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Poeta de mil faces

Multiplicidade de leituras confirma
caráter atemporal da obra do espanhol
Federico García Lorca

Foto: Domínio Público

 

Poeta e dramaturgo espanhol, Federico García Lorca viveu intensamente por apenas 38 anos. Nascido em 1898 em Fuente Vaqueros, foi assassinado logo no início da Guerra Civil Espanhola, em 1936, no auge de sua produção literária. A guerra só terminaria em 1939, com a vitória dos nacionalistas e a instalação da ditadura comandada pelo general Francisco Franco, que comandaria o país até 1975.

O lamento pela morte de Lorca expandiu sua dimensão como ativista e artista. O autor teve seu trabalho reconhecido ainda em vida e conseguiu “propagá-lo além da Europa, chegando à América Latina e aos Estados Unidos. Além disso, a qualidade universal e singular de sua produção contribuiu para que ele chegasse ao posto de segundo autor de língua castelhana mais traduzido do mundo”, aponta a cientista social Synthia Alves, doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em Ciências Sociais e autora da tese Teatro de García Lorca: A Arte que se Levanta da Vida.

 

Amigos de meus amigos

Federico García Lorca graduou-se em Direito no ano de 1923. Os estudos em Filosofia e o convívio com o professor Fernando de los Ríos motivaram sua mudança de Granada para Madri. Nessa transição conviveu com a nascente vanguarda artística espanhola. Não faltavam música, letras e artes visuais, o que propiciou sua amizade com os pintores Pablo Picasso e Salvador Dalí e com o compositor Manuel de Falla, entre outros expoentes do cenário cultural espanhol da época. Esses artistas lhe apresentaram caminhos na vida pessoal e no trabalho, embora seja difícil estabelecer tal divisão, visto que em Lorca a justaposição é intrínseca e parte de sua obra.

 

Muitos nele mesmo

Lorca conseguiu agregar o popular, representado pelos saberes e cultura folclórica, e o moderno, movimentando-se em questões políticas, alternando o sentimentalismo com o poder conceitual de sua escrita ou colaborando com outros artistas, como o surrealista Salvador Dalí. A amizade íntima e criativa se deu de 1923 a 1933 e foi compartilhada em detalhes no livro, lançado em 2013 pelo estudioso Vítor Fernández, Querido Salvador, Querido Lorquito, registro de correspondências que evidenciaram a amizade e a sedução na convivência entre os dois gênios.

Lorca pintava, desenhava e era exímio pianista. Nele as habilidades não se confundiam, mas potencializavam as criações, independentemente do campo em que se arriscava. A multiplicidade é vista nos diferentes nichos e gostos nos quais suas obras ecoaram. Como explica Synthia, ele se tornou um elemento simbólico para grupos sociais distintos. Ficou conhecido como o poeta dos ciganos, por exemplo, por livros como Romancero Gitano (1928), inspirado no Flamenco. “Por causa das obras sobre o amor homossexual, como o livro Sonetos do Amor Obscuro [publicado postumamente e lançado no Brasil em 1998 pela Bertarnd Brasil], foi chamado de Oscar Wilde espanhol”, acrescenta, fazendo referência ao escritor irlandês também perseguido por sua homossexualidade no século 19. Na dramaturgia, os textos de Yerma (1934) e A Casa de Bernarda Alba (1936) o elevaram a um símbolo da luta pela liberdade. “O indivíduo que se encontra limitado pelas normas sociais, religiosas, ou que foi perseguido, exilado e morto por um governo ditatorial”, completa Synthia.

