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Um olhar sobre o envelhecer numa aldeia indígena

Foto: Maurício Azzolini
Foto: Maurício Azzolini

Artigo: Marina Marcela Herrero

 

Introdução

Nos últimos 20 anos, visitei 55 aldeias indígenas no Brasil, mas ando em aldeias por aqui e na Argentina desde 1978 e por todo lado perguntei aos idosos qual foi o momento mais feliz de sua vida e qual o mais triste ou o mais difícil. Continuo me surpreendendo até hoje com as respostas, mas vou deixar isso mais para o fim deste artigo. Irei apresentar brevemente um pouco do contexto em que se encontram, onde estão e como é sua forma de vida.

Trata-se de um levantamento que pode ser considerado consistente, dada a amplitude e a diversidade da amostragem. A metodologia utilizada nesse trabalho foi desenvolvida junto ao indigenista Ulysses Fernandes para uma série de projetos que o Sesc realiza desde 2002 e que denominamos Documento de Identidade Cultural.

O objetivo desses projetos em comunidades indígenas é documentar variadas formas de manifestação cultural, rituais, culinária, jogos, tradições, saberes e costumes para, assim que esses documentos estiverem finalizados em forma de publicações, documentários ou material educativo, possam retornar aos donos desse patrimônio como ferramentas nas suas lutas por direitos coletivos e também para utilização como material educativo. No fim, busca-se promover a ressignificação simbólica e a autoafirmação.

O processo é desenvolvido como construção coletiva e baseado em alguns protocolos de atuação que se aproximam dos métodos da Antropologia da Emergência que, de tão recente, ainda são pouco difundidos. A ação dos pesquisadores acontece no convívio e relacionamento com a comunidade, uma etnologia inevitável que se propõe a observar a expressão cultural e simbólica que se manifesta nos atos da memória, além de analisar o cotidiano do próprio pesquisador inserido nesse contexto.

Essas ações têm como foco etnias indígenas, povos e comunidades tradicionais em situação de vulnerabilidade ou risco. Propomos registrar conhecimentos e práticas desses povos, instrumentalizando-os para se posicionarem como demandantes e fortalecendo sua noção de pertencimento. Constitui-se como uma tecnologia social que está fundamentada no relacionamento, na escuta, no protagonismo da comunidade, no diagnóstico participativo e na definição conjunta da principal demanda local.

O levantamento pode ajudar a compreender melhor como se dá o envelhecimento na população indígena e também enxergar, de algum modo, as condições que levam esses povos a uma longevidade tão expressiva. Peço atenção para um detalhe importante, estamos tratando de indígenas aldeados, ou seja, aqueles que moram em Terras Indígenas, sobretudo as mais afastadas, e não de indígenas no meio urbano. No estado de São Paulo vivem 41.794 índios, o que representa 5% da população indígena no Brasil (IBGE, 2010). Nesse estado, a maior parte da população indígena (91%) vive em zonas urbanas fora de Terras Indígenas, sendo que muitos são migrantes de comunidades indígenas situadas no Nordeste.

Os cerca de 4.964 2 índios Guarani Mbya, Tupi-Guarani, Kaingang, Krenak e Terena (Sesai, 2015) que habitam Terras Indígenas estão localizados na faixa litorânea, no Vale do Ribeira, no oeste do estado de São Paulo e também na região metropolitana de São Paulo. Os Guarani Mbya e os Tupi-Guarani são a maior população do estado vivendo em Terras Indígenas.

Para abordar este assunto de modo adequado, devemos também entender que estamos observando uma incrível variedade de povos que têm seu próprio ponto de vista, uma forma de ver o mundo e de estar nele e de se relacionar com a vida e com o ambiente. Também é bom lembrar que são 305 povos que falam 274 línguas. Como diz o ativista e artista gráfico Denilson Baniwa: "Comparar um Baniwa a um Tukano é como comparar um francês a um japonês. São povos com línguas, hábitos e características físicas bastantes distintas, e isso porque vivem bem próximos. Imagine a diferença entre um Baniwa e um Kaingang, um povo lá do Rio Grande do Sul”. Ou seja, são microrrealidades distintas, palco de conflitos e interações diversas.

Uma curiosidade que sempre tive foi o motivo ou os motivos da longevidade entre eles. Já conheci pessoas de até 103 anos inseridas na vida coletiva e na dinâmica que a aldeia propõe, uma vida plena, enfim. Percebemos quatro motivos possíveis: alimentação, meio ambiente, atividade física e relações sociais (vida comunitária). Vamos detalhar cada um a seguir.

Alimentação

A alimentação é uma das causas de sua longevidade, no meu modo de ver. Por exemplo, os Xinguanos têm uma alimentação baseada em mandioca, peixe e pequi (carboidrato, proteína animal e vitaminas) com alguns outros gêneros menos constantes, como animais de caça, pimenta, insetos, frutos, batatas, castanhas, milho, raízes e frutas silvestres. Ampliando a observação para outras regiões, nota-se que sempre que o povo não tem acesso a compras em cidades também não consome sal, açúcar, nem óleos. O principal neste quesito é a ausência de alimentos industrializados, conservantes, produtos químicos, corantes, agrotóxicos. Com a influência dos costumes dos “brancos”, eles adaptaram e se apropriaram de outros ingredientes e começaram a praticar a agricultura, mas é digno de observação que mesmo sofrendo influência de outras culturas os povos indígenas preservam até hoje seus costumes, mantendo vivas suas tradições. Aqui está um motivo claro de manutenção da saúde.

