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Marcílio França Castro

Eles já sentiam falta − os primeiros escribas. Uma onda sobe por dentro, amarga, e logo toma o peito até a garganta, como um rio seco. Isso se dava sempre que faziam o seu trabalho, quando tinham que registrar alguma coisa na pedra ou no papiro. Século 6 a.C. Andrón, filho de Antífones, fazedor de dedicatórias e epitáfios, transcreve um canto de Homero.
Completa um verso, confere a linha, e logo sente um aperto, um mal-estar, como se sua mão roubasse o som natural das palavras. A voz do bardo, a voz que todos se acostumaram a ouvir, desaparece na ponta dos seus dedos, aprisionada pela escrita. Na sua cabeça, reverbera um eco sem vida. Andrón escreve − sente-se como um homicida. Séculos depois, nos monastérios, o trabalho de Andrón continua.Já tinham trocado o papiro pelo couro, manipulavam o códice; amavam a tinta do lápis-lazúli. Otlo, monge da abadia de Tegernsee, não conhece a Ilíada – copia salmos e um livro de horas, um livro que ele próprio copiou de outro livro, importado de uma biblioteca distante. Otlo passa a tarde concentrado, retido em sua cela, com a pena em punho. Desenha a asa de um anjo, uma tigela de ameixas, uma cabeça de serpente. Penitencia-se, copia mais. Otlo sonha com uma árvore da infância, quer tirar o hábito e andar nu, quem sabe perto do mar. Doem-lhe as pernas, dói-lhe a coluna e o pescoço − sua mão enrijecida parece conter todo o corpo. Na margem da folha, ele deixa um comentário sobre o seu cansaço, e murmura. Murmura palavras estranhas, que parecem vir de uma voz primitiva e distante − palavras que não estão no pergaminho.
(…)

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