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Arquitetura escolar

Quando se é criança ou adolescente, o itinerário casa-escola concede ao segundo espaço o status de “segundo lar”. Cercado ou amplo, com ou sem jardins, de que forma o local onde se dá o ensino de novos conteúdos pode interferir na apreensão de conhecimento e na formação de jovens indivíduos? “O convívio cotidiano com a materialidade dos espaços individuais e coletivos, organizados pela arquitetura [escolar], assume peso importante na produção das identidades infantis, do que implica ser aluno/menino e aluna/menina e de como devem ser seu comportamento e atitude em cada espaço”, ponderam Diana Gonçalves Vidal, pesquisadora e professora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), e Samira Chahin, arquiteta e urbanista. Historicamente, a partir da década de 1940, sob o prisma da arquitetura moderna, passa-se a fazer uma oposição à arquitetura eclética e neoclássica, que seguia um modelo europeu, para que questões sociais fossem incluídas no projeto de construção de escolas públicas em São Paulo. “A incidência de espaços mais abertos nas construções desta corrente era intencional, pois buscava garantir o contato dos estudantes com a natureza e com a vida da comunidade onde a unidade de ensino estava inserida”, destacam os historiadores e pesquisadores Mauricio Dias Duarte e Monica Mantovani Goulart. Sendo assim, como a arquitetura escolar pode favorecer, ou não, o ensino? Vidal e Chahin, além de Duarte e Goulart, participaram do debate Arquiteturas que Ensinam: Arquitetura Escolar e Educação, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em fevereiro, e refletem sobre esse tema.

 

Arquitetura escolar e educação


Diana Gonçalves Vidal e Samira Chahin


Visitar lugares da infância e neles perceber-se adulto muitas vezes provoca confrontos entre as percepções do presente e aquelas registradas na memória. Quando crescidos, ao entrar na escola onde fizemos amigos, disputamos torneios de futebol ou vimos o primeiro longa-metragem, identificamos simultaneamente estruturas espaciais de sua arquitetura misturadas ao sopro das lembranças de experiências vividas nesse lugar. Se hoje caminhar pela escola da nossa infância pode nos levar a apreciações materiais sobre seu estado de conservação, as novas cores usadas nas salas de aula ou mesmo atentar para o estilo de sua arquitetura, também nos permitem as sensações de nos sentirmos gigantes em frente ao bebedouro, ou comprimidos em meio ao pequeno pátio onde antes corríamos como se estivéssemos num espaço amplo.

É nessa confluência entre lugar físico e simbólico que a arquitetura escolar interfere na constituição de nossa corporeidade e subjetividade; ou, de outro modo, ensina. Os esquemas perceptivos configurados a partir dos primeiros anos escolares na frequência em salas de aulas e pátios, no uso de carteiras escolares e banheiros, na distribuição entre bloco didático, administrativo e esportivo ou recreativo produzem um aprendizado corporal da posição de alunos e alunas e, em particular, de cada aluno e aluna na hierarquia escolar; da sua relação com o conhecimento acadêmico e do espaço individual que ocupam ou devem ocupar no mundo físico e social.

A aprendizagem escolar, assim, expande-se para além do currículo oficial, abarcando um conjunto de outros saberes subliminares, mas constitutivos do que especialistas têm denominado currículo oculto da escola. Por certo, a arquitetura é apenas um dos vários elementos que conformam o currículo oculto.

No entanto, o convívio cotidiano com a materialidade dos espaços individuais e coletivos, organizados pela arquitetura, assume peso importante na produção das identidades infantis, do que implica ser aluno/menino e aluna/menina e de como devem ser seu comportamento e atitude em cada espaço escolar ocupado – da sala de aula à biblioteca, sala da diretoria, pátio, banheiro. A perenidade da arquitetura, no entanto, não inibe alterações de forma e conteúdo desses espaços, por sucessivas reformas que reconfiguram as distribuições originais das plantas arquitetônicas para acomodar novas práticas escolares ou administrativas ou novas propostas pedagógicas; ou pela artimanha criativa dos usuários, que ressignificam os lugares nas imprevisíveis práticas de seu espaço – o beijo roubado no corredor projetado para ser passagem é um dos muitos exemplos.

Na análise da relação entre arquitetura e educação entram em conjunção ao menos três vetores. O primeiro relaciona-se diretamente com a história da arquitetura. Compreender as escolhas estéticas e construtivas de um edifício-escola implica posicioná-las no repertório acessível aos arquitetos em sua época para essa funcionalidade, nas discussões estabelecidas entre pares e nas expectativas manifestas pela sociedade quanto a soluções arquitetônicas oferecidas. Materiais e tecnologias se associam a concepções formais, bem como a entendimentos técnicos sobre a função social de um prédio público construído para ser escola.