Observamos também que o acesso a serviços de saúde fora das aldeias ainda é precário e muitos idosos não confiam na medicina dos não indígenas, só aceitando a medicina tradicional e a intervenção dos pajés ou agentes de saúde indígena.

Ambiente

Mais uma causa: um meio ambiente saudável, sem venenos, sem lixo e sem poluição. Mesmo não sendo ambientalistas ou ecologistas, os povos indígenas desenvolveram métodos de manejo dos recursos naturais, utilizando-os sem alterar drasticamente seus princípios de funcionamento e seu equilíbrio, além de garantir seus modos de reprodução. Assim, se protegem das doenças e obtêm seus alimentos de acordo com seus modos particulares de entender o meio ambiente, e, apesar de haver diferentes modos de explicar a natureza entre os diversos povos, é bem generalizada a ideia de o planeta ser como uma ampla rede de inter-relações. Isso significa uma interação constante entre humanos e não humanos. Essa relação do homem como parte e não como dono já traz em si uma forma saudável de interagir e manter a vitalidade que, além dos vivos, é animada por espíritos diversos que os protegem.

Apesar de sobreviverem basicamente de recursos provenientes do meio que os rodeia, não produzem lixo, não utilizam venenos e têm desenvolvido técnicas de domesticação de plantas para produção. Porém, é claro que há casos de aldeias que foram cercadas pela agricultura extensiva e cidades e que passaram a conviver com essas mazelas.

Atividade física

Uma vez perguntei aos Kalapalo por que os Xinguano construíam suas aldeias a uma distância considerável do rio ou da lagoa – pelo menos a 1 Km de distância –, já que eram eles quem escolhiam o local de construção. A resposta foi que além do problema relacionado à quantidade de mosquitos e piuns nas proximidades da água, existia também o costume e a tradição de as mulheres irem buscar água, sendo um momento de convívio entre elas, além de manter as mais idosas em atividade, o que faz bem. Também há uma considerável distância entre a aldeia e as roças – o que é bem generalizado nos povos que têm seus territórios preservados. Mulheres e homens de todas as idades vão colher lenha para o fogo. Muitas vezes fiquei admirada vendo pessoas em idade muito avançada carregando um feixe de lenha imenso na cabeça. O dia a dia nessas comunidades começa muito cedo e se prolonga até es- curecer, numa sequência intensa de atividades relacionadas à obtenção de alimentos com cuidados na roça, ao lazer, à manutenção das casas e ferramentas, aos mutirões, aos rituais, à caça e à pesca.

Houve uma ocasião em que chegamos numa aldeia para produzir um documentário e desde o avião vimos um objeto bem destoante na beira da aldeia, uma caixa de água. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que então cuidava da saúde indígena, tinha instalado caixas de água nas aldeias com uma pequena rede de distribuição e torneiras em três pontos em volta da praça central. Essa intervenção gerou quedas por escorregões na lama formada em volta das torneiras e motivou a diminuição da atividade física, como as idas e vindas até a lagoa para buscar água. Soubemos depois que isso resultou na morte de alguns idosos por fraturas e consequências da inatividade.

Vida comunitária

Entre os indígenas das aldeias que eu visitei no Brasil não há classes sociais como na nossa sociedade, ou seja, todos recebem o mesmo tratamento, têm os mesmos direitos, os bens materiais pertencem a todos, exceto os instrumentos de trabalho e vestimentas, que são de propriedade individual. Os alimentos e os remédios são distribuídos entre todos, a terra não é uma posse individual, todos fazem parte da natureza, ou seja, fazem parte da terra, e não o contrário. Na dinâmica cultural que uma comunidade indígena propõe a um idoso o fator mais preponderante é o seu papel, que está intimamente ligado à forma que essas sociedades compreendem o mundo à sua volta. Ser Wayana, ser Kalapalo, ser Guarani, ser Baré é uma forma de estar no mundo que aponta sempre à atualização das tradições por meio das formas de transmissão de saberes, da oralidade, da manutenção dos rituais e das formas de reprodução cultural. E são precisamente os idosos os guardiões e os transmissores desses valores, dessa identidade cultural, dessas tradições. Assim, podemos compreender o envelhecimento desde outra perspectiva. O velho indígena é fundamental para a sobrevivência e a continuidade desses povos.

Visitamos as comunidades Baré, do Alto Rio Negro (AM), e na fase de diagnóstico das suas principais demandas locais soubemos que esse povo, que era considerado extinto pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e que já tinha perdido sua língua-mãe, desejava recuperar um ritual de iniciação que só existia na literatura de expedicionários e nos relatos de idosos. Outros povos da região ainda o praticavam, mas os Baré não o realizavam há décadas. Seria uma forma de retomar essa tradição, fortalecendo sua identidade, já tão enfraquecida. Mas não havia ninguém que soubesse fazer as bênçãos e conhecesse o ritual profundamente para recuperá-lo, liderar e conduzir os cantos e as danças.

