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Do alto do Sesc, contemplo a Paulista

Foto: Leila Fugii

 

Símbolo da cidade desde 1991, quando completou cem anos, a Avenida Paulista nasce na Praça Osvaldo Cruz e se estende por 2.800 metros até se desmanchar em uma colina que se derrama para o Pacaembu, praticamente junto à casa onde viveu Chico Buarque.

Escrevi várias vezes dezenas de crônicas sobre esta rua, escrevo e reescrevo, ela se faz e refaz de tempos em tempos. O número 1 não existe, a Paulista começa no 7, um prédio comercial. Meu pai, homem das estatísticas da Estrada de Ferro Araraquara, que adorava São Paulo e tinha orgulho da Paulista, certo dia mediu a avenida em passos. Contou e recontou, afirmou: são 3.818 de ponta a ponta. Refiz a trajetória há duas semanas, reconfirmei a informação.

Quantos sabem que o projeto da Paulista é do arquiteto uruguaio Joaquim Eugênio de Lima, que sonhou com uma avenida sofisticada para a burguesia endinheirada? O mesmo Eugênio planejou o Viaduto do Chá. Nunca se vira uma avenida tão larga e imponente. Correndo ao longo do espigão central, ela divide
a cidade. Manteve-se digna, com muitas discussões e polêmicas, ao longo destes 127 anos.

Quando, em 1957, cheguei a São Paulo, costumava percorrer a Paulista no bonde Avenida 3 ou no Angélica 36, para admirar a arquitetura nascida do imaginário dos barões do café que ali se instalaram e comandaram a economia do Estado e do país. Kitschs, bregas, doidas, megalomaníacas, as casas tinham torres, minaretes, terraços, águas furtadas, varandas, colunatas, ferro rendilhado, vitrais, florões, telhados de ardósia, lembrando o Líbano, a Síria, a Turquia, o Oriente, a Itália. Fantasia e criatividade.

Hoje, o que resta daquela época de fausto? A Casa das Rosas e a mansão semi abandonada dos Franco Mello no número 1.919, entre a Rua Padre João Manuel e a Alameda Ministro Rocha Azevedo. Mário de Andrade chamou a Paulista de “boca de mil dentes”. Imponente, narcisista, exibicionista, vaidosa, ela fez tudo para se multiplicar e assim se reflete nos milhares de vidros que forram as fachadas dos arranha-céus.

Cada prédio espelha o outro, de maneira que em uma só existem várias avenidas. Ela se fragmenta, se despedaça e explode em faíscas cintilantes, azuis, negras, cinza, verdes, marrons, conforme o vidro usado nos revestimentos. Um corredor de retidão duvidosa, a certa altura seu traçado tende levemente à direita.
Houve época em que curiosos paravam diante da mansão do conde Francisco Matarazzo, na esquina com a Avenida Pamplona: ali morava o homem mais rico do Brasil. Imensa e trazendo os traços da arquitetura fascista italiana, a mansão caiu, virou estacionamento plebeu até ser transformada em shopping, o símbolo do novo milênio. Muitas vezes, esperei de manhã para ver sair do portão o Cadillac preto com chapa número 1. As matrículas de 1 a 10 pertenciam aos carros do conde.

Mas vi nascer o Masp e estive lá como jornalista na tarde em que iam retirar as estacas do concreto, criando suspense sem igual na engenharia brasileira. A estrutura esvoaçante criada por Lina Bo Bardi resistiria ou tudo viria ao chão? Resistiu. Estava a bordo quando o primeiro metrô atravessou a avenida por baixo. Jantei no Fasano, a convite, claro, quando o restaurante mais chique, caro e sofisticado do Brasil foi inaugurado no Conjunto Nacional. Também assisti ali a Nat King Cole e Marlene Dietrich.

