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Entrevista
Antunes Filho

Em entrevista exclusiva à Revista E, o mais importante diretor de teatro brasileiro, Antunes Filho, fala do sucesso de seu espetáculo mais recente, Medéia, em cartaz no Sesc Belenzinho

"O tempo e o espaço não existem para o ator, ele tem de ser eterno". É essa responsabilidade que Antunes Filho atribui aos artistas que trabalham com ele no Centro de Pesquisas Teatrais (CPT) do Sesc São Paulo. Às vésperas do lançamento do livro Prêt-à-Porter, sobre seu método de criação, o diretor de teatro, que quase foi advogado - ele chegou a iniciar a Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, em São Paulo -, afirma que a arte dramática brasileira sofre de um "naturalismo prosaico".

O seu mais recente espetáculo, Medéia, é impressionante. O espectador ali, quase dentro do palco, é partícipe do drama.
Fiz Medéia mais no sentido de modelo. Fui mais um agente social para fazer a Medéia, cultural, que faz e que apresenta. Foi só um modelo de como deve se encaminhar uma tragédia grega. Fiquei longe das minhas fantasias, da minha poesia. Fiquei longe de tudo isso, das convenções... Procurei estar dentro dos padrões de realismo para trabalhar com uma técnica que nós brasileiros não temos. Técnica para falar. Nós não temos uma boa educação para a fala, para utilização de corpo e também espiritual. Demorou muitos anos para fazer essa Medéia. Eu já tentei fazer diversas tragédias e nunca tinha conseguido sair do lugar. Depois de um mês e meio eu parava porque os atores não sabiam falar aquilo, ficava meio pedregulho, paralelepípedo na boca e me machucava o ouvido. Eu fazia o rascunho e não dava certo, tinha uma plasticidade física... Fiquei muitos anos trabalhando para encontrar um método. Foi ridículo! Tive de criar o método para poder fazer o espetáculo. Sempre que vou ver uma tragédia grega, nunca entendo por que as pessoas ficam gritando... Fico contente quando as pessoas assistem e entendem, isso que é o fundamental. Eu queria que as pessoas fossem e entendessem tudo do que é uma tragédia grega.

Certa vez você falou do mal causado pelo que você chama de "naturalismo prosaico" na interpretação. Isso vem da televisão?

O mundo inteiro está ruim... As pessoas falam que a televisão brasileira está ruim, mas você já viu a televisão francesa ou italiana? Não dá mais para ver. O público está imbecilizado em todo lugar do mundo. E os artistas também estão ficando cada vez mais imbecis. As pessoas precisam saber o que é arte. Hoje, confunde-se arte com artesanato, com decoração, com firulas. Arte é outra coisa. Ela tem sempre uma aura, está sempre recoberta por algum mistério, alguma coisa mágica que você não sabe o que é. Uma coisa do fundo do seu espírito, algo que você quer saber... Esses filmes de tiroteio não têm isso. A função da arte é sempre descobrir outras coisas que o homem está sempre procurando: o mistério da vida. Como naquele mito grego de Prometeu, a eterna vontade de tornar conhecido o desconhecido. É essa a função do artista. Quando você faz um espetáculo bem feito, bonitinho e que todo mundo gosta, não é arte. O sujeito teve muita técnica para fazer aquilo e tudo mais, só que não é um teatro de arte. Teatro de arte é aquele que religa com o mistério. Tem alguma coisa meio de religar. Algo místico. De onde viemos, para onde vamos... É sempre essa a questão. Espetáculos "bonitinhos" não têm nada a ver com isso. Não significa que não sejam bons espetáculos. Pode ser que seja, mas não é arte.
Por que em Medéia você optou pelo outro estilo de palco que não o italiano?
É um palco meio como os de teatro nô (estilo de teatro japonês). Eu estou irritado com o palco italiano. Enjoei. Queria mudar. A gente quer mudar os espaços para conseguir algo novo. Se eu ficasse no palco italiano ficaria uma coisa repetitiva. Além disso, queria colocar a platéia junto com os atores. O que é uma experiência pós-moderna. Foi uma atitude meio crítica. Isso exigiu muito trabalho e exige uma técnica diferente de falar, o que também levou anos. Parece-me que isso nunca foi feito no teatro brasileiro. Quando se faz tragédia de teatro clássico o ator sempre dá uma cantadinha no final de cada frase e isso é uma tolice ridícula. Eu queria tirar isso... A música não tem de vir no final do verso, ela vem durante. Em cada sílaba.

