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Texto de Lagarce volta ao palco do Teatro Anchieta | Foto: Matheus José Maria
Texto de Lagarce volta ao palco do Teatro Anchieta | Foto: Matheus José Maria

O espetáculo Eu estava em minha casa e esperava que a chuva chegasse está em sua segunda temporada no Sesc Consolação. Aproveitamos a oportunidade para conversar com as atrizes e a assistente de direção de Antunes Filho, todas mulheres neste espetáculo que fala da espera e do feminino no texto de Jean-Luc Lagarce.

"O texto é um mar aberto, e Antunes Filho navega na precariedade humana em que o nada é coisa, faz o ordinário parecer extraordinário". Daniela Fernandes

Viviane Monteiro, Rafaela Cassol, Fernanda Golçalves, Daniela Fernandes e Suzan Damasceno interpretam uma família à espera do filho que partiu. Luana Frez, assistente de direção da obra de Lagarce dirigida por Antunes Filho, lembra que "a peça faz um mergulho íntimo em cada personagem, suas inquietudes, seus anseios, suas expectativas, seus arrependimentos, suas culpas, hipóteses sobre o que a vida foi e sobre como poderia ter sido. Cada qual defende a sua versão da história, sendo que nenhuma é absoluta".

Em entrevista, as mulheres do espetáculo, ao contextualizar suas personagens, foram questionadas pela EOnline sobre a abordagem do texto sob o ponto de vista feminino e como as artistas desdobram a obra para a nossa realidade hoje. Como é ser mulher hoje? O que esperar?

"Conhecemos bem esse caminho historicamente, grandes lutas foram travadas por diretos básicos. É assustador que ainda hoje, com todos os avanços tecnológicos, científicos, estruturais, nós mulheres tenhamos que continuar a luta". Suzan Damasceno


EOnline - Quem é sua personagem no espetáculo? E no contexto atual do mundo, o que ela representa?
Viviane Monteiro - A minha personagem é A Segunda. A Segunda representa, na minha opinião, a esperança. A imaginação, a resistência no lado bom. Ela é luz. Ela é pura arte. Dentro de uma sociedade opressora, machista e impositiva, a gente só consegue sobreviver com música, dança, imaginação, brincadeiras, risos. A Segunda faz tudo isso. Ela ri de seu sofrimento. Brinca com ele. O acolhe de uma maneira única e com as ferramentas que tem. Idealiza o "ser mulher" como se isso fosse um dia torna-la mais forte. Não sabe ela que ela já é esse respiro de força que todos precisamos atualmente.

Rafaela Cassol - Minha personagem é a mais velha de todas - pode ser a vó, ou a criada, ou a mãe do pai, alguém que já está há muito tempo com aquela família. A que tudo sabe e tudo vê. No contexto atual é aquela senhora que já viveu muito mas que continua presa ao passado, aos preconceitos do passado, que já sofreu muito, esperou muito, está cansada porém não pode admitir e não pode parar pra descansar. Está presa à mãe e àquela família, obedecendo, cedendo e deixando de Ser para servir.

Fernanda Gonçalves - Minha personagem é A Filha Mais Velha. Ela é, como o próprio nome diz, a filha mais velha de uma filha de quatro irmãos. Aquela que cuida dos mais novos e tem uma relação quase maternal com eles. Além disso, essa personagem também é professora, e é a única dessa família que tem uma vida fora de casa. Ela se relaciona com pessoas da cidade e tem aventuras amorosas, muitas vezes com homens casados e pais de seus alunos. Talvez venha daí o ceticismo e a lucidez com os quais ela enxerga e relata a própria vida. É ela quem convoca a primeira reunião para falar sobre a situação na qual essa família se encontra e tenta chamar para a realidade a consciência das outras mulheres, em especial, da mãe. No entanto, ela se vê frustrada e sem a capacidade de se desvencilhar dessa família e da situação que vive. Ela sabe que não há saída, sabe que jamais conseguirá abandonar a mãe e as irmãs, e sabe que dificilmente irá se casar ou ter uma vida que não dependa desse vínculo diário com a família. Nesse sentido, acredito que A Filha Mais Velha represente, no contexto atual do mundo, a mulher consciente de sua situação, fragilizada pela própria condição feminina, mas que de alguma forma consegue se fortalecer para não sucumbir diante desse cenário. Ela assume uma atitude que beira o masculino para poder se relacionar sexualmente com homens diversos sem se deixar envolver por eles, e com uma boa dose de cinismo no comportamento e nos pensamentos. De todas as personagens da peça, ela é não somente a mais lúcida, mas a mais autoconsciente. Poderia dizer até mesmo que, nos tempos de hoje, ela seria considerada uma "overthinker", aquela pessoa que fica obcecada por determinado tema, ideia ou pensamento e se auto analisa para entender o que se passa em sua própria mente. Outra imagem que me vem à cabeça é a de uma "militante decepcionada", que durante muitos anos lutou por um ideal até se dar conta de que aquilo era uma falácia. Isso a faz entrar em crise, pois não compactua mais de tal crença e, no entanto, se vê incapaz de abandonar o barco.

