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Viajar para transformar

Vale do Jequitinhonha/ Foto: Ana Du

 

Conhecer os rincões de um país, suas riquezas naturais e culturais pela ótica de comunidades locais conquista novos turistas

Voltar de uma viagem com algo além de suvenires, fotografias e ímãs de geladeira é o que tem feito um crescente número de turistas em todo mundo. Para além das recordações materiais que alimentam a memória, na bagagem desses viajantes há outro elemento: uma vivência sensorial, única e inesquecível. É que, nos últimos anos, a experiência se tornou um diferencial para os viajantes. “Cresce a ideia de não haver mais o foco em serviços ou bens, mas na experiência. Já há vários estudos apontando que esta é a principal motivação das viagens turísticas”, analisa o pesquisador Sidnei Raimundo, professor do Programa de Pós-graduação em Turismo da Escola de Arte, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each-USP).

Por esse motivo, o turismo de base comunitária tende a ganhar destaque. Isso porque o segmento propõe uma troca de vivências, saberes e manifestações culturais próprias do lugar visitado. Além disso, ele é impulsionado por: geração de renda direta à comunidade, afirmação da cultura de uma região, entre outros impactos positivos. Ao mudar essa relação entre visitante e anfitrião, o turismo comunitário torna-se, segundo Sidnei, uma mudança de paradigma.

A nova abordagem ganhou força a partir dos anos 1980. Primeiro, devido ao processo de redemocratização nos países latino-americanos e, segundo, pela difusão do conceito de economia solidária no ano 2000, definida pela não competição e pela solidariedade entre os agentes econômicos. “Trata-se da oportunidade de vencer a lógica do turismo tradicional de massa para uma nova forma, na qual a comunidade é protagonista da gestão das atividades, e o turista é convidado a ‘mergulhar’ e interagir com os conhecimentos locais”, complementa o pesquisador.

 

Cananéia / Foto: Manufatura de Ideias

 

De gente para gente

Foi com esse objetivo que a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, no município de Nova Olinda (CE), criada em 1992 pelo historiador e educador Alemberg Quindins, resolveu alavancar o turismo na região. No local que é um acervo mitológico e arqueológico da Chapada do Araripe, a visitação era de 30 mil visitantes por ano, em média. E muitos deles demonstravam intenção de passar mais dias na cidade. Foi aí que Quindins repensou de que forma oferecer uma melhor estrutura para receber os viajantes e ainda promover impactos sociais positivos para os moradores do município. “O turismo de base comunitária surgiu como uma ferramenta social inclusiva de integração entre educação e geração de renda para as famílias das crianças atendidas pela fundação e comunidade em geral”, conta.

Como resultado desse trabalho, a pequena Nova Olinda já foi reconhecida com a comenda da ordem do me´rito cultural do Ministe´rio da Cultura e, em 2017, recebeu mais de 59% de turistas de fora (principalmente região Sudeste), beneficiando famílias que têm pousadas domiciliares, além de restaurantes e lojas de artesanato locais. “Com suítes nos quintais de suas residências, os pais das crianças e jovens que participam da Fundação Casa Grande oportunizam uma imersão social na vida do sertanejo, repartindo sua morada, seu alimento e suas histórias, construindo amizade e pacificando o mundo”, defende Quindins.

De norte a sul do país, outros exemplos mostram que esse tipo de iniciativa reverbera nas comunidades. É o que ocorre com cerca de 20 espaços rurais do interior de Santa Catarina que se tornaram destinos turísticos. Criada em 1999, pela engenheira agrônoma Thaíse Guzzatti, a Associação Acolhida na Colônia é uma ONG composta por 180 famílias de agricultores familiares que promove o agroturismo em pequenas propriedades rurais. A ideia, segundo Guzzatti é mudar um quadro de migração da população mais jovem, escolas fechadas, estradas deterioradas e falta de opções de geração de renda.

