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Hoje tem marmelada!

Circo Cine Teatro resgata a importância do circo no Brasil, com apresentações de novos artistas e de figuras que fizeram história nos picadeiros

A história de Roger Avanzi se mistura em grande parte com a história do circo brasileiro. Ele e sua família assistiram bem de perto à evolução do gênero no país durante quase todo o século 20. Sua mãe, fruto da quarta geração de artistas circenses franceses, já nasceu no picadeiro. Ainda criança, corria as estradas européias com a companhia de seu pai, apresentando um número de trapézio ao lado da irmã. Em uma dessas viagens, tiveram de enfrentar um começo de inverno rigorosíssimo. Sem conseguirem chegar a Paris, onde os circos costumavam se abrigar dos gélidos meses de inverno, foram obrigados a enfrentar as difíceis estradas francesas. Os cavalos - a maior atração do circo naquela época e também o meio que possibilitava os deslocamentos dos artistas e de seus pertences - morreram todos. Sem suas grandes estrelas, a companhia acabou. O avô de Roger elaborou, então, um plano de sobrevivência para a família. Os filhos mais novos seguiriam com a mãe para os cassinos de Marrocos, enquanto as duas filhas mais velhas, entre elas a jovem trapezista Armandine, passariam a se apresentar nas ruas e nos cassinos de Paris. Algum tempo depois, foram contratadas para uma turnê na América do Sul.
Já os avós paternos de Roger eram artistas de uma companhia de ópera italiana. Eles enfrentaram uma longa viagem de navio para percorrer o Brasil em uma de suas turnês. Depois de alguns meses, quando já era hora de retornar à Itália, sua avó iria dar à luz. Como seria arriscado seguir numa longa viagem, o casal decidiu se estabelecer em São Paulo. Dias depois, nascia o pai de seu Roger, Nerino Avanzi, criado sob o palco do antigo teatro Polytheama, no vale do Anhangabaú. A construção, toda feita de madeira e zinco, recebia óperas e espetáculos circenses. Segundo Roger, o pequeno Nerino se enchia de medo quando chegavam as companhias de ópera e os tenores soltavam suas vozes, fazendo estremecer todo o telhado de zinco do teatro. Por outro lado, quando chegava o circo, o menino vibrava e repetia para as crianças da região os números que assistia, encenando em um cirquinho improvisado, iluminado a base de velas roubadas no cemitério.
Passaram-se alguns anos e, junto com o irmão mais jovem, Nerino começou a fazer sucesso com uma dupla de palhaços. Foram contratados por uma companhia que faria turnê na Argentina. Foi lá que o jovem Nerino viu, pela primeira vez, em um cartaz de um cassino em Buenos Aires, a francesinha trapezista Armandine. E se apaixonou. Mesmo decidido a encontrá-la, falhou em sua missão e teve de voltar a São Paulo. Mas o destino já parecia estar traçado. Foi contratado pelo Circo Chileno, que na época percorria o interior de São Paulo. Alguns meses depois, quando a companhia iria chegar na capital, e por isso precisava de reforços, a dupla de trapezistas também foi arrebatada. E como já se pode imaginar, Nerino e Armandine namoraram e se casaram.
Passado algum tempo, Nerino decidiu montar seu próprio circo, fundado no dia 1º de janeiro de 1913. Foi quando surgiu o palhaço Picolino. Nove anos depois, nascia nosso personagem, Roger Avanzi. Foi no Circo Nerino que Roger passou grande parte da vida. O circo funcionou ininterruptamente por mais de 50 anos e foi palco para um dos maiores palhaços que o país já conheceu, o lendário Picolino. Mas, em 1954, quando Nerino já não podia mais vestir as roupas de palhaço, foi Roger quem assumiu o personagem - segundo ele, o maior desafio de sua vida. Depois da morte de Nerino, o circo ainda resistiu por dois anos. Roger então veio para São Paulo e serviu como mestre e exemplo da força e dos encantos do circo para grande parte dos artistas da nova geração circense paulista.
Durante os meses de janeiro e fevereiro, Roger é uma das grandes estrelas do projeto Circo Cine Teatro do Sesc Belenzinho, atuando como convidado especial em dois espetáculos. O evento, realizado sob uma grande lona com capacidade para 500 pessoas, traz espetáculos circenses tradicionais, contemporâneos e infantis, além de promover oficinas de técnica circense e sessões de cinema, comentadas por profissionais como Hugo Possolo e Rodrigo Matheus.

