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Ira! Reflete: Que rumo está tomando o bom e velho rock’n’roll?

Nasi e Edgard Scandurra falam sobre o passado, o presente e o futuro do rock e do próprio grupo
Nasi e Edgard Scandurra falam sobre o passado, o presente e o futuro do rock e do próprio grupo

O primeiro LP, “Mudança de Comportamento”, veio em 1985, quatro anos depois da formação da banda. Dele, saíram os singles “Longe de Tudo”, “Núcleo Base” e “Mudança de Comportamento”.

Com a trajetória marcada por sucessos e vários lançamentos, a banda Ira! anunciou seu fim em 2007, após uma “briga homérica”, como o próprio vocalista, Nasi, definiu nesta entrevista concedida ao Portal Sesc. Em 2014, para o delírio dos fãs, os músicos anunciaram a reconciliação e o retorno oficial do grupo aos palcos.

A banda integra a programação do projeto Pandemia Rock, do Sesc Birigui, deste ano. Nasi e o guitarrista Edgard Scandurra responderam algumas questões sobre o passado, o presente e o futuro do rock e do próprio grupo. Confira!

Nasi

São 30 anos desde o lançamento do álbum "Psicoacústica". O disco mistura elementos de gêneros musicais que vão além do rock. O que este álbum marcou na carreira do Ira!? E em que acha que ele contribuiu para a história do rock brasileiro?
O “Psicoacústica” foi um divisor de águas na carreira do Ira!. Nós viemos de dois discos que fizeram sucesso nas rádios, que tinham sons parecidos, que era um rock básico com influência do rock inglês, do power pop, do Mod. A expectativa da gravadora era que tivéssemos uma sequência disso, do “Vivendo e Não Aprendendo”, que teve três, quatro sucessos nesse estilo estourando nas rádios. Nós, com um sucesso adquirido, pudemos ter a independência de nos trancarmos durante meses no estúdio Nas Nuvens [famoso espaço criado pelo produtor Liminha e por Gilberto Gil, de onde saíram discos clássicos do rock e do pop-rock nacional] e produzimos um disco experimental, que quebrava vários paradigmas de sucesso. Muitas músicas não tinham um refrão, tinham longos momentos de instrumentalização, solos de guitarra. Enfim, para a gravadora foi um anticlímax. Pra gente, a realização de um trabalho extremamente autoral que não foi compreendido na época pelas rádios, pelo público que tinha na expectativa a sequência daquele som que a gente consagrou nos dois primeiros LPs. Mas, ao longo do tempo se tornou o disco mais elogiado da nossa carreira. Hoje, quando a gente vê listas dos melhores discos do rock brasileiro, o “Psicoacústica” sempre está. Além disso, o “Psicoacústica” foi uma autoprodução, foi um disco mixado praticamente a 6, 8 mãos; além do Paulo Junqueira, engenheiro de som, eu e o Edgar pilotamos as mixagens na época. Nós fomos os primeiros artistas da nossa geração a produzir e mixar nosso próprio disco, abrindo mão dos tradicionais produtores que dirigiram todas as grandes gravadoras.

Como você vê o rock brasileiro atual? Você destacaria alguma banda que tenha surgido na última década como boa representante do rock nos dias de hoje? Como acredita que será o futuro do rock nacional?
Olha, o Cachorro Grande é uma banda que nós gostamos muito. Eles têm mais de 10 anos, acho que por volta de 15. Bandas mais contemporâneas, eu destacaria duas: Garotas Suecas e O Terno. Hoje, o rock brasileiro vive outra realidade, não é um gênero que domina os sistemas de rádio FM, nem os programas populares de televisão, de auditório etc e tal, mas tem uma vida intensa nos festivais pelo Brasil, nas redes sociais, enfim, tem vida própria e independente, coisa que era muito difícil na nossa época.

O Ira! Teve um recesso de sete anos. Quais as vantagens e desvantagens dessa pausa para o grupo?
Olha, é difícil falar sobre vantagens e desvantagens. Porque o que aconteceu com o Ira! não é que a gente teve uma pausa, a gente teve uma briga homérica, né! E as bandas quando fazem isso, você não sabe qual vai ser o resultado quando você volta, se o público ainda vai ver relevância, se você volta da maneira certa... Então, o destino quis que o Ira! voltasse com bastante sucesso, com o público esperando ainda o nosso retorno, como se nós praticamente não tivéssemos parado. Agora, a vantagem, não digo vantagem, mas a coisa boa que a gente tirou dessa pausa, tirando as polêmicas e os escândalos, foi que, durante esses quase sete anos, eu e o Edgar, que somos alma da banda, pudemos desafogar nossos trabalhos autorais, nosso trabalho solo, e isso foi bom pra gente se realizar pessoalmente, para gente evoluir como artista, como músico, e também pra sentir saudade. E, quando voltamos, éramos artistas melhores, com mais conhecimento, com mais excelência musical, com mais expertise, e ao mesmo tempo com um tesão que na verdade nos faltou (o que levou a toda aquela confusão que nos fez parar).