“Com o turismo conseguimos inverter esse fluxo. Em vez de pessoas saindo, temos pessoas vindo para o interior, valorizando e fazendo movimentar o campo. Essas pessoas trazem novos conhecimentos e, muitas vezes, um engajamento social importante para defender a causa dos agricultores e agricultoras locais”, destaca Thaíse. “Além disso, há o resgate da autoestima dos sujeitos do campo e a promoção da valorização desse trabalho e papel na salvaguarda de recursos naturais e culturais, da paisagem rural, além da produção dos alimentos de qualidade.”

 

Mapear e crescer

No entanto, apesar do imenso potencial desse segmento do turismo no Brasil, ainda há grandes desafios pela frente. Desde a precariedade da infraestrutura de muitas comunidades para receber visitantes à deficiência na divulgação e comunicação dos destinos. Além disso, muitas ações não conseguem sair do papel por falta de investimento público ou privado. Para atender a essa demanda foi criada, em 2012, a primeira plataforma de financiamento coletivo do Brasil dedicada a projetos de turismo sustentável. Com sede em São Paulo, a Garupa conseguiu arrecadar R$ 280 mil de 750 doadores e viabilizar 11 projetos, até 2015.

“Mas, ao longo dos anos, ampliamos nossa linha de atuação a fim de impactar mais destinos e comunidades, e de comunicar a nossa causa a um público mais amplo. Com isso, o crowdfunding passou a ser uma estratégia de ação conjugada a outras, e não mais uma atividade fim”, explica a diretora-executiva da Garupa, Mônica Barroso.

Como Organização Social de Interesse Público (Oscip), a Garupa tem outras frentes de atuação, como a divulgação de destinos no Guia Garupa do Brasil Autêntico (veja sugestão de destinos no boxe Vai pra onde?), além de organizar expedições e consultorias para comunidades com potencial, ela mapeia e divulga locais que visam proporcionar experiências autênticas de imersão social aos turistas.

Do outro lado da “bancada” está o viajante, que, nesse novo contexto, pode não ter o mesmo pacote fechado de viagens. Ou seja, a ideia é ter a oportunidade de escolher e fazer, a seu modo, um roteiro das férias com momentos de descanso, mas também de aprendizado e trocas. “Embarcar em uma experiência de turismo comunitário não é algo para quem quer fazer o bem, mas para qualquer um que queira desbravar novos territórios de relações e buscar autoconhecimento com responsabilidade socioambiental”, complementa Mônica. “Viajar dessa forma não apenas contribui com o desenvolvimento do local, mas conecta as pessoas. A transformação é para todos.”
 

 

Vai para onde?

Destinos que transformam uma viagem em experiências de impacto social, econômico e cultural


Aprender  a fazer um prato paraense tradicional, revolver a terra para cultivar mudas de manjericão numa favela, aprender a pescar com caiçaras… São muitas as opções para quem pretende imergir no turismo comunitário brasileiro. E você, já escolheu o seu próximo destino?


Belém (PA)
No roteiro Segredos e Temperos da Amazônia, o visitante participará de uma imersão sensorial. Além de degustar a variedade gastronômica da região, ele vai colocar a mão na massa com a comunidade local. Na programação: visita ao mercado Ver-o-Peso, oficinas de culinária e confecção de biojoias, trilha na floresta amazônica e acomodação em pousadas comunitárias. Entre os impactos positivos desse destino estão: a geração de emprego e de renda, a preservação ambiental e do patrimônio cultural, além do aumento da autoestima da comunidade.
saiba mais vivejar.com.br/pt/roteiro/segredos-e-temperos-da-amazonia