Daniela Fernandes - A mais nova é o instinto; a criança que vê, pensa e sente o mundo de um modo próprio; a criança na sua possibilidade de fuga, rompimento com o que está desgastado; a criança na sua forma pura, inocente e primitiva; a criança na sua capacidade sensível de percepção do ainda desconhecido; a criança que tem medo e precisa de cuidados. A mais nova é a criança sem importância no seu canto, ela não tem voz e ao mesmo tempo tem milhares de vozes juntas gritando bem alto dentro de si, tentando tornar visível o invisível. Muitas crianças conhecem a sensação da invisibilidade muito cedo e ela não tem nada a ver com a fantasia dos super heróis. Ser invisível é não ser valorizado, não ser compreendido, não interagir com pessoas e lugares, é não ser reconhecido como sujeito. A verdadeira caçula fica ali, no seu canto, em uma espécie de martírio de culpa e inocência. O ato de bisbilhotar, fofocar e rememorar sobre a partida do irmão faz com que ela se sinta parte da família. Com a era da tecnologia e o individualismo o movimento se torna circular, uma prisão, afeta os que não veem e os que não são vistos. A mais nova tem todas as possibilidades, brinca, sonha, crê, tem esperança mas vive à margem e fazendo um paradoxo matemático, envelheceu dez anos em um.

Suzan Damasceno - A mãe. A mãe é uma personagem muito poderosa enquanto símbolo. Esse símbolo se modificou muito pouco a despeito de todas as mudanças no contexto social e na configuração da família. A mãe continua sendo a representação daquela que gere e cuida mas hoje a mulher se apropriou e continua lutando por seu espaço de todas as formas então a sua materialização no cotidiano dos filhos se modificou drasticamente. Hoje, essa mulher se desdobra em milhões de pedaços que muitas vezes se estilhaçam em culpa, para dar conta da criação dos filhos. Na peça, o contexto social é asfixiante, obscuro e terrivelmente machista. É uma denuncia de opressão onde o comportamento do patriarcado ainda norteia as decisões da mulher. A mãe em Lagarce é uma mulher forte, muito forte mas, que não teve seu espaço enquanto mulher que realiza, viveu à sombra de um homem mais fraco que ela. A mãe  tem um lugar arquetípico mas representa  arquétipos diferentes da maternidade. Se por um lado é aquela que gere, que ama tão profundamente que deixa de existir, que passa a ser a sombra de todas as incertezas e dores, que é o sacrifício em toda a sua potencia, por outro, é aquela que destrói e corrompe em nome desse mesmo amor que devora a individualidades desses filhos. Na personagem da mãe há uma trágica complexidade de sentimentos maternos antagônicos, quase esquizofrênicos.


