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Teatro vivo

Trezentos espetáculos. Esse é o número aproximado de montagens dirigidas por Amir Haddad, mineiro de Guaxupé que desde os 16 anos está envolvido com o universo da dramaturgia. Chacoalhando os tablados do Brasil, já trabalhou com José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi no Teatro Oficina, e com Antônio Abujamra na fundação da companhia Teatro da Cidade, até criar, nos anos 1980, o grupo Tá na Rua, defendendo a interação entre ator e plateia. Aos 81 anos, Amir relembra episódios de uma carreira dedicada à arte cênica.


Arquivo pessoal.

O chamado

Estudei numa escola modelo da época, o colégio estadual Presidente Roosevelt. Tive professores que me ensinaram a ler Carlos Drummond de Andrade, que me falaram sobre a vida e me apresentaram o Brasil. Eles me despertaram para muita coisa. Eu era uma criança inquieta, mas poderia continuar ignorante se esses professores não tivessem me despertado para a vida. Uma das coisas que o colégio me mostrou foi o teatro. Um dia cheguei à escola e vi um palco montado onde seria encenada a peça Uma Mulher e Dois Palhaços, com Sérgio Britto e Eva Wilma, os dois muitos jovens e eu fascinado por eles. Esse foi um chamado muito poderoso.

Movimentar corpos e enredos

A cidade oferecia muitas possibilidades para um jovem inquieto e disposto a aprender. A mídia da época era o teatro e nós, jovens, éramos atraídos por ele. Existia o cinema, mas era o cinema da Vera Cruz. Era vinculado à produção industrial, não era possível a jovens como nós fazer cinema. Em contraponto, a qualidade artesanal do teatro nos dava essa possibilidade, com grupos amadores e pequenos festivais. Sem falar dos espetáculos que escandalizavam e mobilizavam a sociedade. Então, uma peça do TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] fazia sucesso, as pessoas ligadas à vida cultural acabavam atraídas. O TBC fez muito a minha cabeça. A minha e a do Zé Celso também [José Celso Martinez Corrêa]. Meu contato com o teatro se aprofundou pelo desprazer que eu sentia com a faculdade de Direito. Inspirados por isso, começamos a fazer teatro. O Renato Borghi tinha estudado perto do Largo São Bento e contou que os padres gostavam de teatro. Sugeriu fazermos a peça A Cândida [de Bernard Shaw]. Distribuíram os papéis entre todos e eu fiquei sem personagem. Perguntei para eles: O que eu faço então? Não sobrou papel para mim? O Renato respondeu: Ah, você dirige. Dirigi a peça e ninguém se trombou em cena, tudo certinho. Assim descobri minha qualidade de movimentar as pessoas que nem imaginava que eu tivesse. Sem saber o que fazer na vida durante a faculdade de Direito, fomos fazer teatro. Sou mineiro de Guaxupé. Estranhos no ninho, saímos no 3º ano fazendo o grupo Oficina. O Zé Celso e o Renato foram mais espertos do que eu, terminaram o curso e são bacharéis.

O teatro é um meio para

discutir a sociedade

tecnológica na qual vivemos

Pelo buraco da fechadura

Trabalhei com o Zé Celso no Oficina durante dois anos. As duas primeiras peças [Vento Forte para Papagaio Subir, 1958, e A Incubadeira, 1959] foram escritas pelo Zé Celso e dirigidas por mim. Fora isso, tínhamos o projeto do teatro em domicílio: montagens que encenávamos nas casas da classe média paulistana que moravam nos arredores da Avenida Paulista. Eu adorava. Jorge Cunha Lima (jornalista e escritor) ofereceu a casa para ser a sede do Oficina. Um dia cheguei e tentei abrir a porta com a chave e não funcionou. Meus amigos também tentaram sem sucesso. Notamos que o grupo do Zé Celso estava com a chave nova. Era muito pequena aquela casa para mim e Zé Celso. Ele trocou a fechadura e não avisou para ninguém. Na hora entendi, joguei minha chave e nunca o procurei para saber o que aconteceu. Fui trabalhar no teatro profissional da cidade. Ainda somos amigos e já mandei recado para o Zé Celso não morrer por agora e me comprometi a não morrer também.

Quarto de Despejo

Na sequência me associei ao Antônio Abujamra e fundamos uma companhia chamada Teatro da Cidade. Nela, dirigi Quarto de Despejo, com um elenco todo formado por atrizes e atores negros no Teatro Bela Vista [hoje Teatro Sérgio Cardoso]. Só havia uma atriz branca, a Célia Biar. Ruth de Souza interpretava Carolina [Carolina Maria de Jesus, autora do livro Quarto de Despejo]. Na plateia, predominava a classe média alta da cidade. Após os espetáculos, várias senhoras da plateia iam ao camarim oferecer emprego de doméstica às atrizes. Nessa jornada, no teatro de rua, proponho artesania como forma de comunicação. O teatro é um meio para discutir a sociedade tecnológica na qual vivemos. Defendo a interação entre ator e plateia desde 1980, quando fundei o grupo Tá na Rua. Ainda acredito que não existe contemporaneidade sem ancestralidade.
 

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