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A todo vapor

Se o ano de 1968, em especial o mês de maio, é lembrado mundo afora pelos confrontos entre a polícia e os movimentos estudantis e sociais, principalmente na França, no Brasil a data também vem à memória pela fortíssima ebulição cultural. Em poucos momentos da história a cultura brasileira recepcionou num curto espaço tamanho número de obras marcantes – e, algumas delas, hoje clássicas.

Em especial a música, as artes visuais, o teatro e o cinema colocaram em circulação não somente obras artísticas, mas também ideias e conceitos, muitos deles ainda hoje presentes na sociedade brasileira. Foi uma feliz conjunção de linguagens, capaz de pôr o Brasil, por intermédio da cultura, entre os principais atores da cena mundial.

À ebulição cultural se soma, no Brasil de 1968, a movimentação da sociedade em oposição ao regime militar instaurado quatro anos antes. Como em outros momentos de aguçamento político, também a cultura se colocou fortemente em defesa das liberdades civis, ainda mais que em dezembro daquele ano é editado o Ato Institucional nº 5, cujo teor, entre outras medidas, marcava o recrudescimento da censura.

Passados 50 anos, 1968 é lembrado não apenas pelos confrontos políticos, mas principalmente pelas obras artísticas deixadas como herança à sociedade.

Espectadora e participante de diversas manifestações políticas e artísticas do período, ao analisar os acontecimentos 50 anos após sua eclosão, a filósofa Olgária Matos, professora da Universidade de São Paulo (USP), relaciona a organização dos estudantes na França e no Brasil, apesar das diferenças entre os países: “O que os unificou foi a palavra de ordem contra a Guerra do Vietnã e ter sido um movimento predominantemente de jovens estudantes, operários franceses e emigrados, mas no Brasil com menor presença operária”.

 

Geração tropicália

Pôster Tropicália

 

Era, portanto, um período movido a tensões políticas, sociais e artísticas. Nessa conjuntura, “a densidade simbólica se torna particularmente evidente, especialmente para artistas, intelectuais, estudantes, trabalhadores, políticos civis e ativistas”, enumera Christopher Dunn, no livro Brutalidade Jardim – A Tropicália e o Surgimento da Contracultura Brasileira (Unesp, 2009).

A Tropicália sinalizava para o verbo congregar, esgarçando o que podia separar a música erudita da música popular, reverberando no pop, nas artes visuais e na poesia. Digno de nota foi o álbum Tropicália ou Panis Et Circensis, que extrapolava em muitos sentidos o que representava a música. A majestosa capa, fotografada por Olivier Perroy, francês que vive no Brasil desde 1940, trazia uma releitura daqueles retratos do almoço de domingo, mas com uma família composta por Caetano Veloso, Rogério Duprat, Os Mutantes, Gal Costa, Gilberto Gil, Tom Zé e Torquato Neto. O design e o grafismo da capa são uma criação de Rubens Gerchman.

O disco é composto de 12 faixas, entre elas Geleia Geral, Baby e Lindoneia, letra de Caetano interpretada por Nara Leão e inspirada no quadro A Bela Lindoneia ou Gioconda do Subúrbio (1966), também de Gerchman. Era a união de duas linguagens – música popular e artes visuais. Uma tela inspirava uma canção. O que anteriormente já havia ocorrido, dado que o nome Tropicália, nome de batismo do movimento musical, é retirado de obra homônima do artista plástico Hélio Oiticica.

Lançado em agosto de 1968, o álbum “demarcou uma fronteira importante na canção moderna brasileira, e abriu possibilidades de diálogo com a poesia moderna e com a música pop e de vanguarda erudita, que influenciaram a música brasileira desde então”, reconhece Marcos Napolitano, professor da USP e pesquisador de história da cultura, com ênfase nas relações entre história e música popular. O poder agregador e o valor simbólico dessa obra continuam a inspirar gerações. Basta citar um exemplo de sua atualidade: em 2014, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul o incluiu na lista de leituras obrigatórias de seu vestibular.

Capa Álbum Tropicália ou Panis Et Circensis

 

Imagem, som e letras

Desde o início da década de 1960 o cinema brasileiro oferecia obras de forte impacto, inclusive com repercussão internacional. Em 1968 não seria diferente. O jovem cineasta catarinense Rogério Sganzerla surpreende crítica e público com o hoje clássico O Bandido da Luz Vermelha, visão bem-humorada e sarcástica sobre a realidade brasileira. O filme tornou-se ícone do que seria chamado de Cinema Marginal – aquele com baixíssimo orçamento e de temática urbana, sob inspiração da contracultura. O bandido do título de fato existira e fora transformado em símbolo de rebeldia pelo cineasta.

 

Cena: O bandido da luz vermelha

 

Munidos de pensamentos transformados em expressões artísticas marcantes e simbólicas, os realizadores brasileiros expandiram os limites entre arte e público. Na literatura, o riso explodiu com Febeapá – Festival de Besteira Que Assola o País, de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do cronista Sérgio Porto, reunindo textos de 1966, 67 e 68 – respectivamente Febeapá 1, 2 e 3.

A professora associada do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Maria de
Fátima Morethy Couto reforça que as manifestações de 1968 acentuaram a necessidade de uma tomada de posição política por parte do artista. “Isso se dá, nos anos 1960, por meio de crítica às instituições artísticas e suas instâncias de legitimação, pelo uso do corpo como suporte para a arte, pela ênfase na participação do espectador”, observa.