O circo novo
"Seu Roger é nosso mestre - o mestre dos palhaços. Poder vê-lo em cena é uma aula. Ele foi e é um grande artista de circo, estupendo. Figuras como ele influenciaram a minha geração", afirma Fernando Sampaio, do La Mínima e também um dos produtores da Central do Circo, um centro de pesquisa e treinamento de artes circenses que reúne diversos grupos, como o Circo Nosotros, La Mínima, Circo Mínimo e Linhas Aéreas, além de profissionais autônomos.
Para Fernando, que é de uma geração de artistas circenses com perfil, história e formação diferentes de seu Roger, a aparição de escolas circenses em São Paulo possibilitou o surgimento de uma nova safra de profissionais. "Esses artistas agregaram outras artes às técnicas circenses. São pessoas que também estudaram teatro ou dança e mesclam isso com o trabalho do circo", explica. "Esses grupos estão dando um novo gás para o circo. E adoraria que o nosso papel servisse também como estímulo para que as pessoas do circo clássico nos vissem como uma possibilidade de renovação."
A primeira escola de circo de São Paulo, o Circo Escola Picadeiro, fundado por José Wilson Moura e Isabel Assumpção em 1984, foi responsável pela formação da maioria dos novos artistas circenses. "Nós possibilitamos uma divisão entre o circo tradicional e o circo moderno", afirma Isabel, que, à frente da OZ Academia Aérea, produziu alguns espetáculos apresentados durante o evento no Sesc Belenzinho. "Muitos circos tradicionais têm hoje uma linguagem desgastada; essa linguagem tem que ser modificada e enriquecida."
Isabel tem também uma história particular para contar. "Minha relação com o circo no começo foi muito complicada. É aquela história: eu, que não tinha nada a ver com o circo, me apaixonei por um trapezista da quarta geração de artistas circenses, o José Wilson", explica. "Quando montamos a escola, éramos rechaçados pela classe porque eu não era de família circense, era uma 'mulher de praça', e principalmente porque estávamos passando informações para pessoas que não eram de circo. Hoje em dia, as escolas passaram a ser vistas de outra maneira, mas foi difícil."
Para Isabel, as escolas são fundamentais na perpetuação do circo. "As famílias tradicionais estão se extinguindo. Hoje você conversa com um tradicional do circo e o sonho dele é que seu filho deixe o picadeiro, que vá estudar e que possa ter acesso a informações que ele não teve. Por isso é importante que as pessoas que fazem circo hoje tomem cuidado e colaborem para que o circo tradicional não acabe. Essa é a fonte em que bebemos; temos que tentar preservá-la."

O novo, de novo
Um dos alunos da escola fundada por José Wilson e Isabel é Hugo Possolo, do premiado grupo Parlapatões Patifes e Trapalhões, que também se apresentou no Circo Cine Teatro do Belenzinho. Hugo, porém, não aceita o rótulo de circo novo, ou circo contemporâneo. "O circo, como qualquer outra atividade artística, sempre se renova e se modifica de acordo com as gerações. Acho que esse título, 'circo novo', só existe por uma questão de mercado. E, infelizmente, uma questão de mercado que tem sufocado os artistas mais tradicionais."
Para Hugo, a nova geração de artistas circenses não tem sido suficientemente criativa para fazer jus ao nome de "novo". "O circo sempre fez uso do teatro e da dança, e vice-versa. Nas décadas de 1940 e 1950, especificamente no Brasil, o circo se valeu do teatro de maneira muito forte; isso caracterizou um tipo de linguagem que é tipicamente brasileira: o circo-teatro. Essa linguagem influenciou todo o rádio brasileiro e gerou o melodrama, que ganhou corpo e projeção nas telenovelas brasileiras."
No entanto, Hugo acredita que não se dá o devido valor à arte circense no país. "Há uma série de grandes figuras do circo nacional que estão espalhadas pelo Brasil sem que ninguém saiba de suas grandes qualidades. Com isso, perdemos uma das maiores tradições artísticas do país. Se não for criada uma política pública específica, certamente perderemos um grande valor cultural, que é um circo de qualidade totalmente diferente do circo do restante do mundo."
Apesar das adversidades e da competição com várias outras formas de entretenimento, seu Roger, do alto de seus 79 anos, não acredita no fim do circo tradicional. "Essa história que o circo vai acabar não é de hoje. Eu, meus pais e meus avós já ouvíamos isso. É uma conversa de longa data", afirma otimista. "Antes mesmo de o cinema aparecer, já se dizia que o circo ia acabar. Quando chegaram os primeiros projetores nas cidades, falaram que não tinha mais jeito. O circo realmente levou um baque, balançou, mas não caiu. E o circo voltou a ser a mesma coisa que era. Quando chegou o som no cinema, o povo passou a dizer que era cinema ao vivo, e como os artistas estavam ali, ao vivo, o circo acabaria. E se repetiu a mesma coisa. O circo estremeceu, mas voltou lá de baixo. A mesma coisa aconteceu com a televisão, que veio para sepultar o teatro e o circo. E nada: o circo ainda está aí. E a televisão, vez por outra, apela para ele", explica risonho. "O circo sempre teve mudanças, nunca foi o mesmo. Nasceu de um jeito e vem se transformando ao longo do tempo. Foi assim com o circo-teatro, com o circo-de-tiro e é de novo com o circo que se faz hoje. O circo nunca vai acabar."

Todos os circos - Linguagens se encontram no Sesc Belenzinho

De 5 de janeiro até 24 de fevereiro, uma grande lona de circo montada no Sesc Belenzinho recebe espetáculos de circo tradicional, circo contemporâneo e projeção de filmes. A cada dia, uma programação diferente.
Às terças, é dia de cinema. Além dos filmes apresentados, convidados especiais, como Hugo Possolo, Rodrigo Matheus, Beto Andreta e Domingos Montagner, comentam as obras. Entre elas, o imperdível I Clowns, de Federico Fellini, ainda sem versão legendada em português.
Às quintas, artistas tradicionais, como Roger Avanzi e os integrantes das famílias Medeiros e Aurich, tomam a lona com seus espetáculos.
Aos sábados, é dia de circo contemporâneo, com apresentações de grupos como Parlapatões, Linhas Aéreas e La Mínima.
E, finalmente, aos domingos e feriados, o circo é invadido pela criançada nos espetáculos infantis, com grupos como Pia Fraus, Fractons e Circo Nosotros. Para o final do evento, está programada uma "parada de rua" comandada pelo Grupo Lume.
Além das apresentações, diversas oficinas de técnica circense, como acrobacias, trapézio de vôo e malabares, são dadas durante toda a semana. Confira na programação.