Foi nessas conversas que o Capitão (esse é o nome dado aos caci- ques por lá), da Aldeia São Francisco, disse “tem sim um velho que sabe, seu Leopoldo, da aldeia Iabi”. E lá fomos nós conversar com ele, que se prontificou a conduzir o ritual. Claro que o ritual só aconteceu meses depois. Vieram jovens de várias aldeias e seu Leopoldo conduziu o dabucuri, um ritual que dura seis dias. No fim, ele deu os conselhos aos iniciados e falou como deviam se comportar para “viver bem”. Nós assistimos a trechos do ritual que eram permitidos aos não iniciados e captamos vídeo e áudio, que fazem parte do filme Baré, povo do rio. O papel de seu Leopoldo foi marcante e a transmissão de seu conhecimento ultrapassou os participantes do ritual, sendo reconhecido por todas as aldeias Baré da região. Esse exemplo mostra a importância que esses idosos têm nas suas comunidades. O velho é a pessoa mais respeitada, sendo procurada por jovens que buscam conselhos e inspiração para os rumos de suas vidas.

Morte

Percebo que os velhos indígenas conseguem ser felizes mesmo quando o fim da vida é a única perspectiva para o futuro, até quando inexistem projetos pessoais que sirvam como cortinas que bloqueiem a visão do caminho até a morte. Eles têm outra relação com a morte, é óbvio, e lidam de outra maneira com ela. Centenas de histórias tecem os mitos sobre morte e doenças e são narradas pelos idosos constantemente, de maneira a orientar as relações entre humanos, não humanos e cosmos. É um universo de significados que definitivamente levam a outro lugar.

Em uma de minhas incursões pela Amazônia conheci dona Makuxi, uma indígena Wayana com 103 anos, da aldeia Itapequi, na Terra Indígena Tumukumaque, no rio Parú de Leste (PA). Um dos seus filhos, que era nosso tradutor e mediador, contou que ela tinha perdido um filho quando ele era muito jovem. O jovem tinha saído para caçar na floresta com alguns amigos, que o perderam de vista. Eles não o encontraram e voltaram para a aldeia. Houve, a seguir, muitas buscas e, finalmente, acharam seu corpo. Ele teria sofrido um ataque de onça.

Logicamente, com minha cabeça de “branca”, me preparei para ouvir esse drama ao perguntar sobre seus momentos difíceis. Mas não foi nada disso, ela relatou como sendo seu momento mais difícil e penoso quando teve de aprender a fazer uma canoa. A canoa, para esses povos ribeirinhos, é fundamental para a sobrevivência e um dos aprendizados mais complexos. Já a morte faz parte da vida.

Coletivo X Individual

Assim, fui perguntando para todos os idosos a quem tive oportuni- dade durante 40 anos: “Desculpe-me fazer uma pergunta tão pessoal. Qual foi o momento mais feliz de sua vida e qual o mais triste ou o mais difícil?”. As respostas quase invariavelmente tiveram o “para nós” em lugar do “para mim”, ou do “nós” em lugar do “eu”, quer dizer, o coletivo em detrimento do individual. Seguem as respostas a esses questionamentos feitas a dois idosos Xucurú, em setembro de 2018.

José da Paz Xucurú, um agricultor da etnia Xucurú, de Ororubá, Pernambuco, respondeu:

Oh, a gente teve muitos momentos difíceis, o mais difícil foi quando começaram as ameaças, até que enfim começou o derramamento de sangue. Nós tínhamos um cacique que foi assassinado na cidade, a mando dos fazendeiros. (...) A gente teve também momentos de alegria, foi quando a saúde do município passou para o estado (a nossa saúde indígena). Isso foi um momento de alegria, porque o município não via a gente com bons olhos e ali passou para o estado.

Dona Zilda, de 68 anos, liderança Xucurú, de Pesqueira, Pernam- buco, respondeu:

Quando perdemos o cacique Xicão Xucuru, meu marido, que com 12 anos de cacicado foi morto. Nós somos fortes e resistentes, mas eu vi o sofrimento do meu povo, ele nos ensinou a caminhar, então foi doloroso, foi muito triste para nós. O momento mais feliz foi quando começamos a ver as indenizações dos posseiros, que eram 281. Quando começamos a receber as nossas terras de volta.

A ênfase no coletivo em lugar do individual foi maioria nas respostas que obtive durante esses anos todos, o que me faz pensar no quanto somos diferentes, o quanto um idoso se sente contido e participante da vida em comum, ao ponto de nem cogitar dar uma resposta focada apenas em si mesmo.

Considerações finais

Os idosos e as idosas representam a sabedoria e suas figuras também são fundamentais na organização social e na sobrevivência da comunidade, já que são o arquivo vivo dos saberes ligados à medicina, às ervas, às músicas, às danças, aos rituais e às festas. Eles nunca representam um fardo a ser carregado pelos mais jovens, eles e elas formam parte indispensável do tecido social de seus povos.

 

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