O segundo vetor remete a outro conjunto de preocupações e a outro campo de disputas: o pedagógico. Considerações acerca do que significa aprender e quais os melhores métodos de ensino se entrelaçam a noções sobre o que é a comunidade escolar, como ela se constitui, se organiza e hierarquiza – marcadores de classe, gênero, raça e geração engendram essas escolhas nem sempre de modo explícito (quem são os sujeitos que a compõem); quais as expectativas projetadas sobre a escola na sua relação com a sociedade e a cultura; como isso varia na combinatória entre escolas urbanas e rurais, de educação infantil, ensino fundamental ou médio ou vários níveis, para o ensino regular, especial, profissional ou outras modalidades.

Por fim, o terceiro vetor refere-se ao termo oculto da equação “arquitetura + educação”: o sujeito ensinante e aprendente. Afinal, prédios escolares são condições necessárias para o exercício educativo, mas não são condições suficientes. Uma escola não existe sem os indivíduos que a frequentam em suas diferentes posições: alunos, alunas, professores, professoras, diretores, diretoras, funcionários, funcionárias, pais, mães. São esses sujeitos, também, os usuários dos espaços arquitetônicos, aqueles que transformam esses espaços em ambientes de aprendizagem, constantemente atualizando significados.

Nesse sentido, é preciso destacar que, enquanto a análise dos dois primeiros vetores nos lança na descoberta das condições de emergência dos edifícios-escola e, portanto, em tempos históricos demarcados, o terceiro vetor nos projeta no dínamo das mudanças operadas no decorrer de longos períodos temporais.

O Grupo Escolar da Penha, atual Escola Estadual Santos Dumont, por exemplo, foi criado em 1913 e ainda hoje permanece em atividade. E nesse mais de um século de funcionamento, as alterações pelas quais passou o projeto original foram muitas. Adaptações e reformas reconfiguraram espaços e modificaram funcionalidades. Nos materiais, ainda encontramos marcas originais dos primados construtivos, estéticos e pedagógicos que informaram a concepção do edifício, hoje transmutado em resposta às novas exigências educativas e arquitetônicas.

O que essa arquitetura híbrida ensina não está contido apenas na gênese do projeto. Camadas de história da arquitetura e da escolarização se sobrepõem e trazem marcas contrastantes. Interpretá-las é o desafio que supõe não só atenção às mensagens inscritas nas estruturas, mas àquelas inscritas nos corpos (e corações) dos sujeitos que frequentaram ou ainda frequentam esses espaços escolares. Supõe ainda o alerta de que não se pode deduzir o aprendido do ensinado, nem assegurar que se houve ensino há aprendizagem. É nesse jogo denso de significados e tenso em propostas que se exercita a trama entre arquitetura escolar e educação.

A aprendizagem escolar, assim, expande-se para além
do currículo oficial, abarcando um conjunto de outros
saberes subliminares (...). Por certo, a arquitetura é apenas
um dos vários elementos que conformam o currículo oculto

 

Diana Gonçalves Vidal é pesquisadora e professora de História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação.


Samira Chahin é arquiteta e urbanista, atua como educadora em programas para formação de professores com foco nas relações entre educação, arquitetura e cidade. É doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

 

Arquiteturas que ensinam


Mauricio Dias Duarte e Monica Mantovani Goulart


A nossa reflexão sobre a arquitetura escolar teve início quando nós, do Grupo Ururay – Patrimônio Cultural, desenvolvemos as pesquisas do projeto Territórios de Ururay. Esse projeto visava pesquisar a história de alguns patrimônios edificados tombados da Zona Leste da capital paulista e entender a relação desses patrimônios com a comunidade local. Nesse projeto estudamos duas unidades de ensino público estadual tombadas por órgão de preservação e localizadas na região, destacando peculiaridades na relação entre elas.

A escola mais antiga, dentre essas duas, data de 1913 e faz parte das intervenções do governo federal na educação durante o período denominado de Primeira República (1889-1930), que resultou na construção de várias Escolas Públicas primárias no Estado de São Paulo após a Proclamação da República (1889).
Antes dessa iniciativa do governo, havia poucos espaços especificamente voltados para a educação pública em São Paulo e no Brasil. Os locais destinados à educação no país, de forma geral, eram precários e improvisados. Muitas dessas instituições usualmente funcionavam na casa do professor ou em uma sala alugada.

