Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Controle nas mãos

Roteirista e diretor, Jorge Furtado é um exemplo de profissional bem-sucedido nas duas frentes do audiovisual. Na sua filmografia entram: O Homem Que Copiava (2003), Meu Tio Matou um Cara (2005), Saneamento Básico, o Filme (2007), Quem é Primavera das Neves (2017). Completam a lista curtas premiados no Brasil e no exterior: O Dia em que Dorival Encarou a Guarda (1986), Ilha das Flores (1989). Um episódio de Doce de Mãe (2012) originou a série homônima (2014) e rendeu dois prêmios Emmy Internacional: melhor atriz para Fernanda Montenegro, em 2013, e melhor série de comédia, em 2015. Seus mais recentes trabalhos para a televisão são as séries Mister Brau e Sob Pressão, ambas da TV Globo. Ao compartilhar sua trajetória durante bate-papo no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, deixou transparecer na conversa o clima de sua obra: variada, contada no ritmo certo, dosando comédia e drama. “Até hoje meu gênero preferido de cinema são as comédias tristes. Acho a melhor representação da vida”, declara.

 


Foto: Rodrigo Gorosito.

De tudo um pouco

Entrei na faculdade de Medicina com 17 anos, pois queria cursar Psiquiatria. Passei uma vida muito protegida, de classe média, em Porto Alegre, estudei num colégio jesuíta, só tinha amigos da mesma classe social. Em 1977, comecei a faculdade – na época ligada ao hospital Santa Casa, que não tinha recursos financeiros nem infraestrutura. As pessoas iam mesmo para morrer. Me identifiquei com a história de Buda, que de repente sai de casa e se depara com a miséria e a dor. Foi muito chocante. Nesse momento infeliz da faculdade, conheci um grupo de jovens porto-alegrenses que começaram a fazer cinema. Foi uma coisa nova, porque eu gostava de cinema, mas não pensava em quem fazia o filme.

Me interessei porque gostava de ler, escrever, desenhar e achava que o mundo da imagem e o das palavras eram estanques, mas o cinema de repente apareceu como algo que misturava os dois universos. Daí fui fazer Jornalismo, porque era a formação mais próxima do cinema, isso em 1982. Juntamos uma turma e criamos um programa para a TVE do Rio Grande do Sul, o Quizumba, que misturava ficção e jornalismo. Escolhíamos um tema e fazíamos entrevistas, matérias jornalísticas e um curta de 10 minutos sobre o assunto escolhido. Logo depois, em 1984, concluí meu primeiro curta, Temporal.

Da vida real para a TV

Essa experiência na Medicina me inspirou para a série Sob Pressão. Visitei hospitais no Rio de Janeiro e já conhecia esse mundo. Achava incrível que não havia séries médicas no Brasil, um estilo bem popular nos Estados Unidos. Passei um dia no Hospital da Posse, em Nova Iguaçu, e saí de lá com a primeira temporada quase pronta. Porque todo mundo vem te contar histórias, são dramas humanos. Essa série está na terceira temporada e não para de render história nova.
 

O MAIOR RISCO QUE UM ARTISTA

PODE CORRER É O DE IMITAR A SI MESMO
 

Made in Poa

A ideia de filmar em Porto Alegre parecia meio estranha, mas sempre houve cinema no Rio Grande do Sul. Esse cinema urbano começou com a Super-8, no fim dos anos 1970, com filmes rodados na cidade. A nossa ideia era fazer cinema lá, porque todo mundo que queria trabalhar com audiovisual vinha para São Paulo e Rio de Janeiro. Não dispúnhamos de equipamento de laboratório. Era difícil, mas era nossa proposta. Mario Quintana dizia que não havia nada mais provinciano do que mudar para cidade grande. E, realmente, não queríamos mudar.

Na tela grande

Em Porto Alegre eu ia ao cinema Bristol, que tinha na programação os ciclos de filmes. Ciclo do cinema italiano, ciclo Godard, ciclo Alain Resnais, e comecei a me dar conta de que existiam outras cinematografias que não só as hollywoodianas. Entendi os outros diretores e até hoje meu gênero preferido de cinema são as comédias tristes. Acho a melhor representação da vida. Porque a vida não é só engraçada nem só trágica e essa mistura é a que mais me interessa.

Ver e rever

Eu quero que meus filmes possam ser vistos e continuem funcionando com o público. Por exemplo, Saneamento Básico é uma comédia rasgada que passa muito na televisão e as pessoas continuam gostando. Também prefiro que meus filmes sejam diferentes entre si. O maior risco que um artista pode correr é o de imitar a si mesmo. Estamos acostumados a ver séries no computador, mas 70% das famílias brasileiras vivem com até três mil reais, e essa parcela só vê TV aberta. Cada episódio de Sob Pressão é assistido em média por 40 milhões de pessoas.

E 105 milhões viram algum episódio. Recebi um depoimento de uma mãe contando que a filha de nove anos passava horas alisando o cabelo com chapinha, mas ao ver a Thaís Araújo na série Mister Brau ela decidiu parar e deixar o cabelo crescer. Para mim, a diferença entre TV e cinema é a quantidade de atenção de quem assiste. O cinema é uma tela grande numa sala escura e você não tem o controle remoto na mão. A televisão é o contrário. Pode parar, acelerar, voltar. Como a quantidade de atenção é muito diferente, quem faz as duas coisas precisa ter a consciência dessa diferença.

Ilha das Flores

É para mim o que Ana Júlia foi para Los Hermanos. É um filme muito marcante na minha vida. Foi feito há 30 anos e várias escolas do mundo o adotaram. Na França, Japão, Finlândia. Naquele momento o filme antecipou o hipertexto que a internet popularizaria logo a seguir. A ideia de que uma coisa leva a outra. Me deparei com aquela situação porque fui convidado para fazer um vídeo sobre a separação do lixo orgânico e fiquei sabendo que o lixo era depositado num terreno de propriedade de criadores de porcos. Durante esse processo se formavam filas de crianças e mulheres do lado de fora da cerca à espera da sobra do lixo, que utilizavam para alimentação. Como as filas eram muito grandes, os empregados organizavam grupos de dez pessoas que, num tempo estipulado de cinco minutos, podiam pegar o que conseguissem do lixo. Nessa situação extremada, escrevi o texto enciclopédico no qual uma coisa leva a outra. Voltando ao exemplo da comédia, imagine se eu dissesse: vocês irão assistir a um filme no qual as pessoas esperam para comer a sobra dos porcos. Haveria uma negativa. Mas entramos pela porta da comédia. E, quando vimos, estamos dentro e não conseguimos sair. É uma comédia que te envolve e depois puxa o seu tapete.
 

revistae | instagram