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Sabedoria: modo de usar

Há muitos motivos para que a sabedoria seja pouco percebida ou apreciada nas sociedades modernas. O principal deles diz respeito ao fato de não poder ser instrumentalizada, por exemplo, como ocorre com o conhecimento científico. A sabedoria tem suas raízes fincadas nas experiências do corpo e no conhecimento prático, além de estar intimamente ligada a questões fundamentais da existência humana, à sociabilidade e à solidariedade. Essa qualidade do ser humano é analisada sob diversos pontos de vista em Sapientia – Uma Arqueologia de Saberes Esquecidos (Edições Sesc São Paulo, 2018), que abrange 14 ensaios de autores do Brasil e da Alemanha sobre o que é sabedoria e como podemos nos educar para ela. Um rico material organizado por Christoph Wulf, professor de Antropologia e Educação da Universidade Livre de Berlim, e Norval Baitello Junior, professor titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ao ultrapassar os saberes técnicos e funcionais de que nos cercamos, a sabedoria resgata uma profunda compreensão do humano e está disponível a pessoas de todas as culturas, crenças e visões de mundo. Para refletirmos sobre o assunto, seguem excertos dos artigos publicados no livro por Christoph Wulf e por Hajo Eickhoff, doutor em filosofia, historiador cultural, curador e membro do Centro de Antropologia Histórica de Berlim, na Alemanha.
 

Sabedoria: a redescoberta de um saber esquecido

Christoph Wulf

A sabedoria é um conceito firmemente ancorado na história de nossa cultura, cujo significado se traça menos por definições que por exemplos, aproximações miméticas e reflexões. Do ponto de vista metódico, são movimentos que buscam aproximar-se dela; descrevem algumas de suas dimensões mais importantes, sem, no entanto, tentar definir o que devemos entender por sabedoria. A definição de fenômenos, prática amplamente adotada no meio científico, não consegue captar-lhe

a essência por sua multiplicidade de dimensões e complexidade. Assim, esboço a seguir dez [nesta edição, foram incluídas apenas três] importantes dimensões da sabedoria como forma de nos aproximarmos dela, sem, contudo, restringi-la a uma definição.

Aceleração e desaceleração do tempo

A tremenda aceleração do tempo no presente e a dinâmica daí resultante se opõem ao surgimento da sabedoria. Jean Baudrillard e Paul Virilio apontaram que uma das premissas da globalização é a aceleração de todos os processos. Isso se mostra de forma especialmente marcante nos meios eletrônicos – televisão e internet. Acontecimentos são disseminados simultaneamente a todo o mundo, em imagens e texto, e podem assim ser percebidos e influenciados.

A aceleração do tempo nos transportes, nas trocas comerciais e na comunicação está ligada à dinâmica do capitalismo global, que define as estruturas da sociedade mundial. O objetivo é maximizar a velocidade de todos os processos de trabalho e comunicação, de forma a aumentar sua funcionalidade e rentabilidade. A aceleração do tempo se torna um meio de aproveitamento, ou seja, uma exploração abusiva dos recursos humanos.

A cronocracia, ou domínio do tempo, ordena todos os acontecimentos em uma sequência linear, como se fossem anotações em uma agenda. O tempo “otimizado” se torna instrumento de dominação. A cronocracia dita que a ação deve obedecer à racionalização e à busca capitalista por maior eficiência. Os acontecimentos não são mais classificados por sua importância ou valor. O objetivo é sempre a aceleração de todo e qualquer acontecimento.

Outras formas de vivenciar o tempo, como o tempo cíclico, parte constitutiva de todos os processos de vida na natureza e nos seres humanos, e o momento fértil, kairos, perdem sua importância. Além da aceleração dos processos de vida e interação, a cronocracia submete os seres humanos a uma engrenagem temporal à qual é praticamente impossível resistir na vida profissional.

Fenômenos como estresse e síndrome de burnout são as consequências. Sob essas condições de aceleração e adensamento de tempo, é difícil desenvolver sabedoria. A sabedoria requer outra forma de lidar com o tempo. Somente sua desaceleração permite ao ser humano interagir com coisas, pessoas ou consigo mesmo, sem visar a um objetivo específico.

A sabedoria só surge quando nos damos o tempo necessário, sem seguir permanentemente a lógica temporal e produtiva do capitalismo. De tempos em tempos, é preciso desligar-se da roda-viva e dar-se o tempo de entrar em contato com fenômenos e com outros seres humanos.

