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É tudo ficção

Zama, filme mais recente de Lucrecia Martel, fez sua estreia mundial no lendário tapete vermelho do Festival de Veneza em 2017, conduzindo os espectadores pela história de um inspetor corrupto da coroa espanhola, que fiscalizava colônias da América do Sul no século 18. Para os críticos da Argentina, país de origem da cineasta, o resultado é um “cinema de autor”. Esse rótulo, no entanto, é rejeitado por Lucrecia, um dos nomes de destaque no novo cinema argentino. “Os meus filmes se relacionam com o gênero terror para que, também, eu possa ser vista sem a seriedade do rótulo do cinema de autor”, explicou ao público, que lotou o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em março. Diretora de O Pântano (La Ciénaga, 2001), A Menina Santa (La Niña Santa, 2004), A Mulher sem Cabeça (La Mujer sin Cabeza, 2008), entre outros, ela falou ao público sobre a sua relação com a ficção e o terror e sobre como se dá a construção de seus personagens. Acompanhe trechos dessa conversa.

Adaptação na tela grande

Sou do norte da Argentina, uma região onde não havia a possibilidade de desenvolver uma cultura cinéfila. Assistia aos filmes na TV e pouco frequentava o cinema. Em minha família predominava a tradição oral dos contos. A partir de Zama [baseado no livro homônimo do escritor argentino Antonio Di Benedetto], percebi que a distância entre a literatura e o cinema não é aquela a qual imaginava. Nesse momento em que vemos a popularidade das séries, o que se preconiza é a tirania do argumento, do roteiro. Acredita-se que a literatura é um roteiro, que o filme é o roteiro. Mas o som é intransferível, não sendo possível compartilhar minha experiência sonora com a literatura. Ao lermos, nasce em cada um de nós uma voz mental própria.

A literatura está muito próxima do cinema, muito mais do que acreditava antes de produzir Zama. A dimensão sonora da pintura e da literatura, na questão da linguagem, está muito mais próxima do cinema do que imaginamos. Porque não é uma relação do livro com o filme, mas sim a relação do leitor com o que o filme desperta nele. A maioria das teorias sobre adaptações literárias para o cinema trata de uma experiência que não existe, sobre uma análise de roteiros, e não desse assunto tão complexo que é a construção narrativa.


Foto: Cine Rei.

Entre o autor e o terror

Temos que inventar ferramentas para pensar. E o cinema de terror é uma revelação filosófica muito importante, um recurso para novas ideias. Os meus filmes se relacionam com o gênero terror para que eu também possa ser vista sem a seriedade do rótulo de “cinema de autor”.
Tenho esperança de que, em algum momento, o humor dos meus filmes seja mais compreendido pelo público. Para mim os fantasmas e todo esse clima são a antípoda do realismo mágico. Construo os personagens como monstros. A monstruosidade me serve para pensar. É uma metáfora para a natureza instável, chamo os personagens de monstros porque não sabemos o que fazer com eles. Uma pessoa sempre vai nos surpreender, é algo que não se pode determinar nem por gênero, atividade sexual ou política. Nunca penso se filmo com mulheres ou com homens, pois para mim são os monstros, eles é que desejam, são meus instrumentos para escapar das simplificações e ideias fáceis. O monstro em si não tem moral, a moral é um contrato com os outros.
Para mim, as pessoas são monstros que fingem. Fingem que são adultos, fingem que são crianças, fingem que são mulheres, fingem que são homens. Dessa maneira, é mais fácil escrever.

"Para mim, as pessoas são monstros que fingem.
Fingem que são adultos, fingem que são crianças,
fingem que são mulheres, fingem que são homens"

Fingir o que não se sente

No cerne do trabalho do ator está o contato com outras personas. Interpretar o que não se é ou não se sente, o que eu nunca conseguiria fazer. Cada ator tem um sistema profissional, uma técnica. Isso não me interessa diretamente. Conversamos bastante, mas quero que cada um venha com sua ideia e seu método. Também preciso que reproduzam o roteiro na íntegra, que digam cada linha do que escrevi. Não é uma democracia nesse sentido. Desde meu primeiro filme nunca busquei a verdade. É tudo uma ficção, uma mentira. Nunca tive a intenção de explicar a realidade.

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