A família de mulheres espera o retorno do Caçula (Foto: Inês Correa)

EOnline - Quem são as personagens no contexto atual do mundo?
Luana Frez - Poderíamos imaginar que A Mãe e A Mais Velha de Todas representam um pensamento mais retrógrado; se elas aparentam ter vivido e sofrido privações, hoje elas perpetuam valores autoritários, daqueles que detêm o poder e o usam sob o temor de perder o controle, julgando, calando e submetendo as figuras mais jovens a um regime rigoroso. À Filha Mais Velha caberia a função de reflexão acerca dos acontecimentos, é o olhar crítico, funcionando como um elo entre o antigo e o novo. As mais jovens (A Segunda e a Filha Mais Nova) trazem imagens de liberdade, do lúdico, da arte, e também da abertura pro novo. A Mais Nova ainda se insurge contra as outras, rebelando-se contra a sua condição na família e denunciando atitudes daquela sociedade. Poderíamos pensar essas personagens como uma necessidade de libertação da condição imposta, de questionar a ordem vigente mesmo sob o risco de serem perseguidas e caladas. Através do conflito de gerações entre as personagens, a encenação coloca em perspectiva valores ainda ligados ao passado e a atual necessidade de libertação, possibilitando uma reflexão sobre a condição feminina ontem, hoje e amanhã.

 

EO - O texto de Jean-Luc Lagarce fala da espera, a esperança. Isso o torna atemporal. O que as pessoas podem esperar do espetáculo? Como a direção do Antunes exalta o texto?
V. M. - Tudo e nada ao mesmo tempo. Devemos esperar uma catarse profunda desta obra de arte. O espetáculo é um espelho atemporal de quem somos e o que vivemos. É um encontro com a gente e somente a gente. Nua e cruamente. Lagarce não dá rubrica nenhuma. Antunes trabalhou o texto palavra a palavra com muita paciência, para fazer caber na boca de cada personagem, a imensidão do que é dito. Antunes rege uma orquestra no palco ao mesmo tempo que esculpe quadros em 3D. Ele une música, dança, pintura, cinema, em um lugar só. O trabalho dele é extremamente artesanal. Nunca vi tão de perto alguém esculpir o ar desta maneira. E acho que nunca mais vou ver.

R. C. - Uma peça para um público que está disposto a se entregar e olhar pra dentro de si. Acho que é um mergulho interior. Se pararmos pra refletir, sempre estamos esperando alguma coisa, alguém. E quando chega, nada acontece, nada muda, precisamos nos prender à outra esperança para viver. Por que? É impossível não se identificar com esse texto, em alguma passagem. Quem é que nunca esperou algo para ser feliz? Quem é que não consegue ser feliz agora, nesse momento? Todo ser humano passa por isso nessa existência, por isso é atemporal. Antunes, com toda sua sabedoria e experiência, soube dar o valor que o texto tem. Lagarce é um gênio e o texto precisa de alguém que o valorize para acontecer. Todo o foco do espetáculo está na palavra e na literatura e não poderia ser diferente. A pesquisa do Antunes com a palavra e a fala dos atores consegue colocar essa dramaturgia no seu lugar certo, com todo o cuidado que ele teve em cada sílaba desse texto.

F. G. - Antunes trabalhou de forma minuciosa com todo o elenco cada nuance do texto. Para ele, é fundamental que cada sílaba seja ouvida e compreendida de qualquer lugar da plateia, e que o público fique preso à narrativa. Sabíamos o tempo todo que tínhamos de estar atentos ao risco de cair na armadilha de transpor esse texto para a cena como um espetáculo arrastado, estático e sem atrativos para o público. No entanto, Antunes soube, de maneira sensível e a custo de muito trabalho, fazer com que nós encontrássemos verdade e variações rítmicas e melódicas do ponto de vista vocal, dentro de um texto quase literário e que não fornece nenhuma pista, nenhuma indicação de sentimento, emoção ou de ação para o diretor e elenco. Acredito que as escolhas feitas pela direção, no sentido de trazer cores e intenções bastante marcadas para as falas, nada mais são do que a forma que Antunes encontrou para justamente exaltar o texto. Ele também criou sua "própria dramaturgia" que se desenrola em paralelo ao texto ao trazer elementos cênicos pontuais como uma caixa cheia de pedrinhas, uma saudação entre as personagens quando elas se encontram, entre outras coisas... Na minha opinião, tais elementos poderiam "brigar" com o texto caso não fossem bem dosados mas, ao contrário, da maneira como foram colocados eles apenas ajudam a contar a história escrita por Lagarce. Além disso, a direção optou por um cenário minimalista, uma iluminação sem efeitos, e quase nada de trilha sonora, mantendo o foco quase cem por cento do tempo nas atrizes, de modo que o espectador pode esperar um espetáculo "de ator", digamos assim. Vozes bem trabalhadas, interpretações carregadas de humanidade e uma história sendo bem contada são os elementos-chave que nós buscamos incansavelmente durante todo o processo de ensaios e sessões do espetáculo.