Essa pausa também leva a uma conscientização sobre a temporalidade e a efemeridade da vida – e, com isso, a um acesso mais intensivo ao presente. A frase de Johann Wolfgang Goethe, que pede ao momento que pare e fique, já que “és tão formoso”, expressa a experiência de vivenciar o momento, vivendo, assim, de forma consciente. Ao tomarmos consciência da finitude da vida humana e da importância do presente para uma vida plena, cresce a possibilidade de adotar uma forma diferente de lidar com o mundo, com os outros e consigo mesmo. A desaceleração do tempo nos permite outra forma de liberdade, uma nova cultura de vida e uma nova alegria nas coisas.

Diversidade cultural: alteridade como desafio

A sabedoria se forma e se mostra na forma de lidar com outros seres humanos, em especial com aqueles que são culturalmente diferentes, ou seja, na interação com o outro, com a alteridade. As culturas europeias desenvolveram três estratégias para medir o que é diferente, usando valores e expectativas que lhes são conhecidas, as quais servem para evitar perceber sua alteridade. Essas estratégias são o logocentrismo, egocentrismo e etnocentrismo europeus.
 

A sabedoria se forma e se mostra na forma de lidar com outros seres humanos, em especial com aqueles que são culturalmente diferentes
 

No mundo globalizado, existe a necessidade de se lidar de forma diferente com o outro, o estrangeiro, já que nos confrontamos cada vez mais com pessoas de outras culturas. Isso muitas vezes coloca em xeque o que achávamos normal e óbvio – a partir desse contato com a alteridade, as certezas passam a ser mais relativas. Agir com sabedoria, nesse caso, significa perceber e reconhecer a própria heterogeneidade. Isso pode ser muito difícil, como mostram os conflitos violentos na África e na Ásia Menor.

Uma forma de nos prepararmos para reconhecer o que é diferente está na descoberta de nossa própria alteridade, algo que muitas vezes nos escapa. Por exemplo: perceber sua própria violência é a premissa essencial para uma interação não violenta com outros seres humanos. No mundo globalizado, as interações devem reconhecer e valorizar a alteridade, e o pensamento deve ser heterológico, ou seja, devo ter o outro como ponto de partida do meu pensamento. Uma postura aberta ao que é diferente e estrangeiro nos permite ver refletida, como num espelho, nossa própria particularidade cultural e individual. Isso pode ampliar nosso leque de possibilidades, ao termos de lidar com a alteridade e a complexidade.

A sustentabilidade como desafio atual à sabedoria humana

A violência não é praticada somente contra outros seres humanos. Também a natureza e outros seres vivos, ou mesmo coisas materiais, são objeto de violência manifesta ou sutil por parte da humanidade. É preciso desenvolver uma forma sábia e não violenta de lidar com a natureza, ou seja, é preciso desenvolver a sustentabilidade.

Se a humanidade quiser sobreviver, vai precisar mudar radicalmente sua relação com a natureza. A mudança climática e a ameaça de escassez de muitos recursos naturais são claros sinais de que as coisas não podem continuar como estão. Em poucos anos, seremos 8 bilhões de habitantes humanos em nosso planeta. O padrão de vida de um número cada vez maior de pessoas vem exigindo um uso cada vez mais intensivo de recursos. Quanto tempo devem durar os recursos para que as próximas gerações possam ter uma vida digna?

Um dos grandes desafios é a necessidade de estabelecer a sustentabilidade como princípio de vida. Se partirmos do princípio de que a sustentabilidade deve ser um estilo de vida permanente, é necessário adotar um comportamento mais que estratégico. Face à complexidade do desafio da sustentabilidade, é preciso encontrar novas formas de lidar com todas as áreas da vida humana. Para isso, é preciso sabedoria.

Com base nessa situação, a comunidade internacional decidiu estabelecer as metas de sustentabilidade para os próximos 15 anos, conforme definidas pelo Open Working Group for Sustainable Development. Entre o total de 17 metas, citamos: a eliminação da pobreza e da fome; a expansão do sistema de saúde; o desenvolvimento de educação contínua, inclusiva, justa e de alto valor;

a igualdade de gêneros, o fornecimento universal de água limpa e energia; a redução da desigualdade; o desenvolvimento de cidades e consumo sustentáveis; o combate à mudança climática e à destruição dos oceanos; a manutenção dos ecossistemas no campo; o desenvolvimento de sociedades pacíficas; e a cooperação global para atingir o desenvolvimento sustentável.