Maria de Fátima cita Hélio Oiticica, que “claramente se destaca”, no panorama, com a obra Tropicália, exposta pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) em abril de 1967, mas sugere outros realizadores importantes, como Artur Barrio, artista português que vive no Rio de Janeiro, e suas Situações – série de intervenções urbanas realizadas com material orgânico – e o gaúcho Pedro Escosteguy, graduado em medicina, que trabalhava com poesia, pintura e escultura dando vazão a uma “obra contestatória”, qualifica.

A força de 68 foi tema, contexto ou pano de fundo para diversas manifestações artísticas ao longo dos últimos 50 anos. No campo da sétima arte um exemplo é o documentário recém-lançado Rogério Duarte, o Tropikaoslista, dirigido por Walter Lima. Designer gráfico, compositor e poeta, Duarte, morto em 2016, é autor do cartaz vermelho de Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), além de assinar capas para discos de Gal Gosta, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Preso em 1968 pela ditadura militar, o designer foi torturado e, posto em liberdade, esteve internado em hospitais psiquiátricos até 1971, quando retomou suas criações e vida acadêmica.

O documentário foi pensado “pela lente da minha vivência naquele período. É uma síntese dos movimentos da contracultura”, define Walter Lima, um dos criadores do grupo experimental de cinema da Bahia, em 1960, e assistente de direção de Meteorango KidO Herói Intergalático (André Luiz Oliveira, 1969), forte representante do Cinema Marginal brasileiro. “Cinquenta anos depois de 1968, vimos que pouca coisa mudou neste país. Os fatos ocorridos naquela época fizeram uma verdadeira revolução comportamental. Foi um período rico de efervescência cultural de uma intensidade gigantesca. O que vemos hoje é uma sociedade robotizada pelos meios de comunicação de massa, em que a vanguarda artística não existe mais”, opina Walter Lima.

 

Cena Meteorango Kid – O Herói Intergalático

 

É proibido proibir

Instigados pelos acontecimentos sociais, artistas brasileiros
marcaram posição política em suas obras depois do golpe militar

 

Artes Visuais

A década de 1960 foi marcada pelo “além quadro”, com Hélio Oiticica dando corpo às placas coloridas sustentadas por fios (Bilaterais e Relevos Espaciais), a obra Tropicália e Seja Marginal, Seja Herói, a bandeira-poema de Oiticica criada em 1968, integrante da série Marginália. Waldemar Cordeiro inovou com a sua arte eletrônica. O Grupo Rex, criado por Geraldo de Barros, Nelson Leirner e Wesley Duke Lee, problematizou o sistema da arte. Desafiando o autoritarismo vigente, o espaço público e o coletivo simbolizavam a resistência dos artistas.

Teatro

Figura de proa da dramaturgia, Zé Celso Martinez Corrêa – com base no Teatro Oficina –, questionava o público e o teto de vidro entre a sociedade e a ditadura que se estabelecia. Em 1968, o diretor monta Roda Viva, baseado em texto e músicas de Chico Buarque. Estreia no Rio, mas em São Paulo é vítima de ataque dos membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que batem nos atores da montagem, entre eles, Marília Pêra e Rodrigo Santiago.

Cinema

O Bandido da Luz Vermelha, lançado em 1968, foi a entrada sem freio de Rogério Sganzerla como diretor, aos 22 anos de idade. Chamado pelo cineasta de “faroeste do Terceiro Mundo”, o filme baseado na história de João Acácio Pereira e sua incrível ficha criminal, atualizada diariamente pelos jornais da época, ganhou público e crítica. O jeito único de Sganzerla movimentar a câmera ao filmar a cidade de São Paulo continua referência no audiovisual.

Música

É o ano dos tropicalistas. Ao apresentar a canção “É Proibido Proibir”, no Festival da Canção, Caetano Veloso é vaiado pelo público. Ele revida, em discurso: “Vocês não estão entendendo nada”. Nelson Rodrigues escreveu em crônica: A vaia selvagem com que o receberam já me deu náusea de ser brasileiro”. Entre os lançamentos brasileiros da época: Tropicália ou Panis et Circencis, e os álbuns Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal, Jorge Ben.

 

Para todos os gostos

Programação destaca 1968 em diferentes contextos
e debate desdobramentos atuais daquele período

Foto: Tangopaso


No Centro de Pesquisa e Formação o foco é analisar o ano de 1968 pelo filtro de 2018. Para isso, estarão reunidos pesquisadores e pensadores de diversas áreas para dissecar desdobramentos. O seminário 1968: Meio Século Depois contará com o ator e diretor José Celso Martinez Corrêa, a atriz e diretora Helena Ignez, o escritor e jornalista Zuenir Ventura, os professores Walnice Nogueira Galvão, Leonardo Esteves, Adriane Vidal, Renato Luiz Sobral Anelli e Evelina Hoisel, a arquiteta e urbanista Fernanda Barbara, a curadora Fernanda Pequeno, o artista plástico José Resende, a psicanalista e atriz Cecilia Thumim Boal, entre outros. As mesas serão realizadas entre 7 e 9 de maio. Dando fôlego à conversa, haverá exibição de filmes sobre o período, como parte da programação do Cine Rodízio.

Na unidade Bom Retiro, 1968 será o combustível das atividades da Virada Cultural, entre 19 e 20 de maio. A ideia é que a programação dialogue com as motivações e a estética dos movimentos artísticos. Vai ter cinema, artes visuais, oficina de xilogravura, teatro, intervenções literárias e de dança. No mês de junho (14, 15 e 16) haverá um encontro especial sobre o disco Tropicália ou Panis et Circensis, interpretado pelas cantoras Alice Caymmi e Rubi.

 

 

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