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Fiz um novo caminho onde não havia nada além de um pântano

Ronaldo compartilha suas experiências em A Noite dos Mortos-Vivos | Foto: Ligia Jardim
Ronaldo compartilha suas experiências em A Noite dos Mortos-Vivos | Foto: Ligia Jardim

Por Ronaldo de Morais*

Enquanto eu servia aquelas cinco pessoas, não podia deixar de ouvir, pela proximidade das mesas e já do adiantado da hora. Era possível escutar o silêncio da avenida ser interrompido pela garoa formando poças. A calçada iluminada pelas luzes da vitrine de doces franceses mais pareciam um catálogo de cores para pintura. Nomes de tintas eram o sobrenome do doce, e o reflexo da magenta no concreto externo dava uma impressão de um tacho derretendo sabão. A conversa se dava fluida pelo efeito das garrafas já abertas, vazias, o assunto girava em torno da preservação da árvore sobreiro, matriz da rolha. O tom subia na gargalhada quando tentavam se lembrar se na visita à Califórnia houvera uma competição de sommeliers onde os chilenos se destacavam nas novas safras de uva. Mas a sensação era o scroll cap, esse sim era prevenção para o fim do desmatamento das cortiças. Eu já conhecia aqueles clientes pela habitual frequência, já me preparava pra lhes oferecer café, quando uma das pessoas me chamou, grave, sério, impessoal e lascou a pergunta: Garçom, você acha que a maconha deve ser liberada ainda esse ano? Pensei na geladeira cheia daquelas pessoas e respondi: Dependendo do tamanho da sua varanda já está liberado. Ouvi um riso estanque e irônico. Nesse momento o banheiro já estava limpo e eu pensava no último ônibus que me levaria até o terminal, metade do meu caminho de volta pra casa, onde mais uma noite dormiria só e contando as moedas pro meu tabaco diário. Não traga café. Faça pra viagem cinco éclair de pistache. Pensei, as magentas vendem mal. Fiz o pacote, levei junto com a conta, que na sua totalidade pagava minha conta de luz por seis meses. Ainda via as sombras refletindo na água que caía fina e persistente. O cheiro do baseado tomava os passos à frente da imensa nuvem, se misturando à garoa fina acima dos clientes caminhando abraçados e livres de toda ansiedade comum aos endividados.