Você pegou um texto clássico e o colocou num tempo digital, sincrônico a todos os tempos.
É por isso que se domina a respiração. O difícil nisso é você colocar a voz no lugar e controlar a respiração. Você sabe como as pessoas gritam normalmente no teatro? É na base da projeção. Eu não faço mais isso, eu uso a ressonância. O ar que utilizo para uma frase falada num alto ou baixo é o mesmo que uso para conversar com você. É esse o novo modelo que procurei apresentar com Medéia. É por isso essa sensação nova. Se eu falar na projeção, uma frase, por mais curta que seja, esgota o seu ar. Na ressonância eu falo muito mais com o mesmo ar. E como isso é possível? É essa a loucura: economizar o ar.

E como você chegou a esse raciocínio, a essa descoberta?
Trabalhando anos. As pessoas sensíveis conseguem captar que há algo novo só que não sabem o que é. Agora, as pessoas que não têm conhecimento nenhum em arte, não perceberão a diferença que há entre Medéia e os outros espetáculos. O que há de mais importante neste meu espetáculo é a maneira como se fala.

Voltando a questão do palco: fica claro, observando os seus trabalhos, que você sempre foi um inconformado com o palco italiano. Sempre o usou de uma maneira diferente, criando volumes ou espaços invisíveis. Dessa vez você foi além: colocou a platéia dentro do espetáculo, resultando num efeito que você antes nunca tinha obtido.
Se eu fizesse um drama comum viraria teatro de arena. Teria de ser algo diferente, se não se transformaria em teatro intimista. É encantador você, como espectador, estar dentro da ação; a personagem falar com a platéia, torna-la cúmplice. Ao mesmo tempo em que é irônico. Foi uma experiência legal.

E em relação à postura dos atores, ao corpo deles, o que você queria?
Eu tinha de tirar a coisa normal do cotidiano de cada um. Sabe quanto tempo de exercício é necessário para tirar todas essas tensões do corpo, essas personas que as pessoas carregam? Sim, porque é preciso zerar o corpo e conhecer todos os seus músculos. Há milhares de exercícios para zerar a maneira de andar, de fazer gestos... Nós ficamos horas e horas fazendo exercícios. Sem isso não dá para fazer. Se eu ficar com a perna dura eu perco a voz. O corpo todo tem de ser absolutamente educado para você falar dessa forma que propus com Medéia. É preciso desconectar o corpo. Nossos movimentos todos fingidos. Isso daria um tratado.

É um trabalho de desprogramação total do corpo: gestos, expressões.

Tem de desprogramar e fazer tudo de novo. O sujeito tem de morrer aqui. É uma morte psíquica. É uma viagem interior que você tem de fazer, as coisas não funcionaram enquanto os atores não choraram nos exercícios. Além da prática física, há também muita prática intelectual e espiritual através de livros. Há muitos livros que precisam ser lidos. É um diálogo permanente entre o espírito e o físico para conseguirmos uma harmonia e sermos uma coisa só. Eu costumo dizer que corpo e alma são uma coisa só. Acabou o tempo da dicotomia.

Existe um método Antunes?
Houve um método Antunes porque eu quis inaugurar um. Precisei para poder fazer espetáculos como Medéia. Feita essa parte, posso partir por uma coisa mais fantasiosa. Posso sair desse psicologismo, dessa coisa mais ou menos prosaica e alçar vôos mais estranhos e extravagantes.

No fundo, esse método seria uma codificação de uma criatividade?
É. Seria um trabalho de decodificação. Fazer tábula rasa e começar a decodificar através de exercícios físicos e encontrar a teoria. Ou seja, através da prática encontrar a teoria. E não o contrário. E é assim que deve ser.

Você acabou resolvendo fazer isso por uma necessidade criativa?
Por necessidade prática. Eu precisava fazer o espetáculo. Muitas vezes deixei de fazer grandes espetáculos - no sentido da forma, da beleza, grandiosidade etc. - para me aplicar no método. Num certo sentido, eu me retirei um pouco do teatro. Saí para estudar. Tenho estudado teatro nos últimos anos e não feito grandes shows. Não estou preocupado com isso. Eu me preocupo em fazer atores. Preciso de atores, preciso de técnicas de ator. Sem isso não faço nada. Fica uma mesmice só. Chega um momento em que você não tem mais o que falar. Quando você tem 20 e poucos anos, você tem uma porção de idéias. Depois é preciso arranjá-las; para isso, é preciso fomentá-las e para isso é preciso estudar muito e ampliar o seu leque de conhecimento. E isso só é possível com técnica. Sem técnica você não sai do lugar, não consegue nem comunicar o que sente. O fulano da esquina pode ter uma imagem melhor que a de Picasso na cabeça, mas ele não tem técnica para pintá-la. Qualquer pessoa pode ter sentido melhor as coisas que qualquer poeta, mas é preciso técnica. Veja só: ser engraçadinho a primeira, segunda ou terceira vez como ator e diretor é fácil, mas tente continuar...

