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Paisagem alimentar brasileira

Por Paula Pinto e Silva*

Sabemos que as escolhas alimentares de um grupo não são a simples soma de alimentos ofertados versus disponibilidade econômica e conhecimento nutricional. Partindo de uma perspectiva antropológica, comer implica transformar o alimento em comida, atribuindo significados que ajudam a nos dizer o que este grupo pensa sobre economia, saúde, nutrição e prazer. Isso significa que há um processo simbólico que estrutura o pensamento humano sobre a comida e que está presente desde a seleção de ingredientes considerados comestíveis, passando à escolha da melhor parte a ser consumida (e por quem e com quem), os processos de higienização necessários (ou não), os cortes específicos (ou não), o uso de determinados utensílios e técnicas, a forma de servir e de comer. Quem nunca ouviu que é preciso colher de pau e tacho de cobre senão o doce não “pega ponto”? Ou que estar nos dias de “lua” pode fazer o bolo de uma mulher “embatumar”? E servir canjica doce com canela em pó ajuda a descer o leite da mulher recém parida?

Se é certo dizer que os alimentos carregam significados particulares, também é certo afirmar que os parâmetros que balizam o pensamento de um grupo sobre sua comida estão misturados a outros de natureza social, política e econômica e expressam resistência, adaptação, resiliência, abertura, assimilação. Pode-se dizer que o sistema alimentar é um emaranhado de fios invisíveis que sustentam processos culinários concretos.

Pensemos no sistema alimentar brasileiro, formado a partir do tripé farinha, feijão e carne seca, estabelecido durante o período colonial: trata-se de uma estrutura de longa duração que fala sobre permanência (de ideias, de alimentos, de práticas), transversalidade (pelo território e por diferentes contextos socioeconômicos) e desigualdade (na quantidade dos alimentos, na qualidade deles, no acesso às informações).

Somos um grande país agroexportador e também um dos maiores em permitir o uso indiscriminado de agrotóxicos agressivos; temos gigantescos pedaços de terras produtivas com um só dono; poucas empresas alimentícias dominam o mercado ditando assim seus próprios critérios para negociação de preços, composição de produtos e formação de mercado; somos obesos e desnutridos; encaramos um dos primeiros lugares na fila de desperdício de alimentos enquanto grande parcela da população ainda passa fome ou mal tem o que comer.

No cardápio cotidiano, vamos de arroz com feijão; nas comidas que chegam de fora, somos tão criativos e transgressores que inventamos o sushi de carne seca, o croissant de goiabada, a pizza de estrogonofe ou a coxinha de brigadeiro; tudo isso é coisa nossa. Defendemos a imutabilidade das receitas culinárias, algumas já transformadas em patrimônio nacional, e adotamos de imediato qualquer moda alimentar, esteja ela carregada de princípios nutricionais, ideológicos, de mercado ou mesmo sem nenhum princípio.

Denunciamos os métodos desumanos de criação de animais e fazemos filas nos supermercados quando o preço da carne cai (a mesma carne que foi desumanamente tratada). Pregamos que a solução aos problemas alimentares é a comida da avó – de raiz, fresca, do dia, de panela, com temperos da horta –, a comida verdadeira, a família em volta da mesa, os homens cozinhando, mas esquecemos de juntar esse discurso aos índices crescentes de feminicídio, aos dados de tríplice jornada do trabalho feminino e ao subemprego doméstico que é parte dessa estrutura alimentar. Como em um descompasso, procuramos em um tempo não moderno a autenticidade e a identidade necessárias para viver um presente tão complexo.

Tradição, repetição e permanência mesclam-se a outros ideais alimentares contidos nos processos de industrialização, gourmetização e individualização da comida. Nesse caminho de modernidade incompleta eis nosso paradoxo, resolvido à moda brasileira: tempos históricos variados, desencontrados e sobrepostos que geram uma nova paisagem alimentar.

 

* Paula Pinto e Silva é Antropóloga, Doutora e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de Antropologia na Escola Superior de Propaganda e Marketing (MBA em Estratégias e Ciências do Consumo). Autora de Farinha, feijão e carne seca. Um tripé culinário no Brasil colonial e organizadora do livro Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues, ambos pela Editora Senac.  É membro fundadora do C5 – Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo e co-criadora da Revista Sexta Feira – Antropologia, Artes e Humanidades. Ela foi uma das palestrantes do Seminário Internacional Conexão Comida. As gravações completas das mesas e conferências está disponível aqui