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"O homem em prosa"

Foto: Isabel D´Elia
Foto: Isabel D´Elia

Nunca havia me descoberto ao lado de José Saramago. Nunca – juro com os dedos descruzados –, nunca havíamos conversado. Em nenhum momento da minha infância ou juventude compartilhei com o escritor português suas histórias íntimas, confissões, reminiscências. No passado, me deparei com esse inquieto criador de narrativas, obliquamente, por ocasião de algumas de minhas leituras. Por caminhos diferentes, em épocas também distintas, conheci três de suas publicações: "Ensaio sobre a lucidez" "Ensaio sobre a cegueira" e "As intermitências da morte". Cada uma delas – com suas reflexões de caráter social e político – me mostraram a face de um escritor bastante comprometido com seu tempo, preocupado com injustiças e dissonâncias do mundo e consagrado pelo uso singular e magistral da linguagem.

Mas, então, foi só. Não havia me motivado a desvendar-lhe, vagarosamente, uma outra face: a do homem. Naqueles intervalos em que descobria suas produções ficcionais, não excedi, confesso, o acompanhamento de suas entrevistas feitas durante as visitas ao Brasil e trechos dos discursos proferidos após a láurea do Prêmio Nobel de Literatura, concedido a Saramago, em 1998. O turbilhão das leituras seguintes, a urgência de todas as mínimas belezas e inutilidades da vida cotidiana me consumiram e desviaram esta leitora para outros sítios, como diria, sem rodeios, o autor português. 

Saramago – apenas ele, o menino nascido em Azinhaga – só se transformou em alguém muito familiar há alguns dias. Nos aproximamos – olhamo-nos e repartimos inesperadas camaradagens – durante minha visita à exposição "Saramago - Os Pontos e a Vista"¹, realizada em São Paulo. 

Ao percorrer os dois andares que abrigaram a exposição, conheci suas mais francas impressões sobre temas singulares como o amor, a morte, Deus e o tempo. Nos inúmeros depoimentos que compuseram a mostra – criada, de forma poética, a partir de uma cenografia que reuniu vídeos, mobiliário e atrações interativas – me vi, inquestionavelmente, diante do velho José de Sousa. O homem: Saramago. 

Ao meu redor, dezenas (ou centenas?) de pessoas perambulavam, também, na adjacência dos vídeos em que a figura de um velho sério e de voz suave ganhava o primeiro plano. O homem – com cerca de oitenta anos e já autor de 20 obras – contava-nos que descobriu a literatura como caminho definitivo apenas aos sessenta e três. Muito embora eu sentisse que ele discorresse apenas para mim, pessoas próximas também ouviam e exclamavam: “aos sessenta e três”! 

A cada depoimento, me aproximava mais do cidadão, do observador e do amante Saramago. Suas rugas e o parco cabelo branco me impeliam a indagar o óbvio: quanta experiência e sensibilidade foram acumuladas até ali? De quantas camadas, faces e acontecimentos foi composta aquela vida? Há algo extraordinário que apenas sua velhice é capaz de nos oferecer? As pistas para essas respostas, alcançadas pela visita completa à exposição, me indicavam que haviam sido muitas as faces, frequentes os ocorridos. Mostravam-me, também, que sim: apenas a soma daqueles anos vividos poderia, com efeito, produzir depoimentos de tamanha acuidade e tão sedutora franqueza.

Filho e neto de camponeses, Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, em Portugal, no dia 16 de novembro de 1922. Contou-nos, em um dos vídeos, que seu registro oficial foi feito apenas no dia 18 de novembro, ganhando o escritor, por assim dizer, dois aniversários. Mudou-se para Lisboa, com os pais, antes de completar dois anos. Guardou da terra natal um lastro que ele ponderava excepcional e inevitável.

Ainda na juventude, interrompeu seus estudos por dificuldades econômicas. Seu primeiro emprego, como serralheiro mecânico, foi seguido de diversas profissões: funcionário da saúde e da previdência social, tradutor, editor, jornalista. Publicou seu primeiro livro – o romance “Terra do Pecado” –, em 1947. Somente vinte anos mais tarde, publicaria novamente. Trabalhou durante doze anos em uma editora e colaborou como crítico literário em revistas da época. A partir de 1976, passou a viver exclusivamente de seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Casou-se com Pilar del Río, em 1988, aos sessenta e cinco anos, e reafirmou os votos dessa união, em 2007. Ofereceu a Pilar todas as suas dedicatórias, chegando a proferir em um discurso: “se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar, teria morrido muito mais velho do que eu sou”. Faleceu no dia 18 de junho de 2010, ao lado da esposa, na ilha espanhola de Lanzarote.

Único escritor em língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel, José Saramago viu-se questionado, de súbito, durante a velhice: após alcançar tão distinta recompensa, após ter tudo, o que poderia querer mais? “Tempo para o trabalho, tempo para minha mulher”. Por certo, sua convivência com Pilar, a incansável atividade como conferencista e a intensa produção ficcional nunca se subjugaram à idade. Ao acompanhá-lo pelos registros audiovisuais da mostra, notava, cada vez mais, que sua resposta à implacável passagem da vida era persistir em viver. “Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente, é isto a velhice”.

Compreensível imaginar, conjecturo, o impacto de tão profundos testemunhos sobre os espectadores que circulavam pelo local. “Não me arrependo de nada, viveria tudo novamente”. Era o que nos dizia, Saramago, num balanço introspectivo, aos oitenta anos de idade. No vídeo, seus olhos tinham uma brandura impossível de ser descrita, nem sequer resenhada. Com a mesma amabilidade, confessava-nos, em outra gravação, o desejo de dialogar, nos últimos anos de sua vida, com todos os seus leitores.

Seria isso, pois, o que fazíamos, ali? Reunidos em torno de depoimentos tão íntimos, criávamos com o homem um colóquio genuíno e descomplicado. Deixávamos de lado qualquer presunção de especialistas ou literatos para sermos apenas humanos. No fundo, talvez fizéssemos justiça a um dos seus últimos testemunhos, proferido após os inúmeros discursos acerca do Prêmio Nobel: “Cansei de sorrir, do esforço de parecer inteligente”. 

Cansamos também, José. Deixamo-nos, simplesmente, experimentar o homem, o escritor, o velho. Saramago.

1 *A Exposição “Saramago – Os Pontos e a Vista” foi apresentada no espaço Farol Santander, no centro de São Paulo. Com o apoio da Fundação José Saramago, a exposição teve curadoria de Marcello Dantas e os vídeos que a integram foram produzidos pelo cineasta português Miguel Gonçalves Mendes.