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Cena do espetáculo “Ponto Corrente” do grupo Pontos de Fiandeiras.
Cena do espetáculo “Ponto Corrente” do grupo Pontos de Fiandeiras.

Apreciação Crítica do Espetáculo “Ponto Corrente” do grupo Pontos de Fiandeiras.
Mostra de Teatro Político no ABC: identidade e resistência.
Apresentação no teatro do Sesc Santo André – 8 de abril de 2018. 

 

A resistência é uma condição de
intransigência cujas qualidades
costumam gerar revitalização
e certa beleza pela radicalidade
vibrante que se opõe à submissão.

Hugo Achugar


A peça Ponto Corrente, do grupo Pontos de Fiandeiras, através das palavras da talentosíssima Adélia Nicoletti dá voz às mulheres militantes do ABC paulista, tendo sido criada a partir do que a própria autora nomeia de composição rapsódica: uma dramaturgia tecida em alicerces de origens diversas. Para isso, a seleção de uma vasta iconografia, filmografia, trechos de textos que serviram à essa criação, bem como relatos de personagens reais, fizeram parte e constituem esse tecido aparentemente fragmentado de materiais, mas que ao bom conhecedor da forma de se fazer teatro no ABC traduz em palavras muito bem amarradas um autêntico processo criativo colaborativo.  Hugo Achugar é um escritor, ensaísta e pesquisador uruguaio.
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¹Hugo Achugar é um escritor, ensaísta e pesquisador uruguaio.


O grupo, fundado na mesma região, carrega em si trajetórias distintas de artistas locais que tiveram a Escola Livre de Teatro como um ponto de convergência entre suas formações, escola esta que se configurou como um espaço formativo crítico, gestado em 1989 em Santo André, fruto da tentativa de abertura nos anos pós ditatoriais de uma gestão cultural pautada em ideais democráticos e baseada no conceito de cidadania cultural como eixo de suas propostas, tendo feito parte de um amplo projeto de descentralização e democracia culturais pertencentes à primeira gestão de Celso Daniel.

Camila Shunyata, Roberta Marcolin Garcia, Vivian Darini e Fernanda Henrique são as atrizes criadoras deste processo, acompanhadas de Jé Oliveira ocupando a função da direção. Olhar para essas mulheres no palco me fez lembrar os anos 2000 na ELT onde as conheci e pude vê-las pela primeira vez. Se antes elas já possuíam o brilho no olhar de uma utopia vindoura, hoje os mesmos olhares preenchem-se da força do reconhecimento tanto da condição feminina como atrizes, mulheres, mães e artistas, que são, como do lugar de onde partem suas vozes, revelando a maturidade das escolhas para esse processo. A escolha pelo ABC como tema concreto de construção de memórias e narrativas denota o entendimento da importância desse lugar, de onde partem não apenas as experiências pessoais e suas respectivas trajetórias artísticas, mas o peso que carrega este chão, internacionalmente reconhecido como berço das lutas políticas de esquerda no Brasil.

A forma épica, pautada no momento do encontro entre aqueles que ocupam o lugar de onde o teatro é feito com os que ocupam o lugar de onde ele é visto, em diálogo franco e direto, é assumida em contraposição à ideia de ilusão provocada pela quarta parede da forma dramática. Apesar de repetirem, por diversas vezes, que o que vemos ali é teatro, a semelhança e atualidade do que estamos passando frente a um novo golpe desde 2016, remete à realidade intrínseca e inexorável de nossos tempos, tornando plenamente significativa a presença desse espetáculo dentro da mostra Teatro Político no ABC: Identidade e Resistência, promovida pelo Sesc Santo André. Em certo momento o texto relembra a potência e homenageia as lutas através das obras representadas pelo Teatro de Alumínio, um importante grupo que se constituiu, historicamente, como um marco de resistência cultural no município de Santo André em meio ao regime cívico-militar instaurado em 1964. Como uma espécie de espelho da nossa própria experiência ao assistir a peça, ampliando a compreensão de que o futuro não se constroi sem a perspectiva resultante da leitura dos fatos que vieram antes de nós, a contextualização e análise críticas, constantemente presentes na obra dessas mulheres se tornam extremamente caras e urgentes aos nossos dias atuais.