Para poder atingir, ainda que de maneira parcial, essas metas profundamente transformadoras, são necessárias formas sábias de agir nos planos macro, meso e microestrutural. “Sabedoria”, nesse caso, significa ter a capacidade de “lidar (de forma bem-sucedida) com problemas complexos, conciliando espírito e palavra, pensamento e ação, real e planejado – com alto grau de correspondência e coerência entre todos eles”.

Christoph Wulf é professor nas áreas de antropologia

e educação dos programas de graduação e pós-graduação da

Universidade Livre de Berlim, na Alemanha.

 

 

Corpos da sabedoria: a prudência de deixar que as coisas aconteçam quando agimos juntos

Hajo Eickhoff

Em silêncio, majestosa e tranquila, ela desliza pelo ar. Asas abertas, olhar atento. Aparentemente indiferente, ela fixa seu alvo no escuro, em que outros não conseguem enxergar. É a coruja, a companheira de Atenas, a deusa da sabedoria e da estratégia, que conduz os exércitos.

A coruja grega, de nome biológico Athene noctua, não é um animal sábio em si, pois não é nem mais inteligente nem mais prudente que outras aves. Para os gregos, é somente a representação da sabedoria por fazer lembrar aquilo que o ser humano associa à sabedoria: a calma, a serenidade, a leveza e a concentração – características que, muitas vezes, descrevem não só a coruja, mas também o observador atento.

O ser humano não pode voar. Ele tem os pés plantados no mundo. Aliás, ele próprio é o mundo. No entanto, enquanto o mundo não humano, composto de pedras, plantas ou aves, nada sabe de si mesmo ou do mundo, o ser humano sabe do mundo, pois tem consciência e conhece a si mesmo, já que tem autoconsciência. O ser humano se relaciona com o mundo e consigo mesmo. Ele observa e percebe ambos. Sua capacidade de se nomear como “eu” é única, pois só o ser humano detém essa certeza de ser eu, sujeito, aquele que age.

Seu cérebro recebe impulsos do mundo exterior e interior, comunicando-se também consigo mesmo. Sua autorreferência origina-se da comunicação interna entre seus neurônios – e isso é algo que ele só consegue pressentir. Por outro lado, é capaz de vivenciar o mundo exterior e sentir seu mundo interior.

Em um processo de bilhões de anos, a evolução coletou conhecimento e habilidades relacionadas aos padrões do mundo vivo, refinando e armazenando essa informação nos genes de organismos cada vez mais complexos. A evolução equipou bem os seres vivos, para que pudessem aproveitar seu conhecimento biológico-histórico em prol da manutenção e do desenvolvimento da vida.

Dessa forma, o ser humano – em permanente troca com o mundo – é um ponto de encontro de contínuos estímulos, externos e internos, que são combinados para formar oxigênio, sangue e células; músculos, órgãos e esqueleto; mente e alma; comportamento e ações, criando, assim, um ente único: o ser humano.

O cérebro registra e processa bem mais do que aquilo que o ser humano percebe conscientemente, pois raciocínio e sentimento só conseguem acessar uma pequena área do conhecimento. Sistemas autônomos, como o da respiração, da circulação sanguínea, da digestão, dos processos biológicos profundos e o batimento cardíaco, funcionam sem jamais chegar ao nível de consciência. A sabedoria é uma possibilidade de ter acesso a processos inconscientes por meio do conhecimento, da vivência, de sensações e de conclusões coerentes.
 

O sentir e os caminhos sábios

Prudência, filosofia e sabedoria requerem trilhas e caminhos. Requerem mais do que isso: elas exigem métodos. Métodos surgem a partir de caminhos já percorridos: meta (pós) e hodos (caminhos) formam a palavra “métodos”. O mundo marcado pela tecnologia soterra essas trilhas e caminhos ou os oculta. Por sua fixação em espaço, tempo e medições, bem como por seu descaso pela sensibilidade e afetividade humanas, as ciências são incapazes de produzir sabedoria, já que a preocupação com a existência humana não tem uma data que possa ser comprovada cientificamente.
 

