Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Projeto
A história e os sons

Projeto une literatura e música e provoca um mergulho no universo de personagens fascinantes ao som de compositores brasileiros

A ligação da maioria das pessoas com a música é forte e beira mesmo o visceral. Há quem não saia de casa sem fones de ouvido ligados numa estação de rádio. Já outros não conseguem enfrentar o trânsito da cidade se não for ao som do cantor preferido. Músicas para ouvir quando se está triste; músicas para ouvir quando se está alegre. Música na missa, no horário político, na casa do vizinho, no teatro; trilha sonora de novela e de cinema. Quase todas as imagens nos chegam acompanhadas de uma sonoridade; menos, talvez, aquelas que criamos na cabeça inspirados pela narrativa de um bom livro. Qual é a música de Policarpo Quaresma? O tema de Capitão Rodrigo? O hábito da leitura é silencioso. Mas precisa ser necessariamente assim?
Para os idealizadores do projeto Personagens e seus Sons, realizado pelo Sesc Vila Mariana, não. O evento pretende unir música e literatura criando sessões de leitura dramática de grandes obras ao som de músicas criadas na época em que se passam as tramas ou inspiradas nesses períodos. Um sarau que mistura teatro e concerto. "A idéia surgiu de uma curiosidade acerca das paisagens sonoras dos grandes momentos e movimentos da literatura brasileira", explica Jorge Vasconcelos, técnico da unidade e mentor do projeto. O objetivo é chamar a atenção para a importância da literatura como referência cultural e fonte de prazer, estimulando a leitura. Abrindo a agenda de Personagens, no dia 11 de janeiro o Dom Casmurro, de Machado de Assis, foi levado ao palco do auditório da unidade pelos atores Lincoln Rolim e Patrícia Horta Lemos e pela musicista Heloísa Fernandes, ao piano. O drama psicológico do personagem Bentinho, e sua eterna dúvida quanto à possível traição da esposa, Capitu, com o amigo Escobar, é mostrado de maneira lúdica, com leituras dramáticas e intervenções musicais que pautam os momentos de tensão do enredo. "Os sons propostos pela literatura são muito fortes para o ator", explica Lincoln. "Dom Casmurro tem um mistério que conduz a um tempo passado e a valores de uma época que vem muito forte na lembrança do ator quando há um músico por trás de tudo", afirma ele.
"Foi muito interessante para mim porque nunca tinha lido o livro", confessa a atriz Patrícia Horta. Em cena, a palavra ganha uma força que não é nem a da palavra lida, tampouco a da falada numa peça de teatro. Soa como uma roda de contadores de história, a palavra passada de um indivíduo para outro, do modo como era feito antes do papel... "Quando o ator não está encenando, a emoção e a voz têm peso maior", explica Patrícia. "Não há a presença do corpo como no teatro." "É como nas antigas novelas de rádio", acrescenta Lincoln.
Responsável pela pesquisa musical, Heloísa Fernandes conta que se dedicou ao garimpo necessário mergulhando num mar de delícias sonoras e tendo como guia os principais elementos encontrados no romance de Machado: a sociedade carioca do século 19 e a trágica história de amor de Bentinho e Capitu. "Eu precisei ouvir tudo o que pude do que foi produzido no século 19", começa contando. "Posteriormente, em meio a todo esse material, escolhi o que mais se adaptava ao clima do livro. E isso é mais difícil que compor algo novo", afirma. O que se ouviu, portanto, foi o que significou a obra como um todo na concepção da pianista. Para ela, as cenas de Dom Casmurro pediam um pouco de tudo: das valsas de Luiz Levy às peças de Francisco Braga, passando por obras de Alberto Nepomuceno e coisas mais populares, como Ernesto Nazareth.
O grande mérito do evento é, sem dúvida, abrir as portas da literatura de qualidade para aqueles que sempre a olharam com certo receio, seja pela falta do hábito ou por traumas causados pela leitura atropelada do período pré-vestibular. Em Personagens, tudo o que se exige é o interesse. A "convidada" deste mês é Hilda Furacão, de Roberto Drummond. Ainda sem datas confirmadas, mas com presença garantida em futuras edições do evento, há Leonardo Pataca, do livro Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida; Riobaldo e Diadorim, vindos de Grandes Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa; e o retirante Severino, personagem de João Cabral de Melo Neto, do livro Morte e Vida Severina.