Tendo o teatro nô como uma das inspirações dramatúrgicas através da história de três personagens mortas, a obra dá voz a todas que sofreram violentas perseguições políticas pela ditadura militar. A primeira, uma jovem militante da periferia de Mauá, do bairro Jardim Zaíra, Maria da Fé, que constituiu suas batalhas através do movimento estudantil e popular em seu bairro, é morta junto a seu pai, também militante. Como observa Gilda Waldman , ao retratar a violência sofrida por mulheres na ditadura chilena, mesmo não ignorando que as práticas de tortura tenham sido realizadas em corpos masculinos e femininos, as ações violentas sofridas por esses últimos manifestavam-se nas formas de repressão psicológicas e, frequentemente, sexuais. A segunda história, de Maria Auxiliadora, militante clandestina presa no município de Santo André, apresenta justamente tais pontos, seja através da participação dos filhos como objetos de tortura ou permitindo-os que vissem a mãe sendo torturada, seja sob o sadismo presente na invasão dos corpos femininos através do estupro como forma de tortura. A terceira história, de  Maria da Graça, moradora do município de São Bernardo do Campo, retrata a batalha sob outra perspectiva, dando visibilidade a militâncias invisíveis, como a de mulheres que não participavam da linha de frente, mas atuavam ativamente como apoio, recolhendo alimentos e preparando-os para a manutenção das lutas nas greves ou dando o suporte necessário para a permanência do cotidiano dos filhos durante a ausência de seus companheiros.

As três histórias gritam em nome de outras tantas memórias, que como estas, foram dissipadas, seja porque se fez questão de tentar fingir que esse momento tão vergonhosamente bárbaro nunca existiu, para que os culpados pudessem permanecer ilesos e ostentarem seus
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²Gilda Waldman é uma socióloga chilena e doutora pela Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). É autora do artigo intitulado Narrativas de Memória e Violência - Alguns itinerários da literatura chilena das últimas décadas, publicado na Revista Observatório Itaú Cultural – 22a edição (maio/novembro 2017).


nomes como herois da nação em avenidas principais de nossas cidades, seja pelo machismo intrínseco ao nosso processo histórico, que privilegia a representação masculina quando o assunto são as relações de poder, permitindo com que se apaguem dessas folhas as histórias de tantas mulheres, que como essas, perderam suas vidas em nome da luta pela democracia.

O espetáculo deixa bastante claro o ponto de vista de que uma das mais importantes formas de resistência passa pela batalha por outras possibilidades de construções de narrativas, ainda mais quando sabemos da manipulação desenfreada das mídias no que diz respeito à formação de opinião acerca da interpretação dos fatos. A verdade precisa ser contada e recontada a tantas e tantas pessoas que puderem ouvir, enquanto se puder falar. Sobre isso, empresto as palavras de Piscator ao afirmar que a literatura teatral "deve ser real, real até o fim, verdadeira até a inescrupulosidade, se quiser refletir essa vida. Mas terá de ser muito mais real, muito mais verdadeira se pretende introduzir-se nessa vida como força motriz" . Para ele é a expressão da verdade que age no sentido revolucionário e essa força é vista no palco em Ponto Corrente, nesse encontro teatral pautado na narrativa destas barbáries que não podem ser esquecidas jamais, para que possamos não permitir que aconteçam novamente. Por fim só tenho a agradecer a resistência dessas mulheres que mantêm a sua militância e o seu posicionamento diante de tudo o que tem acontecido em nosso país.
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³Trecho extraído do livro Teatro Político de Erwin Piscator. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1968.


Por Thaís Póvoa.