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Entrevista Júlio Lancellotti

ENTREVISTA JÚLIO LANCELLOTTI

Para esta edição da revista do Centro de Pesquisa e Formação, tivemos a oportunidade de conversar com o padre católico Júlio Lancelotti.
Importante voz em defesa dos direitos humanos na cidade de São Paulo,o religioso está à frente de vários serviços de atendimento à população carente, dedicando-se principalmente às pessoas em situação de rua.

CPF: Como o senhor vê o crescimento de uma mentalidade intolerante e punitiva, a favor de mais rigor e encarceramento; a defesa ao amplo uso de armas; e o aumento dos grupos e das estruturas que corroboram para a legitimação da violência?

JL: Não acredito que isso seja novo. Essas questões fazem parte da história da humanidade, tendo se repetido muitas vezes ao longo do tempo. O caso mais recente e terrível é o Holocausto, quando milhões de pessoas foram exterminadas. Depois da Segunda Guerra e da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, acredito que fomos tendo pontos e contrapontos; uma afirmação de uma agenda e de uma legislação de posicionamentos em relação aos direitos humanos. Mas também desde a Segunda Guerra até os nossos dias quantos genocídios já vivemos? Quantas matanças? Quantas execuções? Tudo o que aconteceu na África? Na Ásia? O que acontece no Oriente Médio? E aqui, no Brasil? O massacre da juventude negra e periférica não é novo. Não surgiu agora. O que tem sido feito com os índios desde 1500? A escravização no nosso país foi a última a ser "abolida" e continua presente na vida do nosso povo. Então essa situação do encarceramento não é nova. Em relação às questões relacionadas à saúde mental, vejamos os hospitais de doentes mentais em Minas Gerais, o nosso próprio Juqueri aqui em São Paulo. Lembro quando, na minha infância, a gente falava do Juqueri como um lugar tenebroso.

Há quanto tempo deixou de existir a casa de detenção? O que são a Febem, os presídios, os Centros de Dentenção Provisória (CDPs), as delegacias de polícia? Tivemos a ditadura ainda. Temos muitas pessoas desaparecidas por causa desse regime. A intolerância às pessoas LGBT. Não são coisas novas. Não começaram neste ano. Neste ano, talvez o que apareça de novidade seja um patrocínio e uma legitimação, e essa passa a ser uma posição quase que privilegiada ou, como se diria, a posição correta. Então, nesse sentido, mais do que um crescimento da violência, o que vemos é uma legitimação dela. Estão sendo legitimados a violência, o preconceito, a discriminação e o extermínio. E com elementos que facilitam. A anistia internacional e o próprio Ministério Público Federal pediram a revogação do decreto que facilita a posse de armas. Eu vi agora que, de apenas um fabricante, há duas mil pessoas na fila para comprar um fuzil altamente sofisticado. E tivemos nesses dias aquela execução na Cracolândia... aquela moça que foi executada. Ela foi executada. Ela não recebeu uma bala perdida. Foi executada. E o catador em Santo André que foi executado e agora há notícias de que quem o executou é 209

uma pessoa colecionadora de armas. Então, nesse sentido, facilitam-se e legitimam-se a violência, o extermínio, a perseguição a ponto de um morador de rua poder ser a qualquer momento alvejado porque ele está ocupando a porta da minha casa, espaço público. Vivemos um momento em que o que percebo é que o Brasil disparou o alerta máximo.

CPF: Apesar de ser ameaçado de morte, o senhor se recusa a receber segurança armada. Por quê?

JL: Seria um contrassenso eu querer segurança armada justamente se são os defensores das armas que me ameaçam e me atacam. Depois, como eu convivo com a população de rua? Como vou conviver com a população de rua sendo escoltado? Não vou conseguir. E a minha defesa não é uma defesa pessoal, de uma escolta para mim. Eu defendo que os moradores de rua sejam tratados com dignidade.

CPF: Qual sua visão sobre a organização espacial da cidade de São Paulo e os seus impactos em termos de exclusão ou de inserção da população periférica, mais vulnerável e mais pobre? Quais são os novos mecanismos de exclusão na cidade?

JL: A cidade é a vitrine da modernidade; a cidade é de contraste. É uma cidade cheia de apartheids. Um lugar em que embora haja sistemas viários de comunicação, não há sistemas vitais de comunicação. Você pode viver na cidade de São Paulo a vida inteira e nunca ir ao Jardim São Luís. Não saber nem onde é. Não saber onde é o Jardim Brasil. Não saber onde está a Cidade Tiradentes. Você pode viver aqui a vida toda e, como disse há um tempo uma pessoa importante, não saber onde é o Minhocão, nunca tê-lo visto. A cidade se mostra e se esconde, e há espaços elitizados, espaços fechados. O morador de rua dificilmente entra em um shopping, em um banco, em igrejas. É vetado. Um garoto da favela dificilmente vai conseguir entrar no Colégio Bandeirantes ou no Colégio São Luís. Eles não conhecem esses espaços ou determinados museus ou casas de show. Quem do povo entra no teatro da Porto Seguro? São lugares muito fechados, muito blindados. A cidade hoje tem um número de moradores de rua superior ao de quatrocentos e vinte municípios do Estado de São Paulo. Aqui a miséria está muito explícita. Como diz o Papa Francisco, o modelo neoliberal fabrica pobreza e quer esconder os pobres. Então há na cidade muitas ocupações, muitas habitações coletivas, ocupações muito grandes em que estão muitos migrantes, muitos refugiados. Há ocupações no centro da cidade em que chega a ter duas mil pessoas. Há um subsolo São Paulo por onde circulam muitas pessoas. Por exemplo, há muitos espaços inimagináveis onde as pessoas vivem e sobrevivem, como à beira de linhas de trem. Quem conhece a favela do Moinho sabe o que significa aquilo.