O rock produziu cantores e cantoras que se tornaram verdadeiras lendas. Pode citar cinco vocalistas, entre brasileiros e estrangeiros, que você considera as grandes vozes do rock e que te marcaram de alguma forma?
Olha, é difícil você selecionar só 5! Mas vamos lá. Nacionais, eu destacaria Raul Seixas e Erasmo Carlos, e estrangeiros, os ingleses Eric Burdon, do The Animals, Joe Strummer, do The Clash, e o cantor de blues Howlin' Wolf.

Você tem uma coleção de discos de vinil. Quais os 5 LPs mais preciosos dessa coleção, e por que tem tanto apreço por eles?
1. “Mandrill” (Mandrill, 1970) – Mandril uma é uma banda de soul music, black music americana, que era muito cultuada. O disco tem uma espécie de babuíno na capa. Esse disco que é muito raro. O DJ Hum me deu de presente em agradecimento pelo trabalho que eu fiz com ele.

2. “King of Rock” (Run-D.M.C., 1985) – Do Run-D.M.C., eu tenho o single com “King Of Rock”. É da primeira fase deles. Eu consegui esse disco entre 1983, 1984, quando eu discotecava, por um amigo chamado Caito, e foi a primeira vez que entrei em contato com o rap, com o Hip Hop. Run-D.M.C. foi uma banda que misturou guitarras e baterias de rock com rap. Então, mudou minha cabeça.

3. “Live at Apollo” (James Brown, 1963) - Eu sou muito fã do James Brown. Esse disco foi uma produção independente dele, gravada na Apolo, uma casa de shows black music no Harlem. Esse é um disco ao vivo dele impressionante.

4. “A Revista Pop apresenta o Punk Rock” (coletânea da Phillips, 1977) - Sou um dos poucos que têm esse disco, que saiu lá no final dos anos 1970, despretensiosamente, lançado por uma revista de música chamada Pop, que foi o que me apresentou o Punk Rock praticamente. Lá tinha Ramones, The Jam, tinha Sex Pistols...  É uma coletânea nacional também muito rara.

5. “Electric Mud” (Muddy Waters, 1968) - Do Muddy Waters eu poderia citar vários discos, mas esse é um disco raro, é um disco psicodélico. E ele fez tentando se atualizar nos anos 1970, mas não gostou muito do disco... Ele está com uma bata meio psicodélica na capa, meio estranho pra um bluesman. Mas é um disco muito louco e eu usei inclusive samples dele no meu trabalho solo, “Onde os anjos não ousam pisar”.

Edgard Scandurra

Nos anos 1980, quando o Ira! surgiu, houve uma espécie de “pandemia” do rock no Brasil. Como era fazer rock naquela época e como é hoje, levando em consideração o amadurecimento musical de vocês e também os contextos histórico-sociais de cada período?
Nos anos 1980 surgiram várias bandas porque o rock estava muito em evidência. A cena que já vinha lá do final dos anos 1970 do punk era muito poderosa, muito forte, revolucionária. Uma energia que existiu nos anos 1960 com os Beatles e logo depois a psicodelia toda, com os festivais, com Jimmy Hendrix, acho que encontrou essa força arrebatadora e revolucionária também no punk, e esse punk gerou uma música pop, um rock por toda a década de 1980 com essa influência de novidade da New Wave. Claro que existem outros estilos, metal e tal, mas isso veio muito forte. Pegou muitas bandas, ainda no momento de abertura política, então existia um discurso mais politizado, com o final da censura, a censura meio que se despedindo. E era a música do momento, a música que estava na moda. Parece até pejorativo dizer isso, que era a música da moda. Era mais ou menos parecido com que com que hoje pode ser por um jovem fazer um funk ou fazer música eletrônica, produzir um rap. O rock era a bola da vez. Isso era muito bom para quem tinha talento. Surgiram bandas boas e num momento de sucesso, de onda, chamou a atenção das gravadoras. Era um outro universo que existia na época, as gravadoras eram de certa forma divididas com muita gente, passavam pelas mãos de muita gente, diretores, produtores de disco, divulgadores, engenheiros de som. Hoje em dia isso é tudo melhor, a tecnologia atravessou todos os contatos, você sozinho grava seu disco, você pode produzir o seu videoclipe, você pode fazer um monte coisas por sua conta com um time menor, mais reduzido, então eu percebo essas grandes diferenças.

Ainda complementando, sobre contexto histórico social de cada período, acho que, como eu falei sobre os anos 1980, aquela geração tinha um anseio democrático muito grande, como se fosse “agora é a vez dos civis, agora é a vez da oposição”. E esse espírito de oposição é sempre enriquecedor. Eu, como sou uma pessoa de esquerda, acho sempre mais enriquecedor você viver um momento que usa os anseios libertários, que têm mais a ver com esse espírito, do que com uma coisa liberal, de Capitalismo, de privatização e bla bla bla. E hoje a gente está nessa fase, né, essa fase triste dos jovens sem ideal pensando em capitalismo, em dinheiro, inconformados com invasão de imóvel, preocupados com a propriedade privada, sabe, sei lá, achando essas coisas absurdas. Isso aí faz uma grande diferença.

