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Moral e controle social: o papel do simbólico na arena das disputas políticas

*Por Fernando Viana

Em tempos de tensionamento e polarização política, temas de cunho moral e de costumes vêm à tona para a discussão num amplo cenário social, sendo que a fronteira ténue entre o público e o privado sempre representou um dos elementos principais para compreensão das relações sociais e políticas no Brasil. Para dar base a estas afirmações não nos faltam estudos que dissequem esta relação e exemplos muito recentes da ebulição sócio-política que nos rodeia nos permitem dar credibilidade a profundidade a esta relação.

A pressão de um campo conservador da sociedade brasileira pela manutenção de um conjunto de valores morais basais caracteriza uma condição permanente que determina em larga medida relações no campo político. Longe de representarem esferas particulares e não relacionadas, e principalmente sob a égide do regime civil-militar, a discussão sobre os costumes a partir de uma perspectiva conservadora, em uma sociedade com sérias restrições à liberdade individual e coletiva representou de maneira genuína um dos principais focos de resistência política dentro de um campo simbólico, na medida em que os foros oficiais encontravam-se impedidos ou viciados pelas normas do regime vigente.

Associado a isso, os anos que precederam o golpe de 1964 representaram no panorama global um ponto de inflexão dos padrões de conduta e de diversos paradigmas morais cristalizados nas sociedades ocidentais, impulsionados pelo desenvolvimento de uma cultura jovem de consumo e voltada para uma identidade cosmopolita. O acesso de uma classe média urbana a elementos da emergente cultura pop anglo-americana e a influência de diversos movimentos civis pautados na reivindicação direitos de minorias sociais engrossaram o caldo e evidenciaram o descompasso da moralidade defendida pelo Estado brasileiro à época e a latência ampla da demanda da sociedade civil por maior liberdade.

Neste sentido, o controle sobre o conteúdo veiculado na imprensa e da criação artística por órgãos estatais representou uma ferramenta de uso permanente e de viés estratégico na estrutura do governo durante o período militarista, ainda que órgãos de tal natureza não caracterizem uma exclusividade deste período histórico, podendo haver correspondências tanto em conjunturas anteriores e também sendo observada a continuidade desse expediente, ainda que por apenas alguns anos após a abertura política. Em sua interpretação, o governo militar enxergava nesta esfera simbólica um terreno de disputa que permitia a manutenção de uma identidade patriótica alinhada ao regime e a partir disso estabeleceu uma frente de relação com a sociedade civil em contraposição a valores ditos obscenos, degenerados e desonrosos, associados sempre pelo regime ao campo progressista.

Dessa forma, temas como o uso recreativo de drogas, o divórcio, temas gerais de sexualidade e até mesmo a contracepção estiveram sob a atenção de agentes estatais e sofreram censura em diversas ocasiões. A programação dos canais de TV, o conteúdo de periódicos e obras artísticas em inúmeros exemplos, mais ou menos conhecidos na posteridade, foram impedidos de ser veiculados parcialmente ou em sua totalidade, única e exclusivamente por abordar temas considerados transgressores da moral e dos bons costumes adotados pelo Estado.

Além de reforçar o entendimento de um papel de transformação social ligado às artes, este período também evidencia que não há exclusividade ou hierarquia definida entre os campos de disputa em um período de grande acirramento político, fato facilmente observado na conjuntura política atual em exemplos como os episódios da performance do artista Wagner Scwartz no MAM, em São Paulo e da exposição Queer Museum, em Porto Alegre. Além da arena tradicional, representada por agentes políticos conhecidos e por ideologias definidas, o campo simbólico característico do processo artístico cumpre um papel fundamental como forma de expressão, crítica e difusão de ideias e sofre as pressões exercidas por todos os lados que buscam espaço (dado o seu caráter plural), a hegemonia ou o monopólio do discurso dentro deste campo.

Para levantar e apresentar esta discussão, o Sesc 24 de maio realiza, entre os dias 11 e 15 de abril, o projeto Lado B da Censura, com shows de Benito de Paula, Luiz Ayrão e Odair José, todos eles com suas histórias e trajetórias artísticas marcadas por episódios de censura durante o período militar, seja ela de motivação moral ou político-ideológica. Nesta programação, os artistas apresentarão os trabalhos e as canções que foram alvo de controle do Estado e também compartilharão as suas experiências como artistas e cidadãos deste período.

Fernando Viana
Historiador formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Atua como Assistente da Área de Música da Gerência de Ação Cultural do Sesc SP