A sabedoria poderia ser definida como uma ideia para melhorar o mundo – sem acreditar tolamente que se pode salvar o mundo sozinho

 

A situação mundial hoje é uma crise aberta e, para enfrentá-la, decisões sábias devem ser tomadas. Em tempos de globalização, culturas diferentes se veem frente a frente, por conta de relações comerciais, dos esportes, da ciência, da migração e do turismo, sendo muitas vezes até obrigadas a dividir espaços em função de guerras e da extrema pobreza — e, nesses encontros, a tolerância mútua não surge naturalmente.

A tecnologia pervasiva e a redução de todas as áreas da vida à mera visão econômica restringem seriamente a capacidade sensorial do ser humano no momento de avaliar uma situação. Se reconhecemos um abalo na harmonia entre mente e sentidos, mais do que nunca é preciso que indivíduos, empresas, política, arte e ciência ajam com sabedoria.

 O ser humano precisa aprender a aceitar o outro, um estranho que se aproxima de forma aparentemente ameaçadora. Quem guarda ressentimentos, odeia, inveja ou despreza não é capaz de agir com sabedoria. Isso significa que parte da sabedoria está em evitar ser radical, tolerar a ambiguidade e cultivar a resistência e a resiliência, entre outros pontos. 
 

Mito e sabedoria

O mundo moderno dificulta de várias maneiras que o ser humano aja sabiamente. De um lado muito concreto, a tecnologia e o estilo de vida puramente racional distanciam o indivíduo de seus instrumentos de orientação mais espontâneos, que são os sentidos. Do lado das ideias, o obstáculo é a primazia da racionalidade como único paradigma de conhecimento e verdade.

No entanto, o ser humano pressente que, sem seus sentidos e sensações – cuja importância a vida lhe mostra continuamente –, não é possível tomar decisões que levem a uma vida de prudência e sabedoria, pois tais decisões dependem também do funcionamento dos sentidos e de ações rápidas e espontâneas. Trabalhar a sabedoria pode significar ter de se debruçar sobre mitos, explorar sua sabedoria e reconhecer que não se trata de fantasias, mas de conhecimento arcaico e pré-moderno.

Conhecimento e sabedoria são derrotados pela história, inclusive o conhecimento e a sabedoria dos mitos. Alguns mitos podem se manter por longo tempo, mas podem não valer para sempre. Quando vemos o mito em seu contexto histórico, conseguimos entender as verdades que ele contém, mesmo que o mito em si tenha perdido muito de sua importância. No tempo em que o ser humano estava cercado quase que exclusivamente pela natureza, precisava de outras verdades diferentes das deste tempo atulhado de tecnologia e de coisas.

Assim como os mitos de outros tempos visavam ao todo, também o presente exige que o olhar se volte ao todo da existência. Immanuel Kant já defendia isso há 250 anos, quando falava de cidadãos do mundo e de paz eterna. Um olhar desperto, aguçado e claro, dirigido ao mundo de hoje, solicita uma ética que não sirva apenas para sua própria cultura, mas para toda a humanidade. Essa ética deve atribuir ao indivíduo seu dever, formulado de forma sábia, e fazer com que ele abrace uma ética global, para que proteja as matérias da natureza — terra e ar, plantas e animais, os seres humanos e sua produção cultural –, pois seu próprio planeta é tudo o que o indivíduo pode ter.

A sabedoria é um paradoxo. Não é pensamento e nem ação; não é sentimento e nem razão; não é incerteza e nem certeza. É, sim, um princípio catalítico, que liga dois polos por sua mera presença, sem jamais se dissolver ou transformar. Como catalisador, não interfere, mas permite que as coisas aconteçam.

“Não exija que as coisas aconteçam como você quer, e sim que as coisas aconteçam como acontecem, e sua vida fluirá com leveza”. Sabedoria é ter uma visão engajada e, ao mesmo tempo, serena, como a dos astronautas em órbita, que olham para a Terra e se emocionam com a imagem pacífica do planeta. Tomar essa aparência de serena paz como inspiração para buscar a convivência pacífica de toda a humanidade: isso seria sábio. Portanto, a sabedoria poderia ser definida como uma ideia para melhorar o mundo – sem acreditar tolamente que se pode salvar o mundo sozinho.

Hajo Eickhoff é doutor em filosofia, historiador

cultural, curador e membro do Centro de

Antropologia Histórica de Berlim, na Alemanha.

 

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