D. F. - O texto é um mar aberto, e Antunes Filho navega na precariedade humana em que o nada é coisa, faz o ordinário parecer extraordinário. Quantas possibilidades têm no ato, nada passivo, da espera? A peça exalta a complexidade do homem, na sua sede pelo conhecimento, evadindo até a imaginação. Inventamos tudo com esperança de saber o que é a vida. É espetáculo de ator, ele diz. Rege cada palavra, esculpe cada gesto e nos instiga a investigar o mais profundo de cada sentimento e suas contradições. O Público como detetive, explora as infinitas capacidades de acontecimentos, faz a sua própria dramaturgia. Ele está dentro do jogo.

S. D. - Creio que sim, o texto é atemporal. A espera e todos os sentimentos contraditórios que ela provoca são e acredito que sempre serão  profundamente humanos independente do contexto social, politico ou religioso que estão inseridos e a esperança, acima de tudo é o que nos alimenta para continuar. Sempre. Agora, com relação à direção do Antunes, sou suspeita para falar porque amo o trabalho que ele realizou nesse texto. Ele fez um trabalho minucioso, obsessivo pra desvendar os meandros do Lagarce sempre com respeito absoluto pelo que o texto de fato exige. Ele se recusa a facilidades, isso é maravilhoso nele enquanto criador ele vai em direção à crueza, a essência da coisa por mais tortuoso que seja esse caminho. É fantástico participar desse processo justamente por isso, ele nos inspira a buscar nas entranhas e lapidar o achado com muito trabalho pra chegar na expressão perfeita. Ele conseguiu, ao meu ver, chegar na síntese que ele buscava. Tá lá. Mas pra nós, os atores, esse trabalho nunca termina, continuamos no mergulho.

L. F. - A peça gira em torno da ausência, de uma longa espera e seus desdobramentos. Cinco mulheres, diferentes gerações de uma família, uma sociedade aparentemente à parte, regida por suas próprias leis; cada personagem reagindo à ausência do caçula à sua maneira. A peça faz um mergulho íntimo em cada personagem, suas inquietudes, seus anseios, suas expectativas, seus arrependimentos, suas culpas, hipóteses sobre o que a vida foi e sobre como poderia ter sido. Cada qual defende a sua versão da história, sendo que nenhuma é absoluta. A peça não traz respostas, mas levanta indagações e incertezas. Antunes transpõe ao palco a potência dos sentimentos que a poesia de Lagarce provoca, preservando elementos presentes na dramaturgia, suas lacunas e mistérios. Através de sutilezas e sugestões, a encenação convida o público a adentrar a história e complementar a sua narrativa, interpretando a sua própria versão, tecida através de sua rede de sensações e de sua própria experiência pessoal.


Suzan Damasceno interpreta a Mãe no espetáculo (Foto: Matheus José Maria)

