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Sobre a Disposição de Permanecer

Pesquisador trabalha na higienização de cartaz no Sesc Memórias, criado em 2006
Pesquisador trabalha na higienização de cartaz no Sesc Memórias, criado em 2006

João Paulo Leite Guadanucci*

Uma escadaria unindo as partes alta e baixa de um bairro, cuidada por moradores locais; um idioma falado por centenas de indígenas num vídeo de youtube; três caixas de postais antigos encontradas embaixo da cama da avó, falecida há alguns meses; o museu ferroviário da cidade; uma poesia que ninguém mais lembra direito, contando como os primeiros habitantes cozinhavam; jovens aproveitando os LPs dos pais para reinventar o hip-hop; um canhão enferrujado apontado para o mar; músicas e danças que se misturam, toda sexta-feira de lua cheia, naquela comunidade; um conjunto de edifícios modernos que um dia revolucionaram o conceito de moradia; fotos digitais salvas numa pasta desconhecida; um senhor que sabe fazer ampulhetas conforme seu avô lhe ensinara.

A memória se insinua por todo lado. Está presente nos atos cotidianos e no significado que lhes damos. Configura o mundo que habitamos e o modo como nele agimos. Tão embrenhada na textura da realidade, oferece um desafio a quem queira sobre ela refletir: como circunscrevê-la? Por quais lados abordá-la?

Trata-se de uma empreitada que varia segundo o contexto. Afinal, a memória é assunto sobre o qual se comenta desde que o ser humano percebeu que se lembrava – já não lembramos exatamente quando isso ocorreu.

Muita coisa mudou desde então. Pode-se pensar tais mudanças a partir de duas frentes: de um lado, temos as concepções que buscam explicar a relação das pessoas com os fatos que a antecederam; de outro lado, há a dimensão político-social dessa questão, indagando quais acontecimentos mereceriam ser lembrados, assim como quem faria tais escolhas. Evidentemente, essas duas facetas se interpenetram, mas é útil aproximar-se delas por partes.

A palavra memória admite vários significados, os principais se referindo à capacidade (não apenas humana) de reter algo ligado ao passado, assim como dizendo respeito aos seus desdobramentos materiais, simbólicos e sociais. É visível a conexão dessas acepções com a noção ampliada de cultura (dita “antropológica”), já que ambas revelam suas respectivas tendências ao transbordamento e sua onipresença. De qualquer modo, é importante sublinhar: a memória é pressuposto da cultura.

Conforme variaram tempo e espaço, a relação com o acontecido adquiriu usos sociais diversos. A temporalidade circular que organiza a vida de certos grupos e comunidades, mimetizando em grande medida os ciclos naturais, confere à memória um estatuto peculiar: nesses casos, as ações do dia a dia e, principalmente, os ritos e celebrações atualizam permanentemente o já-vivido, solicitando-o com uma intimidade peculiar. O mesmo não acontece na experiência contemporânea, em que determinada distância caracteriza a relação com o passado, distância essa ocupada por especialistas e diletantes, por ativistas e negociantes.

Num contexto como o atual, no qual o futuro deixou de representar a promessa de progresso contínuo e passou a sugerir panoramas bem mais inquietantes – o colapso ecológico é sua faceta mais contundente –, é coerente que se olhe “para trás” com avidez, como se lá tivessem sido depositadas certas lições que desaprendemos. Indivíduos e coletividades perguntam-se sobre seu passado e seus antecedentes, empresas e entidades criam estratégias de preservação de suas respectivas histórias, inseridos numa voga que inclui agentes relevantes, como o turismo, a publicidade e a moda. Pensar a memória hoje é lidar com essa situação, marcada por excessos e carências.

O Sesc, assim como outras instituições socioculturais, está inserido em tal contexto e realiza suas ações no campo da memória levando-o em consideração. Ao longo de sua existência, é visível o incremento da atuação nesse domínio – o que dialoga, em certo grau, com as movimentações ocorridas dentro e fora do país.