Quando inauguraram o edifício da Fiesp, vi o povo dar-lhe o apelido de “o ralador de queijo” pelo formato. Revestido por granito marrom, o edifício do banco Safra ganhou o apelido carinhoso de Alcione, a sambista também conhecida como Marrom. Muitos chamam o Masp de “cristaleira”. A Paulista mantém o edifício Saint-Honoré, projeto do polêmico Artacho Jurado, a princípio desprezado, hoje considerado gênio pelo uso ousado de pastilhas coloridas. A maioria dos prédios ganhou nomes nobres, aristocráticos, como Baronesa de Arari (em cuja cobertura morou Cacilda Becker), Barão de Itatiaia, Queen Elizabeth, Barão de Ouro Branco, Barão do Serro Azul, Dom Pedro I de Alcântara, Barão do Amparo. Há um terraço histórico, tombado pelo Patrimônio Histórico, os Jardins Suspensos desenhados por Burle Marx para o edifício projetado por Rino Levi, na esquina da Rua Frei Caneca.

A avenida esconde em seus desvãos serviços de utilidade como salões de barbeiros, manicures, aparelhos para fotos instantâneas, plastificadores, despachantes, fabriquetas de carimbos, camiseiros, copiadoras, lojinhas de sapatos, sapateiros, lotéricas, balcões de sucos, vitaminas e pastelarias, sem esquecer os tradicionais engraxates do Conjunto Nacional batendo com as escovas nas caixas há décadas no mesmo lugar, o corredor de saída da Livraria Cultura.

A vida na Paulista engloba o que ocorre nas paralelas e transversais, toda a existência é interligada, vasos e artérias comunicantes, dia e noite. Ela atravessa o Parque Trianon, está junto ao Colégio Dante Alighieri, e pode se orgulhar de seus cinemas dentro do Conjunto Nacional, além das múltiplas salas do Caixa Belas Artes, do Center Três e do Reserva Cultural, as melhores da cidade, embaixo do maciço de concreto da Gazeta, edifício que seria altíssimo, cujo foco de luz chegaria a Santos, um farol da cidade, mas foi abortado.
Muitas vezes, no início dos anos 1960, estive na esquina da Joaquim Eugênio de Lima com a Paulista, no atelier do estilista Dener, apelidado “o geniozinho asmático”, para ver Mara Teresa Goulart, lindíssima primeira-dama do Brasil, provar seus vestidos. Hoje no lugar daqueles espelhos que refletiam, além da Goulart, as mulheres mais elegantes de São Paulo e do Brasil e modelos incomparáveis existe uma lanchonete multinacional que vende fritas e hambúrgueres.

Paulista que abriga as duas melhores livrarias da cidade, a Cultura e a Martins Fontes, e as sedes dos maiores bancos, de consulados, financeiras, a rádio Jovem Pan, a TV Gazeta, de points como a Prainha, de um restaurante como o Spot, moderno, elegante, com mesas disputadas e uma Margarita imbatível.

Paulista que foi dos milionários, da elite, mas hoje divide espaço com motoboys, secretárias, caixeiros, pequenos funcionários, inumeráveis camelôs e contrabandistas que vendem todas as bugigangas, trastes, celulares, relógios, pulseiras, bolsas falsificadas, carregadores de baterias, lanterninhas, isqueiros, incensos, artesanatos hippies (ainda). Sem esquecer que ela é o palco de todas as manifestações, sendo a maior, mais colorida, perfumada, bem encenada, a Parada Gay. Sem falar dos movimentos a favor e contra os partidos, os governos, as discriminações sexuais, o aborto, os direitos da mulher, contra o assédio, violência, a favor e contra os trans, as trans, as lésbicas, os gays, as religiões, a paz, os sem-teto, os sem-terra, os sem-emprego, sem voz.

Paulista da cultura que começou com o Masp, as livrarias, os teatros (Eva Herz, Sesi), a Casa das Rosas com seu café no jardim e agora assombra pela modernidade do Itaú Cultural, do Instituto Moreira Salles, da Japan House e finalmente do Sesc, que volta a esta avenida, com sua unidade definitiva,  de cuja torre escrevo agora fazendo panorâmica, contemplando a cidade por todos os lados.

Ignácio de Loyola Brandão é jornalista,
romancista, contista, cronista e autor de diversas
obras pelas quais ganhou em 2016 o Prêmio Machado
de Assis da Academia Brasileira de Letras. Entre suas
publicações estão: Zero (Global), O Menino Que Vendia
Palavras (Companhia das Letrinhas) – com o qual ganhou o
Prêmio Jabuti de melhor livro de ficção de 2008 – e
mais recentemente Se For pra Chorar Que Seja de Alegria (Global).

 

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