O interessante no seu teatro é que ele tem uma crueza que, algumas vezes, pode dispensar cenários, figurinos, etc. Você é assim...
Comigo é pão pão, queijo queijo. Eu gosto disso. Sou minimalista nesse sentido. Você vê muito minimalismo em Medéia. Eu só uso o essencial, não tem penduricalho... Sem ornamentos idiotas... o negócio é na essência. Quando você assiste tv, cinema e teatro brasileiros, você fica poluído de tanta imagem. Eu concentro o olhar das pessoas, não as poluo com arabescos idiotas que não têm nada a dizer e cuja função é só ornamentar. E detesto ornamentos. Você conhece alguma poesia boa com ornamento? Não. Conhece alguma pintura boa com ornamento? Também não. A arte não precisa de ornamento. Tem de ir ao cerne, ir com fé, não ficar na periferia. Você precisa trabalhar no essencial. E é difícil chegar nisso. Por outro lado, isso resulta em muita solidão. Mas é uma solidão prazerosa e pela qual você optou. E não aquele fruto da rejeição dos outros. É a solidão do artista. É deliciosa.

Por que essa revolução só se deu com um texto clássico?
Porque é melhor demonstrar tudo isso com um texto clássico. Mas eu venho usando essas coisas faz um tempinho... bem devagar. O Gilgamesh tinha alguma coisa disso. Desde de que fiz Macunaíma (1978) venho perseguindo isso. Foi quando eu percebi que tinha de mudar tudo. Nelson Rodrigues (O Eterno Retorno) também me deu um estalo. Desde que encenei Nelson eu venho numa pesquisa incrível de teatro. Eu quero ver se sai uma obra-prima. Eu acho Medéia ótima... É um espetáculo que assino embaixo e assumo. Um espetáculo que antes de ser estético é ético. Na verdade, ele é mais ético que estético.

Por quê?
O comportamento dos atores, do diretor... É uma atitude ética. Um espetáculo de relações morais. Em todos os ângulos, sociais, entre artistas, com os artistas, com o público, com o Sesc e o universo no qual ele atua. Tem muito da ética do Sesc neste espetáculo. Mas é um espetáculo sutil, não tem oba oba...

E o resultado com o público tem sido excelente...
Casa lotada desde a estréia, graças a Deus. Eu quero que essa peça fique um ano em cartaz. Eu nem me importo se o público diminuir porque fica uma coisa sagrada... É a chance de preservar a sacralidade do teatro. Você volta àquele tempo de teatro sagrado.

E como retornou a você a reação do público?
Tem sido maravilhosa. Eu tenho me preocupado com esse espetáculo, na verdade, porque houve unanimidade. Nunca vi unanimidade nos meus espetáculos. Nem no Macunaíma. Estou até desconfiado disso... Não teve ninguém falando mal. Isso me preocupa porque, afinal, segundo Nelson Rodrigues, a unanimidade é burra. Na verdade, estou em transe. Estou deixando a minha cabeça flutuar... sem forçar. Vou dando um jeito com a cintura e vou levando. No fluxo do tempo e do espaço. Sem imposições, sem autotiranias, sem tiranias exteriores. Não quero dizer nada de definitivo. É tudo 'eu acho que...', 'talvez...'.

Mas você não é assim.
Não era, estou me tornando assim. Depois de porrada em cima de porrada e mais a vontade de fazer uma coisa mais ampla para o homem. A humanidade me interessa. A fraternidade me interessa, a confraternização me interessa. São essas as coisas que me interessam.

Você acha que essa postura o auxilia a ficar com os poros mais abertos?
Mais aberto, humilde, compreensível e sensível. Numa sociedade de consumo como a nossa, a gente perde a percepção e perde a sensibilidade. Eu quero entender melhor tudo, quero entender cada pedacinho de coisa. Por mais patife que seja a Medéia, ela me fascina. É terrível, mas é humana. O que posso fazer? Tem um lado humano dela que eu tenho de respeitar.

E onde se encaixa Prêt-à-Porter nessa história?
Sem Prêt-à-Porter eu não chegaria lá. É isso que é começar a representar. É você não ser, representar o natural e não ser natural. Na televisão, as pessoas são muito naturais... Isso não é arte. No Prêt-à-Porter as pessoas têm de aprender a se afastar, usar as funções da personagem e não as suas próprias. Tudo isso é arquitetado. Não tem nada a olho. O artista é uma outra raça.