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Psicologia de elevador

No hall de um edifício comercial, cinco pessoas esperam: um garoto pálido; uma punk de cabelos espetados e azuis, com música escapando pelos headphones; um homem baixinho e gorducho, segurando uma pasta rígida de couro; e um casal de idosos – um senhor careca, de aspecto dolorido, carregando envelopes de exames médicos, e uma senhora elegantemente hippie.

As portas do elevador se abrem e todos entram. Cada passageiro aperta o botão do andar que deseja. As portas se fecham e o elevador começa a subir. De repente, pegando a todos de surpresa, o garoto pálido avança até o painel e aciona a chave de emergência. O elevador estanca. Os demais passageiros ficam atônitos.

Senhor – Por que você fez isso?

Todos olham para o garoto.

Garoto – Vocês não ouviram?

A jovem punk tira os headphones do ouvido.

Silêncio. O casal de idosos e o homem rechonchudo

se entreolham. O garoto encosta o ouvido numa

parede do elevador.

Punk – O que foi?

Senhor – Ele ouviu alguma coisa.

Punk – Como assim?

Gordinho – Sei lá. Ninguém mais escutou nada.

Todos olham para o garoto. Ele, com novo

sobressalto, descola o ouvido da parede.

Garoto – Ouviram agora?

Punk e Senhor – Não.

Garoto – Não é possível…

Gordinho – Eu vou me atrasar.

Garoto – É alguém pedindo socorro.

O gordinho bufa. O casal de idosos se encolhe.

A punk aproxima-se do garoto e encosta o ouvido

na parede do elevador. Ele também encosta.

Garoto – Ouviu?!

Punk – Não.

Garoto – Jura?

Punk – Tô falando…

Gordinho – Está ficando quente aqui.

Garoto – Alguém está precisando de socorro.

Senhor – Você bebeu?

Senhora – Que tal a gente descer até a portaria, ou saltar num andar qualquer e pedir que avisem o porteiro pelo interfone?

Garoto – Mas e se for alguém que caiu no poço do elevador? E se for alguém se agarrando nos cabos, num andar acima de nós? Não consigo saber se a voz vem de cima ou de baixo.

O gordinho dá nova bufada, mas larga a pasta

no chão e encosta o ouvido em outra parede

do elevador. Todos ficam em silêncio.

Garoto – Ouviu isso?

Gordinho – Isso o quê?

Garoto – Como pode não ter

ouvido dessa vez!?

Senhor – Não tem nada para ouvir, menino…

Garoto – Agora foi uma voz de mulher!

É um casal que está preso.

Todos acham a hipótese absurda.

Punk – Ninguém está ouvindo droga nenhuma.

Garoto – Eu ouvi nitidamente.

O garoto encosta outra vez o ouvido e fica atento. Os demais aguardam.

Punk – Qual é a sua, hem?

Garoto – Shhhiiiuuu!

A senhora idosa, com ar maternal, pela primeira vez se afasta do marido e encosta o ouvido na parede do elevador. O garoto olha para ela e pisca, agradecendo. Eles ficam quietos, atentos, enquanto o gordinho, a punk e o senhor com exames médicos demonstram irritação.

Senhor – Mirtes…

A senhora franze as sobrancelhas,

um sinal para o marido se calar.

Garoto – Ouviu?!

Senhora – Não…

Garoto – Você se distraiu bem na hora.

Senhora – Desculpe.

Gordinho – Garoto, você está atrasando todo mundo. Vamos sufocar aqui dentro!

Senhor – Eu tenho hora no médico…

A senhora, ignorando-o, torna a encostar o ouvido na parede do elevador.

Senhor – Mirtes!

Punk (para o garoto) – Você tá viajando muito.

Ao dizer isso, a punk dá um passo até o painel, decidida a soltar a trava de emergência.

Garoto – Não!

Ele agarra o braço da punk e a empurra. O homem gordinho protege a menina num reflexo e o empurra também. Todos antecipam a briga, mas o garoto levanta as mãos, num gesto de trégua, e recua voluntariamente para o fundo do elevador.

Garoto – Ninguém ouviu nada mesmo?

Todos – Não.

Garoto – Não é possível…

Senhora – Assim que os outros descerem, eu vou com você avisar o zelador do prédio. (ao marido) Você me espera no médico? Cinco minutos...

Ninguém diz nada.

Garoto – Por que o único a escutar sou sempre eu?

Ele dá duas cotoveladas na parede, com força. Todos se entreolham.

Senhora – Calma, filho. Assim você vai se machucar.

Garoto – As vozes não me deixam em paz…

A senhora o encara, preocupada. O garoto abaixa o rosto. Ela então encara o marido e, com um gesto discreto, ordena que diga alguma coisa. Ele se recusa a fazê-lo. O garoto, alheio a tudo, ergue o rosto de olhos fechados, respira fundo e leva as mãos à cabeça, num gesto de aflição. A punk se reaproxima da trava de emergência no painel e está prestes a soltá-la.

Voz em off – Alôôôô!

Uma nítida voz de homem. A jovem punk interrompe o gesto e todos se voltam para o garoto. Ele não esboça qualquer reação. Ainda de olhos fechados, não se mexe.

Voz em off – Tirem a gente daqui!

Uma nítida voz de mulher. Todos estão assombrados, enquanto o garoto continua perdido em si mesmo. Ele abre os olhos, atormentado.

Garoto – Na minha cabeça, as vozes não

param nunca.

A punk e o homem gordinho, com um olhar, perguntam-se o que fazer. O casal idoso se dá as mãos. De repente, o garoto abre os olhos e começa a dar tapas na própria cara.

Garoto – Calem a boca! Chega!

Eu não aguento mais!

*

Há elevadores de todos os tipos – luxuosos, decadentes, estofados, espelhados, de madeira, envidraçados, com portas pantográficas, portas duplas, portas simples, portas retráteis, panorâmicos, hidráulicos, em forma de cápsula, elevadores de hospital, de fábrica, de construção etc. etc.

Não importa como ele seja, no entanto. Suas propriedades de laboratório comportamental são indiscutíveis. Uma vez lá dentro, mate moscas que só você vê e espere a reação dos outros; abra sua mochila, enfie a cara dentro dela e pergunte: “Tem ar suficiente pra você aí?”; finja que os botões do painel estão dando choque, depois sorria e faça de novo;

desenhe com giz um pequeno quadrado no chão e avise bem alto para os outros passageiros: “Esse pedaço aqui é meu!”; leve uma câmera e fique fotografando o sapato de todo mundo; largue uma caixa num canto e, quando alguém entrar, pergunte se está ouvindo um tique-taque; finja ser um comissário de bordo e revise os procedimentos de emergência, gesticulando de acordo; em vez de ficar voltado para a porta, encare uma quina da parede; sem nenhum motivo, olhe muito seriamente para outro passageiro e pergunte: “Você sentiu isso?”; ou então, num efeito chapliniano, encare uma criancinha nos olhos, arregace um pouco a calça e diga: “Estou de meia nova”.

A pegadinha é o gênero dramático do século 21.
 

Rodrigo Lacerda é autor de O Mistério do Leão Rampante (Ateliê, 1995), que ganhou os prêmios Jabuti e Certas Palavras de Melhor Romance; O Fazedor de Velhos (Companhia das Letras, 2008), Prêmio Melhor Livro Juvenil pela Biblioteca Nacional e Prêmio Jabuti; Outra Vida (Companhia das Letras, 2009),Prêmio de Melhor Romance da Academia Brasileira de Letras; Reserva Natural (Companhia das Letras, 2018), entre outros.

 

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