Tomei o busão que subia a Augusta e atravessava a Paulista. O cheiro de cerveja saía das calçadas e invadia meu nariz. Eu fazia uma prece solitária, ligava para pessoas alcoolistas e como resposta só ouvia, vai passar. Nunca passou. Para não descer do ônibus, pensava no aluguel, o último albergue já havia rejeitado uma vaga. Pensava na biopsia pelo SUS marcada para aqueles dias, a ração do cachorro estava no fim, a fibrose no fígado me fazia sentir fraco e um medo terrível de que no meu trabalho as pessoas soubessem que eu era egresso do sistema penitenciário. Na solidão desses pensamentos, só me perguntava por que eu não podia tomar nem uma cerveja? Eu sabia a resposta. Abstinência era minha única alternativa para seguir. Eu já havia tentado de todas as maneiras reduzir danos, usar com moderação, todas as internações haviam falhado. Eu carregava a pecha do recaído. Me incomodava mais saber que eu fui usuário de crack por mais de 20 anos. Talvez, se a minha memória não falhe, a primeira vez que usei o que se chamam psicoativos, foi uma bebida de cor vermelha chamada bomberinho, uma mistura de pinga, groselha e limão. Na festa em que eu estava havia muitas pessoas se encontrando e confraternizando, as bebidas todas coloridas me chamavam a atenção, tinha o rabo de galo de cor mais assim pro marrom escuro, cervejas ainda eram só de garrafas. Fato é que, apesar de ser menor de idade, o meu primeiro contato direto com álcool produziu em mim prazer e alívio. Já de cara eu tive, naquela noite de 1984, o que tecnicamente é uma overdose, vomitei muito. Eu morava em um tipo de cortiço com 5 ou 6 casas no mesmo quintal. Minha mãe trabalhava de domingo a domingo como cozinheira, eu ficava com a tarefa de limpar a casa e cuidar do meu irmão 10 anos mais novo. Aos sábados à noite, eu organizava um carteado de baralho. O jogo era caxeta valendo e casado dinheiro vivo. Uma parte das apostas ficava pra mim por ceder o lugar - um lugar seguro era raro no Itaim Paulista naquela época. Havia umas histórias de um justiceiro, Chico Pé de Pato, que andou pela região e a gente ficava apavorado com o que contavam sobre ele. Diziam que o Chico era capaz de matar uma pessoa só pelo fato de estar usando boné. Que todo ódio que ele tinha vinha do fato de que estupraram sua esposa na sua frente. Nessa época, eu ainda não trabalhava tipo CLT que era condição pra ficar na rua. Se a polícia pegasse jovens nas ruas sem carteira assinada o coro comia ali mesmo. Se encontrassem uns baseados aí era o fim. Eu tinha começado a trabalhar em 1985 como estoquista, aí foi meio que direito a ocupar as ruas do bairro. Foi também a época da maconha da lata, era esse o assunto, quem tinha fumado da lata e as histórias do justiceiro, misturado com medo da polícia. Nunca gostei muito de maconha, dava fome, e a geladeira nem sempre era favorável. Meus pais eram separados e já não via meu pai há uns 4 ou 5 anos. A gente também não falava dele, apesar de sentir sua falta. Na jogatina de sábado à noite, a gente bebia muita cerveja, as bebidas coloridas eram para a mesa campeã. Um dia eu vi uma propaganda, um comercial de TV. A peça da bebida Campari. A moça que fazia o comercial foi um sonho de paixão arrebatadora. Do meu salário eu fiz uma promessa, vou juntar dinheiro, comprar uma prancha de surf, morar na praia, comprar uma garrafa de Campari e esperar encontrar a moça do comercial. Esse era meu plano de encontro em 1987. Eu não sei se era um plano de encontro ou a vontade de fugir. Ficamos sabendo por telefone que meu pai havia morrido. Foi um enterro triste. Eu seguia com meu plano já em total falência, não sobrava dinheiro pra nada, plano Sarney, inflação, mal comíamos não fosse o trampo da minha mãe. Meus caraminguá não sobrava pra comprar prancha de surf, nem viajar à praia, condição por excelência pra se aprender a surfar. No fim do mês, se sobrasse uns trocados eu comprava umas revistas de surf e sonhava. Eu encontrava os amigos no baile que tinha no bairro, todo sábado. Nessa época, quem dançava igual ao Michael Jackson se dava bem, beijava a noite inteira. Eu participei de uma competição de break, nosso grupo ficou em terceiro lugar com a música da Cindy Lauper. É importante que se contextualize, aqui nesse tempo não há celulares, nem e-mails, e telefone é artigo de luxo de altíssimo nível. Comunicação era privilégio de quem trabalhava como office boy e aprendia a ler os muros da cidade, seus códigos, a moda, a linguagem. Tinha essa coisa de fase do exército e eu já ia na evasão escolar, dinheiro muito curto, sonhos que iam se interrompendo. Eu bebia quase todo dia, muito álcool, trocava de trabalho todo trimestre. A onda dos shoppings centers ia se aproximando. Fim da década de 80. Cocaína também já começava a aparecer, aquela coisa frenética da cocaína, mas caro. Os encontros foram se sucedendo, eu era a má influência. Amigos distantes, eu querendo pertencer a um mundo que não era o meu, buscando algo que preenchesse a falta, sabe? Faltava tudo, de saneamento básico a moradia, pagávamos aluguel, era aquela corrida. Era um desencontro de sonhos total. Às vezes, quando eu penso em livre arbítrio me vem uma culpa tão pesada porque a primeira vez que eu fumei crack em 1989, meu primeiro filho estava pra nascer. Eu sei pouco sobre meu filho mais velho, mas tenho certeza de que ele vivenciou a experiência do abandono, porque de 1989 eu fumei pedra de crack todos os dias por 5 anos, sem parar, até o dia em que fui internado pela primeira vez, de um total de mais de 10 internações, até 2010.

Talvez o encontro mais importante que a gente possa ter na vida sejam os filhos. Eu nunca fui pai, porque nunca fui filho. Atualmente se chamam os que deixam de usar crack de os que estão em recuperação. Eu nunca recuperei nada, eu nunca vi uma carteira de vacinação dos filhos, eu nunca fui a uma reunião de pais em escola, eu nunca fiz uma viagem com meus filhos, eu nunca vou recuperar os sorrisos que minha filha deu ao ver um papai Noel, um coelho de Páscoa, eu nunca vou saber da felicidade que ela teve quando aprendeu a nadar, a dançar ballet, eu nunca tive ninguém me esperando em rodoviária, nem quando saí da penitenciária em liberdade condicional. Estive preso. Quantas visitas recebi ali na cadeia e nunca vou poder retribuir. Não posso doar sangue. Ando só. Os encontros que me sucedem são inesperados, feito alguém que vê uma carteira caindo do bolso de um passageiro de ônibus, corre, lhe entrega, agradece, há um efeito ali momentâneo e se acaba. Por esses motivos, não acredito em recuperação individual, acredito em uma mudança de caminhada, uma espécie de superação social. Quando alguém deixa de usar crack toda a sociedade se beneficia. Fiz um novo caminho onde não havia nada além de um pântano, pra isso precisei ficar em abstinência total, a não ser o tabaco. Acredito que a partir desse momento, as ações se tornaram sociais. Nesse novo caminho juntei forças com os que encontrei e alguns nunca mais vi. A médica que tratou minha tuberculose, a outra que tratou minha hepatite C, um franciscano que me abraçou, os livros e as bibliotecas que passei a frequentar, museus na cidade, piscinas públicas, os professores que me orientaram pra concluir o ensino médio, o curso superior, os estágios, pessoas que se aproximaram por um tempo e partiram, o teatro, a peça Amadores, o palco, a certeza de estar no local certo com as pessoas certas. Depois de tanto desacreditar, pertencer ao palco.

