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A memória como um campo de disputas

Carandiru | Foto: Crédito Acervo Espaço Memória Carandiru
Carandiru | Foto: Crédito Acervo Espaço Memória Carandiru

A memória e sua relação com o exercício da cidadania a partir de campos de conhecimento diversos - história, antropologia, artes, filosofia, direito, geografia, comunicação, urbanismo e estudos culturais foi tema do Seminário Memória como Direito, que aconteceu em junho de 2019 no Sesc 24 de Maio.

Importantes nomes da cultura brasileira, como a antropóloga Lilia Schwarcz, o filósofo Vladimir Safatle, o historiador Luis Antonio Simas, a artista Rosana Paulino e o especialista em teoria literária Marcio Selligman-Silva discutiram aspectos como identidade e diversidade cultural, territórios e territorialidades, escrituras sobre memória e políticas públicas, buscando compartilhar com o público dilemas, conceitos e práticas que revelam os usos sociais da memória na atualidade.

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Por João Paulo Guadanucci *

Hoje em dia, fala-se muito em “narrativas” – sempre no plural. No lugar de uma leitura única do passado, cuja escrita ficaria reservada aos especialistas, assistimos a uma profusão de formas de revisitar outros tempos. Grupos diversos – quilombolas, indígenas, imigrantes, povos tradicionais, comunidades LGBTQIA+, entre outros – inventaram modos plurais de contar seus modos de vida, que não coincidem com a chamada história oficial. Contar suas próprias memórias tornou-se um direito reivindicado pelos cidadãos, transformando esse campo num terreno de disputas e resistências.

Alguns episódios deixam isso bem evidente.

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O bairro da Liberdade povoa a imaginação de turistas e moradores de São Paulo: suas luminárias vermelhas, seus restaurantes, jardins e lojinhas fazem referência a uma identidade oriental na qual se misturam japoneses, chineses e coreanos. Mas essa visão esconde camadas mais antigas, repletas de sofrimento e resistência: foi exatamente entre a praça João Mendes, o Largo da Pólvora e a Praça da Liberdade que se concentravam lugares dedicados à violência contra negros escravizados, como o pelourinho, a forca, o cemitério de negros e um sítio de castigos físicos, emblematicamente chamado de “Sítio do Quebra Bunda”. Curiosamente, poucas semanas após o nome da estação de metrô do bairro ser rebatizada como “Japão-Liberdade”, gerando críticas ao visibilizar apenas um grupo em detrimento dos demais, algumas ossadas foram descobertas próximas à Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, durante obras para a construção de um novo empreendimento. De um certo modo, pode-se dizer que esse episódio é uma metáfora das estratégias da memória, que por vezes insiste em reaparecer, mesmo quando todos os esforços são feitos para escondê-la.

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Há monumentos de bandeirantes espalhados por toda a capital paulista. Por vezes, são obras de arte feitas por artistas reputados, como é o caso do Monumento às bandeiras, criado pelo escultor modernista Victor Brecheret; outras são esteticamente polêmicas, como a gigante estátua do Borba Gato, que reina na Avenida Santo Amaro. Mas todas trazem em comum a idealização de um personagem que foi escolhido pela elite para representar a identidade de São Paulo. Entretanto, sabemos hoje que, além de desbravadores do interior brasileiro, eram agentes de opressão contra indígenas. Como lidar com tais presenças na metrópole? Quais estratégias são válidas para desconstruir a História oficial e revelar a violência ligada à herança bandeirante? Tais questionamentos ganham grandes proporções quando algum tipo de reação se manifesta diretamente sobre esses monumentos, como ocorreu em 2016, quando eles foram pichados, despertando debates acalorados na opinião pública.

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Foto: Arthur Gazeta

No extremo noroeste da cidade, as ruínas de uma imensa fábrica de cimentos, coberta de mato, guardam memórias da resistência dos trabalhadores do bairro de Perus. Conhecidos como “queixadas”, batalharam por melhores condições de trabalho, sustentando uma greve que se estendeu por sete anos. Atualmente, uma organização sociocultural da região, o Quilombaque, mantém vivas tais memórias, compartilhando as narrativas de homens e mulheres que inventaram novas formas de organização comunitária em torno do cotidiano fabril. Entretanto, aquilo que resta desse patrimônio material tão relevante para a região é uma propriedade privada que, embora tombada, carece de uma definição de uso que contemple a comunidade. Como é esperado, os proprietários imaginam algum empreendimento rentável economicamente – os moradores, ao contrário, lutam para que a fábrica de cimento Portland Perus se reinvente para funcionar como um efetivo centro de memórias.

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A nomeação de ruas, praças e outros equipamentos urbanos também é uma importante base para a disputa de narrativas. Espaços cujos nomes se referem à ditadura militar brasileira são pivôs dessa discórdia. Alguns, após relevante mobilização da sociedade, foram rebatizados. O caso mais notório é do famigerado Minhocão, cuja antiga referência ao presidente general Costa e Silva foi substituída por Elevado Presidente João Goulart. Não se trata do único caso, mas existem outras formas de movimentação social que não passam pelo reconhecimento oficial: certas placas de rua recebem intervenções provisórias, na forma de adesivos que descortinam outras camadas. Ativistas mudam, periodicamente, o nome da Alameda Casa Branca para Alameda Carlos Marighella, fazendo referência ao lugar onde um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional foi vítima de uma emboscada, sendo morto por forças policiais.

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O campo das memórias é repleto de dinâmicas como essas, nas quais os cidadãos tentam fazer valer suas narrativas e efetivar o direito de rememorar seus respectivos passados. Compreender esse panorama significa também olhar para a cidade com outros olhos.    

*João Paulo Guadanucci é mestre em História da Arte, bacharel em artes visuais e filosofia. Atualmente, é assistente técnico da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc

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