Morro da Babilônia (RJ)
O roteiro ReVer o Rio mostra aos visitantes uma nova perspectiva do Rio de Janeiro. No Morro da Babilônia, o projeto Favela Orgânica busca modificar a relação das pessoas com os alimentos, evitar o desperdício e promover cuidados com o meio ambiente por meio de palestras e oficinas. Na programação: oficina de culinária, apoio às hortas comunitárias locais e passeio para conhecer a comunidade. Um roteiro que aborda as idiossincrasias e a ebulição cultural da favela, além de uma experiência de alimentação saudável e sustentável.
saiba mais vivejar.com.br/pt/roteiro/rever-o-rio

Cananeia - Ilha do Cardoso (SP)
A apenas 300 quilômetros da capital paulista, é possível se desconectar do mundo, curtir 18 km de praia deserta e cachoeiras da Mata Atlântica. Um paraíso preservado pelos 80 moradores da comunidade do Marujá, onde não há sinal de internet ou celular, mas há a oportunidade de passear de bicicleta pela praia, fazer trilhas e conviver com a comunidade e suas manifestações culturais – música de fandango, receitas com peixes frescos, artesanato local e pesca artesanal. Dessa forma, os moradores contornaram a especulação imobiliária e implementaram o turismo de base comunitária; os preços dos serviços e produtos são determinados em grupo; e a renda é distribuída igualmente entre as famílias.
saiba mais garupa.org.br/guia-garupa/maruja-ilha-do-cardoso

Vale do Jequitinhonha (MG)
É na comunidade de Campo Buriti, a cerca de 200 quilômetros de Diamantina, que estão algumas das mais famosas artesãs que produzem as bonecas de cerâmica do Vale do Jequitinhonha. E no roteiro Do Barro à Arte, são elas quem recebem os visitantes em suas casas e os ensinam de onde extrair o barro, técnicas e instrumentos de molde, bem como o processo de pintura. Além disso, uma curadora de arte acompanha o passeio e contextualiza o artesanato local por meio de rodas de conversa e troca de impressões entre os participantes. Uma experiência que gera fonte de renda para a comunidade, empodera as mulheres chefes de família e estimula a participação das jovens na dinâmica das visitas turísticas.
saiba mais garupa.org.br/guia-garupa/barro-a-arte-vivejar

 

 

Seminário, cursos e caminhadas propõem
debate sobre acesso e práticas desse setor


Quais os impactos gerados pelo turismo? E como ser turista na própria cidade? Essas são algumas das questões que serão discutidas em diversas ações ao longo deste ano pelo Sesc São Paulo, que celebra sete décadas de seu programa de Turismo Social. “Desde 1948, quando foi inaugurada a colônia de férias em Bertioga, nossas ideias evoluíram e nossos equipamentos foram modernizados, assim como nossos conceitos de atuação. Para nós, o turismo social é parte de um contexto maior, a educação permanente, a qual se integra a outros programas das áreas de cultura, esportes, saúde e meio ambiente”, explica Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo. 

Tendo em vista a necessidade de refletir sobre esse setor que gera sete milhões de empregos e movimenta 206 milhões de viagens domésticas por ano, segundo dados divulgados pelo Ministério do Turismo, neste mês será realizado o Seminário Internacional Turismo e Direitos num Mapa de Contradições, no Sesc 24 de Maio.

De 12 a 13 de junho, especialistas em turismo, representantes de setores diversos que se dedicam às esferas da educação, diversidade, patrimônio, políticas públicas, consumo e urbanismo irão debater as relações entre turismo e direitos humanos. Associada à programação do seminário, haverá caminhadas pela cidade de São Paulo que buscam fomentar interpretações  e  o pensamento  crítico  sobre  o  território  paulistano.

Ilustração: Elisa Carareto

 

“Para o Sesc, o turismo é um meio para despertarmos a consciência histórica, ecológica e comunitária não apenas dos viajantes, mas também dos anfitriões e das empresas que fazem parte desse processo de contatos e trocas simbólicas e materiais que ocorrem nesta ampla vivência turística compromissada com a sustentabilidade social. Democratizar o turismo é diversificá-lo, qualificando a sua experiência”, complementa Danilo Miranda.
 

 

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