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É livro ou é jogo?

Em 1915, quando Lima Barreto publicava pela primeira vez sua obra A Nova Califórnia, ele certamente não podia supor que a mesma serviria de inspiração para um filme, uma telenovela e muito menos que o personagem Raimundo Flamel roubaria ossos do cemitério de Tubiacanga num game desenhado em pixel art. A explicação é simples: uma boa história seguirá sendo relevante seja qual for a ferramenta usada para contá-la. E fatalmente surgirão novos aparatos para trazer as tramas à vida. 

Tainá Felix é uma das desenvolvedoras da versão em jogo do conto, que está disponível no estande do Sesc na Campus Party. Com formação em artes cênicas, acabou descobrindo no universo dos games uma potente ferramenta de expressão e de impacto social. Em A Nova Califórnia, ela foi responsável pelo roteiro e adaptação dos personagens. “Dei uns bons pitacos na iluminação também”, conta.  “O teatro e o videogame, apesar das pessoas acharem muito diferentes, são mídias e linguagens artísticas que trabalham com muitas outras linguagens dentro delas mesmas”. Ela aponta também o quanto as fronteira entre as artes não são mais tão definidas:  “A gente está num momento em que essas coisas se borram muito. O que é vídeo game, o que é performance, o que é teatro, o que é dança, o que é arte. E eu vejo que o próprio Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc brinca um pouco com isso”, comenta.

Segundo Tainá, os games em sua origem eram vistos muito mais por sua jogabilidade e diversão do que pela narrativa. Com o tempo isso foi mudando e percebeu-se que o videogame é uma mídia poderosa para contar histórias. Pensar que o jogo é um suporte digital pra contar uma história em que você é empoderado a ser uma das personagens é muito potente”.

 


Teaser do jogo A Nova Califórnia
 

Entretanto, para além das possibilidades abertas dentro da linguagem, há quem defenda que a literatura tradicional em si é um tipo de jogo. É o que conta Samira Almeida, que veio do mercado editorial e atualmente desenvolve aplicativos que ela define como livros interativos.  “Há um jogo entre você e o autor, por que não existe nem escrita nem imagem que não seja intencional (...) quando você pega esse livro, vai assistir um filme, ou vai ler as imagens se for um livro de imagens, você vai estar entrando num jogo que o autor te propôs ”.

Talvez venha daí a dificuldade em definir os aplicativos desenvolvidos pela empresa de Samira como games ou livros. Os projetos da Storymax já figuraram tanto como vencedor do prêmio Jabuti quanto como finalista do Big Festival, o maior festival de games independentes da América Latina. “Está muito mais na interpretação de quem está vendo do que na forma como eu me coloco. O nosso interesse é justamente que a leitura seja atraente e engajadora”.

As possibilidades se expandem ao infinito, tanto em investidas como a do game A Nova Califórnia, em que os desafios são criados em cima da própria narrativa, até nas experiências em que o leitor é colocado no papel de um personagem e tem que fazer escolhas que alteram o desenrolar da trama.

Samira vê a literatura como uma área bastante refratária a inovações, uma espécie de última fronteira da mistura de linguagens. Ao refletir sobre a quantidade enorme de opções midiáticas que uma criança tem ao escolher uma atividade de lazer, a princípio ela decidiu apostar no equilíbrio entre texto, ilustrações, animações, sons e interações para trabalhar títulos clássicos, conteúdos que são essencialmente relevantes independentemente da forma como são entregues.

As perspectivas abertas pelas ferramentas digitais trouxeram uma liberdade que descolam a experiência de ler do papel e acrescentam outras nuances a ela. Porém o caminho não aponta necessariamente para o fim do livro como o conhecemos. Algumas crianças contam que já leram as histórias publicadas pela Storymax três vezes: a primeira no aplicativo, acompanhada por alguém, a segunda sozinhas e a terceira conhecendo a boa e velha biblioteca.