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Um piano como travessão

Faço parte do time de pessoas que teve no futebol um dos alicerces mais importantes no percurso da sociabilização.

Nos álbuns de família essa constatação ganha forma logo de cara, com a imagem de um futebol de botão na mesa redonda de centro da sala em que jogávamos de pijamas à noite antes de ir pra cama, torcendo para que a TV demorasse a exibir um famoso comercial que dizia que estava na hora de dormir, “não espere o papai mandar”.

Nessa mesma época, a metade inferior do piano onde minha mãe dava aulas e alegrava o ambiente nas festas de família se transformava em uma baliza perfeita, com travessão e tudo, para nosso jogo com bola de meia.

A rua veio em seguida. Sem a neurose da violência dos dias de hoje, a turma da vila era numerosa.  Não é exagero dizer que nas férias jogávamos longas partidas de dois tempos de 180 minutos. O primeiro, antes do almoço, e o segundo, até o apito do “árbitro” para o banho/café da tarde.

A prática encontrou os espaços formais da escola e do clube. Neles, o aprendizado da ética, do cumprimento das regras, do respeito ao adversário, da descoberta das diferenças se sedimentaram, sempre em diálogo com o que rolava na rua, onde tínhamos maior liberdade para fazer nossas próprias regras, como “prensada é da defesa” e “saída bangu”, entre outras.

Eis que aparece o templo sagrado.

Ir a um estádio de futebol para um(a) garoto(a) que respira o esporte com tal intensidade é um marco que não se apaga. No meu caso, “maloqueiro e sofredor, graças a Deus”, foi com uma derrota pesada, para um time de apelido dado a indígenas e que, coincidentemente, tinha entre suas estrelas um atacante de apelido Flecha.

Nasce a paixão pela atmosfera colorida, ruidosa, frenética, onde se pode falar palavrão, abraçar estranhos e comer sanduíche de pernil. Impossível não desejar estar ali dentro daquele espaço verde cercado ou circundado por um fosso que se saltava em ocasiões de títulos. Quem não sonhou em ser um jogador de futebol?

Este é o exemplo de um percurso que impacta diretamente a formação de caráter de uma pessoa, no modo como ela se relaciona com o outro, com o local onde vive, como se associa e participa da vida em sociedade.
Nesta edição do Sesc Verão nos debruçamos sobre os aspectos relacionais guardados na prática das atividades físicas e esportivas. Nos dedicamos a desvendar histórias, registros, memórias, personagens. A riqueza das ações que surgiram confirma a força de tais expressões da cultura humana no convívio entre as pessoas, na ocupação e na transformação de territórios, na construção de identidades, na superação de barreiras e fronteiras, mesmo nos espaços de maior competição.

Caro(a) leitor(a), caso você ainda não tenha vivenciado a experiência da socialização por meio das atividades físico-esportivas – seja praticando, ou assistindo e aprendendo –, sugerimos que o faça sem moderação. Num mundo cada vez mais asséptico, enclausurado e digitalizado, misturar-se gastando calorias e sorrisos é receita de uma medicação genérica que traz um bem-estar dos mais prazerosos, fundamental no nosso dia a dia.
O convite está feito. Venham participar da segunda metade de Sesc Verão 2019.

P.S. do P.S.: este texto é dedicado a todas as turmas de boleiros que se reúnem semanalmente para um encontro quase religioso com a “gorduchinha”. E, com muito alegria, a constatação que a homenagem não se limita aos meninos.  As meninas chegaram, descobriram as delícias desses encontros e os grupos de mulheres que batem uma bolinha se multiplicam. Bem-vindas! E vamos jogar juntos!

 

 

Júlio César Pereira Júnior é formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Educação Física pela Fefisa. É assistente técnico da Gerência de Desenvolvimento Físico Esportivo do Sesc São Paulo.

 

 

 

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