Alguns marcos ajudam a compreender essa trajetória, como a requalificação de uma fábrica de geladeiras e tambores para se transformar, em 1982, num centro de lazer e convivência, o Sesc Pompeia. A decisão de restaurar e preservar a arquitetura fabril, numa época em que o zelo pelo patrimônio edificado se restringia aos símbolos do poder político ou religioso, indicou o reconhecimento de que a memória constitui um campo múltiplo, construído e reelaborado por instâncias variadas da sociedade. A chancela oficial, na forma de tombamento, viria bem mais tarde: em 2004 na esfera municipal, em 2014 na federal. Outra construção tombada atualmente sob a gestão do Sesc no Estado de São Paulo é o conjunto de armazéns criado no começo do século XX pela Companhia Ultramarina de Desenvolvimento do Japão, KKKK (Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha), adaptado para abrigar desde 2016 o Sesc Registro, na maior cidade do Vale do Ribeira.


Outro aspecto que revela a importância conferida à memória foi a constituição de acervos a partir de estratégias diversas, como é o caso do Acervo Sesc de Arte Brasileira – coleção de obras de arte brasileira incorporadas sistematicamente desde a década de 1970, acessíveis aos públicos em todas as unidades – e o mobiliário elaborado especificamente para os espaços do Sesc, concebidos por designers e arquitetos importantes da história cultural brasileira.

Em 2006, a preservação da memória institucional ganha um impulso fundamental: o surgimento do Sesc Memórias, programa encarregado do recolhimento, tratamento, catalogação, guarda, digitalização e disponibilização para pesquisa de documentos relativos às ações do Sesc desde sua fundação, em 1946. Trabalhando com itens cuja diversidade testemunha a polivalência das atividades – fotografias, materiais gráficos, conteúdos audiovisuais em múltiplos suportes, peças tridimensionais e entrevistas – o Sesc Memórias aproximou-se de especialistas para construir metodologias adequadas a um acervo tão peculiar. Atualmente, subsidia pesquisas realizadas por funcionários da entidade, por pessoas ligadas ao universo acadêmico, por veículos de comunicação e pela sociedade em geral.

Além de edificações e acervos, o cuidado institucional com o patrimônio reflete-se no âmbito natural. Uma das áreas do Sesc Bertioga constitui uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), espaço no qual se articulam preservação do meio ambiente e mediação socioeducativa, com especial atenção para a questão da acessibilidade. Além disso, duas unidades – Sesc Interlagos e Sesc Itaquera – estão localizadas em áreas de proteção ambiental, construindo importantes áreas verdes para atividades de lazer e educação permanente.

Paralelamente ao cuidado com a memória materializada, o Sesc desenvolve uma frente de ação complementar: trata-se de iniciativas de caráter educativo que têm como foco a memória e o patrimônio. Cursos, oficinas e seminários abordam a educação patrimonial e a museologia social, bem como um amplo espectro de questões ligadas a expressões identitárias e tradicionais, estimulando os públicos a refletir sobre as construções de narrativas levadas a cabos por grupos sociais os mais diversos. Tal empenho ganha maior alcance com a publicação de livros e a produção de material audiovisual dedicado ao assunto.

Em todos esses casos, tão importante quanto jogar luz sobre modos de vida plurais, com especial cuidado para aqueles menos visibilizados, é situar os debates e reflexões na perspectiva da cidadania. Isso significa a reiteração de que, dentre os direitos culturais, destaca-se o direito à memória; isso inclui não apenas o acesso às memórias dos estratos que compõem a sociedade, como principalmente a possibilidade de que cada cidadão ou grupo tenha garantido o reconhecimento, preservação e promoção de suas narrativas sobre o passado.

Afinal, a memória serve ao presente – essa condição é cada vez melhor compreendida, o que explica em grande medida a relevância que ela adquiriu para além de círculos especializados. Os interesses pessoais e coletivos que dela se apropriam determinam seus usos, por vezes inclusivos, mas que não raro reforçam situações de desigualdade e vulnerabilidade.

Cabe àqueles comprometidos com pautas de interesse público envolverem-se nessas dinâmicas, aproximando o tema da memória de uma perspectiva justa e democrática.

*Mestre em História da Arte, bacharel em Filosofia e assistente técnico da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo