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Por Miguel de Almeida

A Internet estimula as pessoas a se comunicarem através da escrita, faz com que surja uma linguagem digital e levanta questões sobre a língua portuguesa

Foi uma mensagem curta e telegráfica que garantiu a Stalin que os japoneses não invadiriam a União Soviética. O bilhete custou a vida de quem o enviou - o lendário Sorge, conhecido como o "espião vermelho" -, mas mudou a história da humanidade: Stalin pôde então contar com as tropas estacionadas em prontidão no flanco leste do país e surpreender os nazistas do exército de Hitler que estavam a instantes de tomar Moscou. Fosse nos tempos atuais, Sorge teria registrado o resultado de suas espionagens em um banal e-mail, disparado a partir de um laptop - da mesma maneira, aliás, como vinham se comunicando alguns dos terroristas da Al Qaeda, organização de Osama Bin Laden.
Embora o mundo esteja em plena civilização de imagens - disparadas pelo cinema, pela televisão, pelos painéis das avenidas -, é a linguagem escrita que parece estar sendo privilegiada. Mesmo o planeta tendo se transformado numa única aldeia global, ligada por webcâmeras, fibras ópticas que cruzam todos os oceanos e um noticiário em tempo real, aproximando o que antes era muito distante e assim dilatando exageradamente o que pode ser contido em estáticas 24 horas de um dia, apesar de toda essa nova tecnologia, é a palavra escrita que ocupa a ribalta como ferramenta de comunicação. Na proliferação dos e-mails, nas dezenas de milhares de pessoas que participam de salas de bate-papo e na comunicação on line através do ICQ, são as palavras que conduzem a troca de informações, as juras de amor, as propostas comerciais, os comunicados à imprensa ou a prosaica combinação para um chope no final da tarde. É um paradoxo, mas é verdade: a Internet, e todos os seus corolários tecnológicos, provocou uma espécie de renascimento da escrita, podendo-se falar em comportamento epistolar digital, ou "recaída" na palavra - como brinca o crítico e escritor Fábio Lucas. Ou, ainda, uma nova "viagem de descobrimentos", na definição da professora e escritora Nelly Novaes Coelho. O fato é que nunca se usou tanto a escrita como nestes tempos on line.
Os milhares de jovens que nos finais de tarde ou madrugadas adentro trocam impressões e segredos nas salas de bate-papo, dando as costas ao resto da família, adotando o papel de infomaníacos de última cepa, mal sabem que estão repetindo o fervor epistolar que outrora acometeu seus próprios avós e bisavós, quando tinham somente o papel da carta para trocar promessas com a amada ou segredos com queridos amigos distantes.

Qual escrita?
Por certo, o parágrafo anterior pode provocar urticárias em quem preza a língua pátria, já que as salas de bate-papo (ficando em um exemplo) não costumam primar pelo melhor exercício do uso da gramática, da ortografia e mesmo da sintaxe. Os habitantes desses chats costumam desprezar as regras em função de uma comunicação rápida, adotando sinais gráficos e abreviaturas em lugar de palavras, produzindo elipses na rapidez dos bites e desprezando por completo regras básicas do bom português. Algum incauto não familiarizado com esse novo idioma poderia pensar estar diante de alguma mensagem cifrada fundamentalista ou de uma língua morta da Torre de Babel. Mas o fato é que as pessoas estão se comunicando e muito: no Brasil, os principais portais de Internet possuem centenas de disputadas salas de bate-papo; são também milhares as pessoas que utilizam o ICQ - programa de comunicação on line - e, embora seja um número estimado, acredita-se que milhões de e-mails sejam trocados diariamente apenas em linhas brasileiras.
Sim, e a língua? "O que há é uma linguagem elíptica", pondera o ensaísta literário Fábio Lucas. "A própria tecnologia da imagem criou uma espécie de narrativa descontínua, o videoclipe, que influenciou a manifestação poética de muitos autores de hoje que inovam nessa forma relâmpago pela qual as palavras surgem já no seu esplendor. Não acopladas numa forma sentencial mais prolongada ou, então, em uma sintaxe mais complexa."
Assim como o poeta Carlos Drummond de Andrade, que exaltava a linguagem criativa dos amantes, o também mineiro Fábio Lucas recorre aos recados deixados pelos grafiteiros nos muros das metrópoles para exaltar a invenção aplicada à escrita: "O grafite é um precursor dessa nova escrita; são mensagens epigramáticas e, ao mesmo tempo, condensadas, porque normalmente são de conteúdo erótico ou amoroso e visam impressionar a pessoa que está do outro lado. Por isso mesmo, há um parentesco entre o grafite e a expressão que muitas vezes se manifesta no computador", analisa.

Incentivo digital
O advento da Internet fez com que indivíduos que jamais haviam escrito algo além de seus nomes próprios fossem obrigados a elaborar uma mensagem para seu chefe ou namorada. Ou para reclamar ao fabricante a inoperância da sua recém-adquirida geladeira. De repente, a palavra articulada em frases tornou-se a chave para ganhar tempo. Escrever deixou de ser uma atividade cativa de profissionais ou aficionados para ser algo tão essencial como saber pedir um guaraná gelado no boteco da esquina. Nesse ponto, ninguém polemiza: a Internet estimulou as pessoas a usar a linguagem escrita. "Na época em que eu fazia palestras, as pessoas, principalmente as mais jovens, reclamavam que não tinham chance de escrever e queriam saber como desenvolver o hábito. Lembro que respondia que um bom exercício era trocar telefonemas por bilhetes. Agora, com a Internet, surgem dois aspectos: um deles é que as pessoas estão tendo de escrever e o outro é que está sendo exigido delas uma escrita razoavelmente rápida. Como as mensagens são trocadas em tempo real, a outra pessoa não vai ficar esperando você alinhavar um texto", analisa o jornalista Eduardo Martins, autor do Manual de Redação e Estilo, d'O Estado de S. Paulo.
Podemos falar de um retorno ao tempo das correspondências epistolares? Nem tanto. "Acho precipitado dizer que a Internet fez as pessoas retomarem o hábito de escrever. Acredito que elas tenham sido estimuladas a escrever, sobretudo pessoas que não tinham até então esse hábito, mas trata-se de uma escrita bastante diferente da convencional", analisa o lingüista Marcos Bagno. "Mas a comunicação eletrônica mostrou definitivamente que não há lugar para a velha dicotomia entre língua falada de um lado e língua escrita de outro. A comunicação digital, principalmente nas salas de bate-papo, parece caracterizar uma linguagem híbrida, mescla de escrita e de fala. Afinal, trata-se de um bate-papo, ou seja, um evento típico da oralidade", afirma. Na opinião de Bagno, os sinais gráficos ou radicais abreviaturas comuns nos textos dos chats se inserem em um cenário perfeitamente compreensível. "As abreviações tentam ganhar tempo na comunicação digital, tentam aproximá-la do tempo da fala real. Somente o avanço tecnológico poderá solucionar esse problema, quando forem inventados computadores que dispensem a digitação e trabalhem diretamente a partir da voz do usuário. Até lá, temos de olhar para a escrita na Internet com outros olhos: com os olhos de quem está ouvindo uma língua falada", atesta. Bagno também não se deixa assustar pelo recheio das conversas mantidas nos chats: "A Internet é uma escrita virtual, uma fala digitalizada, uma mescla das duas modalidades da língua. O conteúdo só interessa a quem escreve e a quem lê. Assim como é inútil tentar corrigir a língua falada, também me parece inútil tentar corrigir a língua escrita na web, porque ela é fugaz, efêmera e se dissipa no ar, porque sequer chega a ser impressa", afirma.

Meu português ruim
Até então estávamos falando dos chats (salas de bate-papo na Internet). Já o e-mail, aquela mensagem eletrônica enviada pelo correio digital, não pode ser tratado com a rapidez da comunicação sob abreviações ou sinais gráficos em alguns circuitos. Um gerente deve saber pesar as palavras ao reclamar com seu diretor sobre um determinado problema. Depois, a linguagem falada não possui o mesmo peso da linguagem escrita. Um palavrão escrito é mais dolorido do que o mesmo desaforo dito ao telefone. Tanto que é mais fácil ouvir algum impropério na novela das oito do que lê-lo na capa do seu jornal matinal. "O que você diz, passa. Na televisão isso acontece muito. Nas coisas escritas há o registro; o que foi escrito permanece", atesta Eduardo Martins.
Dentro das empresas, o advento do e-mail fez com que os departamentos de recursos humanos se preocupassem com a redação de seus funcionários, além de alertá-los dos cuidados com a espontaneidade excessiva nos textos. Daí a importância de as pessoas estarem atentas ao que estão colocando na tela do computador. Ou seja, é necessário capacitar-se para escrever. "Numa conversa informal, tudo bem. Mas digamos que você faça um currículo perfeito, sem erros, porque alguém o preparou; você manda uma mensagem de três linhas acompanhando o currículo e comete cinco erros. Quem for examinar o currículo ficará de orelha em pé", comenta Eduardo Martins.

Nestas mal traçadas
O e-mail sem dúvida tornou mais fácil a comunicação entre as pessoas. E a esquentou também. A editora da seção de cartas do O Estado de S. Paulo, Anabela Rebelato, é uma testemunha diária dessa afirmação: o aumento de leitores que se comunicam com o jornal foi brutal. Antes, as cartas publicadas referiam-se a assuntos tratados há quase cinco dias, já que vinham pelo correio tradicional. Hoje, não. A seção aborda os assuntos de ontem, quentíssimos. Mas, e a qualidade? "Temos todos os padrões: aquele leitor com dificuldade de escrever mas que tem uma boa idéia, ou aquele que se diz uma pessoa humilde, porém com uma capacidade extraordinária de análise. Agora, a boa carta de opinião e análise espera um pouco as coisas acontecerem para ter uma certa perspectiva; essas são as mais difíceis, e também as melhores."
Já o escritor João Silvério Trevisan enxerga na Internet um verdadeiro instrumento de forçosa capacitação. "Quem não consegue se expressar pela escrita está superado dentro da web. Você entra, por exemplo, numa sala de bate-papo. Se exprime mal o que está querendo e pensando, cria-se um desinteresse na outra parte. Então a pessoa necessariamente tem de se expressar bem", comenta. E dá um golpe mortal: "Quem estiver se expressando melhor leva vantagem. A Internet é a grande comprovação de que a expressão escrita é fundamental nos dias atuais".
A escritora Nelly Novaes Coelho acrescenta: "Temos de notar que essa troca de comunicação está baseada em uma singularidade humana. Refiro-me à palavra, aquilo que diferencia o homem do animal. E como a palavra só tem valor quando situada na frase ou tecendo a linguagem, faz-se necessário que os novos programas de educação e ensino criem projetos que ponham a palavra em situação e dinamizem de maneira criativa o processo de conhecimento".
Em outras palavras, a citação do psicanalista Jacques Lacan resume o momento de euforia digital e epistolar deste início de século: "O que não é nomeado, não existe".

Miguel de Almeida é jornalista.
Com reportagens de Julio Cesar Caldeira