O rock tem astros que se tornaram os heróis do gênero, uma espécie de mitos inalcançáveis. Mas sabemos que a música não é feita apenas pelo que é mostrado nas TVs, sites, rádios e outras mídias de grande repercussão. Pode citar 5 guitarristas (entre brasileiros e estrangeiros, antigos ou da atualidade) que estão entre as principais referências suas e do Ira!, mas que não são tão conhecidos pela maioria das pessoas?
Os astros que se tornam heróis do gênero não necessariamente precisam aparecer na televisão. Eu acho que esses caras que são realmente muito bons deixam uma marca que às vezes você apenas num show. E, falando como músico, o cara pode modificar seu jeito tocar só de ver alguém tocando uma vez e nunca mais. Então, esse conceito de astro e de herói é muito questionável. Vou citar alguns caras importantes: o Miguel Barella, que tocou no Voluntários da Pátria, é um grande guitarrista, tocou com Agentss também, que é uma banda pioneira da música eletrônica no Brasil, do rock eletrônico; Andy Gill, que é um cara da Gang Of Four, uma banda inglesa que surgiu um pouquinho antes do Ira!, e ele desconstruiu conceito de solista, os solos deles são ruídos da guitarra, é um cara muito diferente e isso me pegou, veio como um sopro de novidade;  o Andy Summers, do Police, pode se dizer que ele é um astro e não deixa de ser um gênio, com o chorus, aqueles efeitos na guitarra, que imperaram na música brasileira, na internacional; o Lanny Gordin, né, brasileiro, é uma sumidade, um gênio, tive prazer de tocar com ele, os discos dele com a Gal Costa dos anos 1960/70 têm que ser ouvidos; e o Vivi Reilly, de uma banda inglesa chamada The Durutti Column, ele tem um timbre de guitarra muito peculiar, e a gente tem alguns pontos em comum, porque eu gosto de fazer umas afinações diferentes, como ele também faz, e eu descobri que ele estava fazendo música eletrônica e eu tenho meu projeto Benzina que estou desenvolvendo...

Você apostaria suas fichas em alguma banda brasileira de rock revelada nos últimos anos (ou de dez anos até agora)? Se sim, qual? E por quê?
O Terno é uma banda que pode fazer alguma coisa legal. O que a gente tem agora e que, com os ouvidos você ouve rock, mas com os olhos você vê pessoas que não têm nada a ver com rock, universitários, uma moçadinha descolada, uns hipsters, sabe, a identidade roqueira está um pouco perdida, diluída, então, não sei... Acho que nesse ponto também eu gosto d’O Terno, que tem estilo, o nome já diz tudo, as roupas, o jeito de todos do trio, do Tim Bernardes... Eu acho uma banda que tem futuro. Agora, as outras pessoas que têm futuro dessa geração dos últimos 10 anos não são necessariamente do rock. A Tulipa acho que tem um futuro incrível... E rock'n'roll, eu acho que o pessoal vai continuar ouvindo os anos 1980, 1990... Realmente está em falta.

O quanto e de que forma o Punk e o Mod ajudaram a te formar como músico e o quanto influenciaram na música do Ira!?
Olha, o Punk e o Mod formaram boa parte da minha criação musical e totalmente a minha integridade, minha personalidade, minha postura perante muitas coisas. O Punk foi um movimento musical muito íntegro, apesar de ter surgido de uma mentira do Sex Pistols (diziam que estavam lá só para tirar grana). Teve algo do punk que veio muito forte, tem um contexto social que acho que é parecido com o rap, sabe, que é parecida com essa música que vem de uma periferia, de uma certa simplicidade e de valores que não podem ser prostituídos. Isso pra mim foi muito forte. Vai ficando cada vez mais difícil, porque parece que os caminhos fáceis são os que dão certo depois de um certo tempo, você não tem porque dificultar e na verdade o que te forma mesmo são esses questionamentos. E o Mod me passou estilo e um valor juvenil para todas as coisas, tanto que é difícil envelhecer para um mod, mas é bacana também, porque tem seu charme, sua elegância. E isso tudo, essa mistura de conceito do Mod com ética Punk são os grandes formadores da minha personalidade, do meu caráter.

O Ira! Pretende lançar algo novo após a turnê de celebração dos 30 anos do “Psicoacústica”?
Sim, a gente precisa fazer um disco, fazer um belo trabalho para marcar, fazer parte da história da banda, para ter um uma discografia digna. Faz muitos anos que a gente não grava um disco, então tem que ser um disco muito bonito, pra manter essa “tradição inovadora”, se existe tradição em novidades assim. Mas vamos manter esse padrão de “Psicoacústica”, “Vivendo e não aprendendo”, “Mudança de Comportamento”, “Meninos da Rua Paulo”... A gente tem discos bonitos, então tem de ser um disco que dê prazer em ouvir e a gente vai fazer isso logo mais.