos menos – ou que talvez comecemos a desenvolver outro olhar.

Chega a hora do ensaio. Sentamos numa arquibancada, devia ter umas vinte pessoas ali. O diretor da companhia, Rubens Oliveira, nos dá boas vindas e diz que depois do espetáculo conversaremos.

Blecaute. Em meio à escuridão do palco, lanternas se replicam, formando uma constelação pulsante de luminescências. Sons graves de batidas das mãos nas botas de borracha. Gritos, cantos ininteligíveis. Tento me situar. Olho para o lado, estamos ali, juntos, em silêncio. São quantos bailarinos? Começo a contar, oito, nove... dez pessoas? Atordoado, desterritorializado, a força daquela experiência faz rachar o chão sob meus pés. Mais uma vez, busco entender. Mas o espetáculo, os gestos, as coreografias, não são da ordem do olhar, dos refletores, da luz clara e precisa. Entrego-me. É preciso se cegar por alguns instantes e habitar a escuridão, ver e ouvir com a pele. Imersos, subterrâneos, o que vemos são pequenos lampejos, traços de luz, como vagalumes que surgem ao anoitecer.
 

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Em um texto publicado em 1975, ano em que foi brutalmente assassinado, o cineasta Pier Paolo Pasolini recorreu à alegoria dos vagalumes para falar da resistência das culturas populares em meio ao um regime fascista triunfante na Itália. Pasolini diz que esses lampejos de oposição estariam desaparecendo em meio a um regime que incidia sobre gestos, valores e cultura do povo. Vagalumes, portanto, sendo aniquilados em meio aos holofotes.

Tempos depois, o filósofo Didi-Huberman contesta esse pessimismo. Os vagalumes só desaparecem a partir do momento em que paramos de acompanhá-los. Mesmo em meio a uma iluminação intermitente, câmeras de vigilância, imagens de televisores e refletores classificatórios da sociedade, é possível reconhecer, seguir e ser atravessado por gestos, ações, vozes, marginais, minoritários, que permanecem sobrevivendo, resistindo.  “Para conhecer os vagalumes, é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores”.
 

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Criada no século XIX por mineiros na África do Sul, num contexto social opressor e com os riscos iminentes do trabalho, a gumboot dance, a dança das botas de borracha, se tornou um meio de comunicação entre trabalhadores de etnias diferentes, assim como uma forma de manter viva a memória das tribos das quais pertenciam.

O Gumboot Dance Brasil é o único grupo do país – e um dos poucos no mundo que desenvolvem esse estilo de dança. O primeiro espetáculo criado foi Yebo, que teve duas montagens, uma em 2010 e a outra em 2013. Ao longo desses anos, o estilo tradicional do gumboot foi se misturando a elementos da cultura brasileira e do histórico corporal de cada integrante.

Em Subterrâneo, os movimentos, coreografias, gestos que vemos encenados nos remetem à luta pela sobrevivência, seja nas minas de ouro do século XIX ou no Brasil atual, em meio a desigualdades sociais e alterações em leis que degradam cada vez mais as condições trabalhistas.
 

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Madrugada. Lampejos esparsos, janelas se iluminam. Acendem, apagam, sinalizando existências. Luminescências pulsantes, passageiras, movimentos, deslocamentos. Duas, três horas para se chegar ao trabalho.

Clarão. Mais um dia de vida. A população periférica e negra, agora invisíveis, sob projetores ofuscantes de um regime de claridade que os apaga, explora, violenta e extermina. Diariamente. 

Apesar de tudo, luzes erráticas continuam se multiplicando, sobrevivendo, se expandindo para além das periferias, ocupando palcos, ruas, territórios, lugares até então hostis.  Ensaios de outro tipo de luz, iluminando e apontando para algo por vir, novos caminhos, novos modos de existir.  Vagalumes seguindo em revoada e fazendo emergir uma constelação até então subterrânea. 

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* Rodrigo Souza é Mestre em Artes, Cultura e Linguagens (UFJF) e programador de Dança do Sesc Consolação

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