EO - O papel da mulher no texto e na sociedade é visto da mesma forma? O que esperar do mundo e da sociedade hoje para quem é mulher?
V. M. - Engraçada a sensação de sei-lá-o-quê interna que lateja em meu corpo de ter que responder esta pergunta para um homem. E não vou pedir desculpas pela frase porque já nascemos culpadas por muitas coisas que nem sabemos. Assim como no texto, "A culpa é sua" é uma frase recorrente e sempre endereçada à mais nova. Da porta do teatro para fora, embora estejamos em 2018, (pasme!) nada muda. "A culpa é sua" está até nas propagandas de margarina. Então, agora respondendo: Sim. Camufladamente e disfarçadamente sim. Fora o voto, ainda lutamos pelas mesmas coisas. Respeito, basicamente. Equidade e respeito. No texto, uma matriarca assume os comportamentos sexistas e opressores que lhe foram ensinados para "manter a ordem" enquanto espera o filho homem retornar. Tudo o que é novo é oprimido, castrado, banido. No espetáculo, as mais novas não tem voz e as brincadeiras são vistas como desrespeito. Acredito que pouca coisa tenha mudado. A mais nova, só observa, não tem voz e é culpada por tudo. Quando A Segunda brinca de soldadinho e sonha com um vestido vermelho, é vista como vulgar. A Filha mais velha só tem um pouco de voz em casa, porque é professora. Mesmo assim, mais a frente, revela suas decepções amorosas, a busca medrosa e insegura por um romance, a fuga da vida insuportável e tirana em que vive e como articula tudo isso para não sofrer. As duas mais velhas, vestindo preto e que só mostram o rosto, são "as mulheres de respeito" e que agora estão sempre de luto pelos homens que se foram. Sempre à espera. Mesmo assim, estão juntas, no mesmo barco e se apoiando, como dá. Todas ali detém dentro de si, uma sabedoria de se cuidar, de se acolher no meio de um cenário sem saída. As mais novas brincam, a mais velha some nos seus horários livres, as duas de preto conversam. A sororidade que hoje tanto se usa em hashtags vem sendo praticada desde que o mundo é mundo. Esta é uma pergunta de difícil resposta, ou, respostas infinitas. Seriam anos e anos e anos e anos... como tem sido. E nada muda. Como no texto. A não ser o fato de estarmos sempre juntas e resistirmos. A força feminina é algo sobrenatural. Duvido cinco homens sobreviverem a este texto. Ou melhor, duvido cinco homens sobreviverem a este texto, só que na vida aqui fora. Então se esperamos algo, esperamos respeito. Mas como o texto e a vida são cíclicos, continuamos resistindo.

R. C. - Estamos vivendo um momento de transformação da sociedade. A cada dia temos mais mulheres conscientes do seu papel e da sua força nesse mundo. As mulheres do texto, assim como todas nós, se sentem presas, são obrigadas a se adaptar à sociedade machista que existe já há muitos anos. São mulheres que cederam à esse modelo de sociedade por falta de opção, e por falta de consciência. A dor, a resiliência e a força das mulheres podemos perceber com muita facilidade em nossas matriarcas. Espero que a onda feminista que está crescendo nesse momento continue para que mais e mais mulheres e homens despertem e entendam a importância da igualdade de direitos e oportunidades para todos.

F. G. - Acredito que o texto se aproxima muito de como a mulher é vista na sociedade, sim. No caso da peça, estamos falando de um núcleo de mulheres que vive enclausurado dentro de casa à espera do caçula que fugiu durante uma briga com o pai e nunca mais voltou. Elas sentem o peso da culpa por não terem conseguido impedir que essas brigas ou essa fuga ocorresse, e esperam pelo rapaz pacientemente, paradas no tempo e sem nunca perder a esperança, como verdadeiras Penélopes à espera de Ulisses. Acredito que esses sejam, no bom sentido, lugares-comuns da mulher: carregar uma culpa que não é sua, tentar com todas as forças manter de pé os alicerces da família, manter a esperança acesa pela volta de um homem que se foi... é a velha e conhecida figura da mulher de instinto protetor que dedica o sentido de sua vida em prol da família e/ou do homem. Nesse sentido, Lagarce soube evocar figuras mitológicas e arquetípicas para tratar da natureza feminina, criando personagens profundamente humanas, complexas e capazes de gerar empatia e identificação em boa parte do público. É curioso observar como cada espectador se reconhece mais nessa ou naquela personagem dependendo das suas próprias características e experiências. Eu, particularmente, espero que cada vez mais as mulheres sejam livres para ser e viver como quiserem. Eu espero que a sociedade - e o mundo - permita isso à mulher, sem julgamentos, sem falsas solidariedades, e sem patrulha. Para mim, o fundamental é que haja liberdade, respeito e equidade na sociedade como um todo. Quero acreditar que as poucos estamos caminhando nessa direção...