O modelo arquitetônico (eclético-neoclássico) e o modelo educacional empregado nessas instituições seguiam o padrão europeu. O projeto das escolas obedecia a regras comuns, como a separação dos educandos entre áreas para meninos diferentes do espaço destinado às meninas, em uma distribuição simétrica da fachada e do prédio, com entradas independentes por gênero.

Como a demanda de escolas era grande e o custo deveria ser baixo, os projetos seguiam um modelo comum em diferentes cidades e regiões do Estado de São Paulo e a principal alteração de cada um era a fachada. Outra característica desses edifícios escolares era o pequeno número de áreas comuns, como aquelas voltadas a práticas esportivas, limitadas a um pátio, característica também presente na unidade da Zona Leste.

A outra edificação pesquisada é uma escola projetada do final dos anos 1940 e inaugurada em 1952, sendo parte de outra política pública para a construção de edifícios escolares, o chamado Convênio Escolar. Esse convênio foi uma parceria realizada entre o Governo do Estado de São Paulo e a Prefeitura da capital vigente durante as décadas de 1940 e 1950 para construir unidades escolares na cidade e diminuir, ou mesmo acabar, com o déficit de salas de aula na região. Por isso, ao contrário do modelo anterior, que possuía poucas salas de aula e pequena área construída, esse modelo contava com uma grande área térrea e mais dois pavimentos interligados por escadas e rampas largas e um maior número de salas de aula.

Vários profissionais foram contratados para conceber e desenvolver os projetos desse convênio. Muitos deles eram adeptos da chamada Arquitetura Moderna. Esse movimento de arquitetura dava especial atenção a questões sociais, fazia oposição à arquitetura eclética e neoclássica, que seguia um modelo de arquitetura europeia, em busca de uma arquitetura original.

A incidência de espaços mais abertos nas construções dessa corrente era intencional, pois buscava garantir o contato dos estudantes com a natureza e com a vida da comunidade onde a unidade de ensino estava inserida. A integração do bairro com a escola era algo primordial nesses projetos e a sua estrutura foi pensada para atender a comunidade onde as unidades seriam implantadas, daí a construção da escola com outros equipamentos culturais como os teatros, bibliotecas e piscina, pensados para usufruto do bairro.

A Arquitetura Moderna foi um movimento que representou uma resposta da arquitetura nacional à tradicional cópia de modelos europeus, sendo também, no caso das edificações em unidades de ensino, uma arquitetura que pensava a educação baseada no diálogo, na convivência e na integração do espaço educativo com a comunidade.

A presença dessas escolas na Zona Leste de São Paulo, em localizações tão próximas, com arquiteturas tão representativas e ainda funcionando como instituições de ensino públicas, forma um importante cenário para discussões e reflexões sobre a educação e sobre a interação das instituições públicas de ensino com a comunidade local, seja por suas concepções arquitetônicas, pela maneira como a comunidade escolar se apropriou desses espaços, seja pelas modificações e adaptações que as escolas passaram a incorporar nas últimas décadas e pelo modo como a comunidade lê esses espaços no bairro.

Buscando aproximar os projetos arquitetônicos das atuais discussões a respeito do território, o Coletivo Ururay vem procurando fomentar a visibilidade e a discussão a respeito desses espaços escolares, seja com roteiros de visitas aos patrimônios, parcerias, produção audiovisual, exposições e cursos onde não só são debatidos os projetos de concepção, mas também são levantadas reflexões sobre a escola e a relação desta com a comunidade, uma vez que entendemos a escola como parte do espaço comunitário.

Estudar, pesquisar e conviver com diferentes arquiteturas na cidade é uma oportunidade, portanto, de reflexão sobre a história da cidade, sobre as políticas públicas, políticas de tombamento e a forma como os espaços se constroem e reconstroem a partir de sua realidade local. O envolvimento social e as discussões sobre arquitetura são peças importantes ao orientar e estimular a participação de diferentes agentes na discussão sobre o reordenamento desses espaços e a busca de soluções para a ocupação de territórios e seus patrimônios.


A Arquitetura Moderna foi um movimento que representou uma resposta da arquitetura nacional à tradicional cópia de modelos europeus (...) uma arquitetura que pensava a educação baseada no diálogo, na convivência e na integração do espaço educativo com a comunidade

 

Mauricio Dias Duarte é pesquisador com ênfase
nos patrimônios históricos da Zona Leste de São Paulo,
historiador e membro do Grupo Ururay – Patrimônio Cultural.

 

Monica Mantovani Goulart é historiadora,
pesquisadora e integrante do Grupo Ururay – Patrimônio Cultural.

 

 

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