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Desencarcerar a dignidade

Texto: Júlio César Pereira Júnior

 

Meu pai completou 75 anos de idade esses dias. Na mesa do almoço de comemoração, apenas ele, minha mãe, irmão, minha filha, de 17anos, e eu.

Minha filha mudou-se recentemente para uma cidade pequena e está morando em um ambiente rural. Ruas de terra, vai de bicicleta para a escola, verde presente.

É a primeira vez que os avós e a neta se encontram desde a mudança. Estão curiosos para saber de tudo. O que come, como é a casa, o namorado, a escola. No meio da conversa, meu pai pergunta se há muitos passarinhos na região. A pergunta vem com ironia. Minha filha capta:

“Sim! E estão todos soltos, viu vô!!!?”, ela diz sorrindo.

Ele sorri de volta: “Levarei o alçapão quando for te visitar”. Seguido dos emojis de gargalhada.

Meu pai é da geração em que o hábito de engaiolar pássaros era bastante presente. Essa prática perdeu força na minha. E, para a geração de minha filha, soa um absurdo.

Em meio a este clima ameno, meu pai traz a história de um amigo, que teria passado pela experiência de ver um pássaro de estimação retornar para a gaiola, pouco tempo depois de ter sido colocado em liberdade, em uma chácara. Ao que a neta lhe responde: “Claro, né vô!? Ele passou a vida inteira na gaiola. Se transformou no seu habitat seguro. É o que ele conhece!”

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Há alguns dias (vários dias, na verdade), estou com a tarefa de escrever umas linhas sobre o filme Um Sonho de Liberdade para a Revista +60 - Estudos Sobre o Envelhecimento, sob a perspectiva das questões do encarceramento e da velhice.

Aproveitei a história contada por meu pai para trazer o filme para a conversa, afinal, a tal da liberdade estava sendo tratada ali, naquele momento - por mais absurdo que pareça - a partir da escolha de uma ave.

Dirigido por Frank Darabont, lançado no meio dos anos 90, Um Sonho de Liberdade tem roteiro baseado na novela Rita Hayworth e Shawshank Redemption, escrito por Stephen King, em 1982. O filme retrata o cotidiano do encarceramento em uma penitenciária americana nos anos 40 e 50. Tudo aquilo que se supõe saber a respeito das interações que se estabelecem nesse ambiente de confinamento está ali presente: as relações de força e de violência institucional, a corrupção, a disputa de poder entre os condenados e os afetos.

O relato introdutório acima remete a uma das questões mais dramáticas que o filme suscita. Não é de se esperar que sujeitos, que permanecem 30, 40 anos de suas vidas confinados, consigam preservar facilmente seus vínculos do lado de fora dos muros. No filme, especificamente, não há qualquer cena que retrate visitas aos presos.

Brooks Hatlen, um personagem secundário da trama, interpretado por James Whitmore, vive a sequência que aborda o limite a que se chega, por força da total ruptura e, ao mesmo tempo, a renovação de relações, provocada por uma longa jornada de cumprimento de pena de privação de liberdade, a ponto de não mais se desejar sair da prisão.

O personagem é um velho que completa quatro décadas de prisão e que conquista a simpatia, o respeito de seus companheiros de cárcere. Nos anos finais do confinamento, Brooks trabalha na biblioteca da Penitenciária, livre de esforços físicos das outras ocupações.

Um dia, seu grupo de amigos é chamado às pressas para uma emergência na biblioteca. Ele fez um dos presidiários refém, ameaçando-o matar com uma faca pontiaguda, que ele mantém pressionada no pescoço da vítima escolhida. O objetivo de Brooks era praticar o homicídio para permanecer preso, uma vez que acabara de receber a notícia de que seria colocado em liberdade. O desespero gerado pela falta de perspectivas em um mundo agora estranho, sem rumo, sem ter para onde ir ou a quem procurar, e para uma pessoa cuja idade ronda os setenta anos, é implacável.

O homicídio não se realiza. Seus amigos conseguem dissuadi-lo. Brooks sai em liberdade. E logo, para a “liberdade” definitiva: desolado, a sequência culmina com seu suicídio, por enforcamento, no quarto que ocupa sozinho, pouco tempo depois.

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O cárcere se apresenta, assim, como um espaço de relações sociais e seguro, estruturado.

Por mais triste que possa parecer, olhar desta forma para uma penitenciária não é abstração de uma obra ficcional, retratada pelo cinema. Isso se dá, nos dias de hoje, na terceira maior economia do planeta.

Um estudo revela que o número de idosos presos no Japão quadriplicou em 20 anos, apesar de a criminalidade ter atingido mínimos históricos em 2016. Um total de 2.498 pessoas com mais de 65 anos foram presas naquele ano, um número quatro vezes maior do que em 1997, indica o "Livro Branco Sobre o Crime", publicado pelo Ministério de Justiça do país.

Desse número, cerca de 3% eram reincidentes, o que mostra uma complexa realidade no país, onde as pessoas idosas buscam, na prisão, um "lar" para fugir do isolamento social e da pobreza.