D. F. - Toda proposição do artista tem a ver com a sua existência, depois transformamos em poesia, assim não seria diferente na obra de Lagarce. Estar no palco nos dias de hoje é um risco, um ato de coragem, resistência. O texto nos propõe abdicar da universalização do que é ser mulher, é necessário perceber as várias possibilidades em nossa existência, descolonizar os mitos e discursos do homem para se manter no poder. A mulher sofre com a despersonalização, um movimento de massa que impõe padrões de raça, orientação sexual, classe e identidade em todas as suas intersecções. Mulheres rotuladas pelos “cafajestes da esquina” se aprisionam em uma casa com suas inquietações e a necessidade de existir. Pleno século XXI e ainda parece tão contraditório utilizar igualdade e liberdade em meio ao progresso. As mulheres tem sua primeira menarca e lhe colocam varias proibições, censuram-nos. Fala-se de sororidade, mas até mesmo entre mulheres é uma busca diária para romper as mascaras de opressão física e psicológica sobre nossos corpos e saberes. Diz-se que a mulher não é pensada a partir de si, mas sempre em comparação ao homem. E assim se estabelece no texto com essas mulheres que esperam o retorno do caçula. Políticas devem ser para todos. Mas quem são esses “todos” ou quantos cabem nesses “todos”? É preciso muita arte, cultura, poesia, teatro, música, dança e fé para continuar a luta diária do nosso eu. O movimento feminista em busca de igualdade vê no outro a abertura para o infinito.

S. D. - Na peça essas mulheres estão claramente inseridas num contexto patriarcal opressor, inclusive a tragédia reside aí, na inevitabilidade dessa existência sem voz e a despeito da potência dessas mulheres, elas não conseguem se libertar, são envolvida e massacradas pelo contexto mas, a tragédia maior ao meu ver é que agora, na ausência de homens, quem perpétua esse claustro sombrio é a mãe, uma mulher. É tão triste que uma mulher tão forte, com tanto poder de ação seja destituída de si mesma, não tenha a clareza de entender que suas motivações e até  a fonte de suas dores mais profundas não reside numa escolha consciente e sim numa repetição autômata de padrões estabelecidos há muitos séculos de desconstrução da mulher completa, inteira, íntegra em todos os níveis de ação. Conhecemos bem esse caminho historicamente, grandes lutas foram travadas por diretos básicos. É assustador que ainda hoje, com todos os avanços tecnológicos, científicos, estruturais, nós mulheres tenhamos que continuar a luta. Hoje a luta é aberta ampla e implacável, é necessário que assim seja nós sabemos que em determinados lugares e culturas a mulher ainda está sujeita a horrores inimagináveis só por ser mulher. É absurdo. E mesmo aqui, sob a luz brilhante da razão, temos que lutar todos os dias. Os índices  de feminicídio são altíssimos, a mulher ainda é subjugada, desconsiderada e sobrecarregada com salários menores A nossa cultura ainda é devastadora para a mulher  e vivemos num tempo que pode mascarar esse lugar de “relevância relativa” ainda atribuído à mulher.

L. F. - Lamentavelmente serei redundante em responder que ainda em 2019 esperam-se padrões comportamentais normativos para as mulheres, que ainda são julgadas numa lógica imposta, exterior à sua própria condição. Assuntos como liberdade de escolha e sexualidade femininas são ainda tabus e aquelas que não seguem os padrões estabelecidos pela sociedade são muitas vezes recriminadas. A mulher deveria ser o que ela quer ser e não o que a sociedade espera que ela seja. Ainda existe muita desigualdade entre homens e mulheres, porém hoje se observa um crescente questionamento, facilitado também pelo uso das mídias sociais, com inúmeras redes de mulheres se unindo e se apoiando para promover mudanças e reivindicar seus direitos. Como na peça, apesar das discrepâncias de pontos de vista e maneiras de agir, o que resta é o sentimento de união entre as mulheres, é através dele que será possível resistir e promover mudanças mais profundas.


Elenco de Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse (Foto: Inês Correa)