Ao longo dos anos a sociedade civil se debruçou pelo tema ainda que de pouco fôlego. Buscou soluções onde é fato notório vários modelos daquilo que se convencionou chamar de recuperação. Quando pensamos no conceito de prevenção, os limites são ainda mais sensíveis, até onde o livre-arbítrio protege o indivíduo das ações externas? Quem fará o trabalho? Uma resposta comum é que a educação dá conta do recado. Essa (Educação) que já acumula tantos desafios, onde a hora/aula de um professor é o equivalente à um maço de cigarros. É propício e em boa hora afirmar que tabagismo e alcoolismo formam o grosso das epidemias e suas sequelas ultrapassam em muito os danos sociais que insistem em pôr na conta de usuários de crack. A indústria cervejeira está em todas as mídias. Os eventos nacionais com maiores concentração de público, do carnaval aos campeonatos regionais, shows internacionais, os camarins disputados, levam o nome das cervejas. Das corridas de carros até a quermesse mais distante do país a ordem é BEBA. É quase uma agenda etílica nacional. Diante disso, é um grande prêmio que a sociedade toda não ultrapasse vinte milhões de alcoólatras. A correlação uso/abuso de álcool x violência doméstica, evasão escolar, gravidez precoce, sonhos interrompidos... Qualquer pessoa que trabalhe com dependência química e afirmar um mundo sem drogas terá pela frente a realidade das indústrias farmacêuticas. Medicamentos para depressão em nossa sociedade estão circulando livremente nas redes sociais. É possível sair ileso dessa avalanche de informações imperativas das drogas socialmente aceitas, mas para o crack apresentam-se soluções individuais de superação. Tentam mapear os efeitos cerebrais, dizer conscientização do indivíduo, como se tudo fosse ali encontrado. Já vi usuários adultos que quando usam pedra de crack passam a chupar chupeta como se fossem bebês e crianças que, após o efeito da droga, não param de perguntar onde está o facão. Já vi famílias inteiras usando crack, pai, mãe e filho. A proposta que ainda não foi testada no Brasil de fato é separar o que é social nesse imperativo cerebral. Se é social, abrange toda a sociedade. Quanto mais excluído das esferas sociais de cultura, educação, saúde, políticas de habitação, mais se tem a prisão como única resposta. O encarceramento em massa brasileiro é nefasto. A última contagem oficial é de junho de 2016[1]. Contava, à época, 726.712 pessoas no cárcere. Quase um terço dessa população está em alguma medida envolvida na lei de drogas (LEI Nº 11.343). Quando o assunto é gênero os números são mais assustadores, mais de 60% do cárcere feminino repete a tipificação penal acima.[2]

Para além dessa realidade, o tripé onde se assenta a medicina, seja para recuperação ou prevenção, focaliza um problema de saúde bio-psico-social.[3] A pergunta é: que social? Se todo mérito se coloca no individuo-herói que superou o vício e sua abstinência é celebrada isoladamente como se não houvesse uma trama solidária para alcançar, segurança pública, educação, trabalho, saúde, políticas sociais, meio ambiente, habitação, economia e família? Não é hora de levar em conta que em tudo aqui falamos de agricultura e poder? Da preservação do sobreiro, do cultivo da uva, das monoculturas da cana de açúcar, da cevada, da cannabis, tudo é agricultura. O que as separa do ponto de vista do psicoativo seriam, em vários casos, os efeitos esperados de analgesia[4]. O que queremos anestesiar é social. A condição humana é social. E, em grande medida, socioeconomicamente injusta.

*Ronaldo de Morais é sociólogo e professor. No espetáculo A Noite dos Mortos-Vivos, que estreia no Sesc Consolação no dia 22 de julho, ele é um dos atores que divide suas histórias com as drogas.

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[1] Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho/2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública, Junho/2016; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dezembro/2015; IBGE, 2016. <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/relatorio_2016_2211.pdf>

[2] Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho/2016. P. 43

[3] Prevenção ao Uso Indevido de Drogas (PREVINA) / Carlini, Elisaldo Luiz de Araújo (org.). São Paulo: Universidade Aberta do Brasil/Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), 2015. Pg 92

[4] Ao tratar da vulnerabilidade humana substantiva, isto é, a possibilidade de todos os humanos serem feridos, a Bioética estaria, mais uma vez, alertando sobre a dor de existir, sobre o desamparo que marca a trajetória dos humanos e a necessidade fundamental de sua analgesia1 -Usos e usuários de substâncias psicoativas: considerações bioéticas
Antonio Nery Filho, Cláudio Lorenzo, Fátima Diz