A maioria dos réus idosos, que cumpre pena nas prisões japonesas, carece de vínculos com parentes, amigos ou vizinhos antes de ser detida, de acordo com pesquisa realizada nos centros penitenciários japoneses pelo jurista da Universidade de Keio (Tóquio), Tatsuya Ota.

Some-se à fragilidade de vínculos, as baixas pensões previdenciárias recebidas, insuficientes para que estes idosos adquiram os serviços e produtos básicos para sobreviver. Assim, delitos como furto tornam-se uma opção para o abrigamento em um local onde será possível ter o que comer, o que vestir, e pessoas com quem conversar.

Chama a atenção, a presença das mulheres nesse cenário. Uma em cada cinco presas é velha, e estão indo parar na prisão propositalmente, por se sentirem sozinhas ou "invisíveis" em casa.

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Infelizmente, a semelhança da vida real com o personagem de Stephen King não para nos(as) idosos(as) japoneses(as).

Vem do Chile, a notícia de outro dado preocupante: sem previdência pública, o Chile tem suicídio recorde entre idosos com mais de 80 anos.

Apontada como modelo, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a privatização da Previdência Social chilena, promovida pelo general Augusto Pinochet na década de 1980, continua vigente e cobrando um preço cada vez mais elevado. O colapso do sistema tem ganhado maior visibilidade nos últimos dias à medida que o arrocho no valor das pensões e aposentadorias se reflete no aumento do número de suicídios.

De acordo com o estudo Estatísticas Vitais, do Ministério de Saúde e do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), entre 2010 e 2015, 936 adultos, maiores de 70 anos, tiraram sua própria vida no período. O levantamento aponta que os maiores de 80 anos apresentam as maiores taxas de suicídio – 17,7 por cada 100 mil habitantes – seguido pelos segmentos de 70 a 79 anos, com uma taxa de 15,4, contra uma taxa média nacional de 10,2. Conforme o Centro de Estudos de Velhice e Envelhecimento, são índices mórbidos, que crescem ano a ano, e refletem a “mais alta taxa de suicídios da América Latina”.

Uma das autoras da pesquisa ministerial, Ana Paula Vieira, acadêmica de Gerontologia da Universidade Católica e presidenta da Funda- ção Míranos, avalia que muitos dos casos visam simplesmente acabar com o sofrimento causado “por não encontrar os recursos para lidar com o que está passando em sua vida”.

O fato é que à medida que a idade avança e os recursos para o acompanhamento e o tratamento médico vão sendo reduzidos, os idosos passam a se sentir cada vez mais como um fardo para os seus familiares e entes queridos.

O diagnóstico faz soar o alarme para projetos de capitalização da Seguridade, que se espalham pelo continente.

JORGE E ELSA

Entre tantos casos, ganhou notoriedade, recentemente, o do casal Jorge Olivares Castro (84) e Elsa Ayala Castro (89) que, após 55 anos de casamento, decidiram “partir juntos” para “não seguir molestando mais”. A evolução do câncer de Elsa, conjugada a uma primeira etapa de demência senil, faria com que tivesse de ser internada numa casa de repouso. O marido calculou que poderiam pagar, mas somente se somassem ambas as aposentadorias e vendessem a casa. Sem qualquer perspectiva, Jorge e Elsa decidiram abreviar suas vidas com dois disparos.

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Mas e o Sonho de Liberdade?

Como construi-lo nesse cenário, em que a vida é aprisionada por um sistema econômico que esgarça relacionamentos e lança os idosos, cada vez mais numerosos, em um cotidiano de cares- tia das necessidades mínimas para a manutenção de uma reta final digna de existência?

O filme traz a narrativa de uma utopia, que conta com a sagacidade de seu protagonista para se concretizar.

Andy Dufresne, o personagem principal do filme, interpretado por Tim Robbins, desce do ônibus e atravessa, em fila indiana, acorrentado à outros condenados, o “corredor polonês” da entrada da Penitenciária, onde deverá cumprir a pena de prisão perpétua, recebida por ter cometido um duplo homicídio, passional, ao encontrar sua esposa com um amante. Crimes que ele nega ter cometido.

A ruptura da liberdade se materializa. É angustiante. Cinza.

Coincidentemente ou não, trata-se de um banqueiro, jovem, que, desde o primeiro dia de sua chegada, planeja a fuga, representada no inocente pedido por um martelo para o detento que viria a se tornar seu grande companheiro de prisão, o negociador Red, vivido por Morgan Freeman.

A fuga espetacular de Dufresne da Penitenciária de Shawshank é obra de um planejamento minuciosamente traçado e silenciosamente executado. Diariamente. Solitariamente.

Ao contrário de seus colegas de prisão, ele desenha e realiza um plano mirabolante para evitar que sua velhice venha naquele lugar. Ele se vê autor de um futuro em que o desejo da liberdade tem uma forma bem definida e possível de ser atingida, mesmo naquela situação absurdamente adversa e improvável, mesmo que às custas de um ardil que se supõe possível apenas nas ficções.

Na vida real, urge desencarcerar a existência e assegurar dignidade para a totalidade das pessoas, em especial para os idosos.