Autorretrato de Federico García Lorca para Poeta en Nueva York - Entre 1929 e 1930 - Domínio Público

 

Onde reinam as mulheres

Lorca tinha as mulheres no espelho de sua dramaturgia. Mesmo limitado ao contexto histórico de uma Espanha agrária, movida por forças conservadoras que cerceavam as liberdades individuais entre o século 19 e o 20, sua escrita dá cara a mulheres intensas, tanto em força física quanto na personalidade, em contraponto aos personagens masculinos. Lorca é um dramaturgo de personagens femininas fortíssimas do ponto de vista do caráter, da vontade, da firmeza de propósito e da força física, como relata o ator, músico, diretor da Cia. do Tijolo e do Teatro Vento Forte, Rodrigo Mercadante. “Os personagens masculinos são bastante débeis, com pouca força física, ou são retratados como cavalheiros que rondam as casas e seduzem as moças. São reduzidos a isso, já as mulheres reinam”, compara.


Vozes da Espanha, vozes de Nova York

Ponto alto em Lorca foi sua opção por dar voz aos marginalizados da Espanha: os ciganos, os pobres e as mulheres. Synthia lembra do revolucionário grupo de teatro estudantil La Barraca. A ideia era simples e perigosa; levar peças de teatro aos povoados do interior da Espanha, enquanto a crise econômica, e conflitos políticos e sociais minavam o dia a dia da população. “Antes de cada encenação, Lorca dizia algumas palavras, às vezes, uma conferência, mas sempre estava preocupado com que todo o público (principalmente os mais humildes) tivesse acesso à cultura, como ele mesmo declarou em suas entrevistas”, contextualiza a pesquisadora, reforçando o quanto sua atuação e presença se tornaram incômodas. A ponto de até hoje ser um mistério a localização do corpo do autor.

No período de estudos na Universidade Columbia, entre os anos de 1929 e 1930, identificou-se com os segmentos sociais discriminados de Nova York, os negros e os homossexuais. Da experiência nasceu Um Poeta em Nova York (1940), obra-prima do autor, que flerta com o surrealismo e se desdobra nos conflitos subjetivos e concretos que a cidade despertou. Lemos no trecho “o conflito entre a luz e o vento” uma das muitas imagens que o texto oferece. Rodrigo, que já encenou textos do dramaturgo, conta que o livro traz as impressões da cidade americana, mas na “linguagem andaluzia”. Em sua opinião, é importante considerar o léxico, a gramática inventada e a partir da qual se expressa em todas as outras linguagens. “Na forma lorquiana de ler o mundo podemos ler e expressar nosso mundo também”, acrescenta. Ao ser questionado sobre a atemporalidade de Lorca, o diretor vai além do conceito da palavra. Para ele, em vez de atemporalidade, a multiplicidade de leituras nos revela sua longevidade. Os poemas e os textos das peças estão fincados em seu tempo histórico. “Mas a partir dos arquétipos e dos símbolos, aí, sim, Lorca é atemporal!”, diz.

 

Para conhecer...

Uma seleção de obras inspiradas em García Lorca para deliciar iniciados e iniciantes

 

Morte em Granada (1996)


Protagonizado pelo ator cubano Andy Garcia, o filme investiga a morte do poeta. O drama biográfico teve o roteiro baseado no livro Federico García Lorca: A Biografia, do escritor irlandês Ian Gibson.


Federico García Lorca: A Biografia (Biblioteca Azul, 2014)


Ian Gibson dedicou-se exclusivamente aos estudos sobre Lorca nos anos 1970, quando decidiu abandonar sua vida acadêmica para se tornar biógrafo do autor. Obra robusta, traz em mais de 700 páginas a trajetória revista do dramaturgo.


Lorca, el Mar Deja de Moverse (2006)


Dirigido por Ruiz Barranchina, o documentário foi lançado quando a morte do poeta completou 70 anos. Entre imagens de arquivos e depoimentos, serve de documento audiovisual de uma época. O título é de um poema escrito por Lorca.


Sopa de Lágrimas (2016)


A HQ do cartunista norte--americano Gilbert Hernandez é frequentemente lembrada pela influência do realismo mágico da literatura latina e da dramaticidade contida nos textos de Lorca, retratada nas personagens femininas.

 

 

 

Leia também: Poeta Federico García Lorca é homenageado | Revista E - edição set/98


 

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