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Dilemas contemporâneos
Ana Maria Cardachevski
Nas conversas corriqueiras sobre as novas tecnologias e a crescente influência em nossos hábitos e cotidiano, costumo me deparar com diversas opiniões, que variam das previsões catastróficas ao otimismo excessivo. Ainda me parece difícil que discordemos ou concordemos com a inevitabilidade do fenômeno da virtualização do mundo sem uma pitada de paixão, como a que move a militância partidária ou a torcida de futebol. Mas digamos que isso venha a ser possível um dia e, parafraseando Umberto Eco, nem tão apocalípticos, nem tão integrados.
Marcado pela expansão das tecnologias digitais, nosso momento contemporâneo, ontologicamente considerado virtual, está caracterizado menos pelos produtos tecnológicos e mais pela acentuada relação de intimidade que vem se estabelecendo entre a tecnologia e a sociedade; de maneira multidirecional, já está presente no campo da cultura, da economia, da comunicação, do trabalho/lazer e das subjetividades individuais, numa performance que vai além da superação do sistema de representação analógica de imagens (para usarmos o exemplo do vídeo, da fotografia e da televisão), pelo sistema de síntese digital, para redefinir parcialmente nossos códigos e símbolos culturais.
As tecnologias óptico-eletrônicas (vídeo e televisão) e óptico-químicas (fotografia) se valem de princípios semelhantes ao da câmara escura na fixação de imagens, e da lógica da duplicação da "natureza". A revelação das imagens, nesse caso, dá-se por meio da representação, ou seja, uma cópia bidimensional do objeto ou realidade original. Os sistemas digitais, por sua vez, geram imagens a partir da linguagem matemática, que lê o objeto ou a realidade, codifica-o como modelo e, então, simula uma imagem; no campo da produção das imagens, essas seriam as diferenças básicas entre o real e o hiper-real, conforme Jean Baudrillard. Com a mediação dos algoritmos, a imagem dispensa a natureza e a realidade física do objeto para se valer apenas de seu modelo. É a imitação do objeto que interessa.
Ainda não é possível prevermos com muitos acertos como a difusão democrática da tecnologia na sociedade pós-industrial vai se consubstanciar nas próximas décadas, embora possamos perceber que a "onda" digital, materializada pela máquina/computador, vem domesticamente ganhando poder por facilitar amigavelmente o acesso à informação e a todas as formas de comunicação. No percurso histórico da relação homem/máquina, esse parece ser definitivamente o momento de desmistificação do "Frankenstein" que personificou, um dia, os perigos desconhecidos herdados dos avanços científicos e tecnológicos. Com um desempenho renovador da sensibilidade humana, a máquina/computador deixa de ser um elemento em crise que se interpõe entre a vida e a realidade, entre a vida e a arte, para ressurgir como parte estruturante dessa nova economia comunicacional. Para esse contexto, as palavras de ordem são: interação e interatividade.
O pensador de cibercultura, Pierre Lévy, classifica diferentes tipos de interatividade na comunicação, de acordo com as possibilidades de personalização da mensagem, reciprocidade da comunicação, virtualidade da mensagem em função de seu tempo real, implicação da imagem dos participantes e, por fim, telepresença. Como exemplo dessa graduação de interatividade, aponta na comunicação virtual seu grande poder, pela capacidade de somar a mensagem, as imagens pessoais. À comunicação telefônica, mais restrita, caberia a vantagem de possibilitar a telepresença, o contato direto com o corpo do outro por meio da voz.
Dos caminhos virtuais, a WWW é a que mais se populariza. Informação, educação, entretenimento, novas formas de sociabilidade resumem o fascínio que as potencialidades da rede oferece aos seus usuários. Nesse horizonte cibercultural, as formas de sociabilidade reorientadas pelo princípio virtual da comunicação organizam-se em espaços, endereços, grupos de bate-papo de acordo com os interesses mais diversos. Nessa medida, o ler e o escrever são recriados pelas necessidades mais amplas das atuais mensagens, e assumem um novo estatuto ético, intelectual e estético.
No panorama das transições em curso, estaremos contabilizando perdas, ganhos, mesmices, limitações, e muita velocidade. Diante das sensações de estranhamento, no entanto, arrisco dizer que o dilema de resistir ou entregar-se às mudanças parece depender muito menos da vontade e da escolha, e muito mais das estratégias inevitáveis em rede, que administram e controlam tecnicamente nossa vida social.
Ana Maria Cardachevski é socióloga, mestranda em
Ciência Política e técnica do Sesc