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As margens da memória

Do que é feita a memória de uma cidade? Sentimentos, experiências, desejos? Fotografias, documentos, construções? Onde a história se materializa em suas diferentes narrativas? O que a faz permanecer? O que se pode ler além das margens dos documentos históricos?

A cidade de São Paulo tem em torno de três mil bens reconhecidos como patrimônio cultural, mas a metrópole se modifica numa velocidade tão rápida que muitas memórias são por vezes apagadas ou sobrepostas por outras narrativas sem tempo de se consolidarem como patrimônio. Nesta disputa pela memória os grupos mais vulnerabilizados e as áreas mais periféricas acabam encontrando pouca visibilidade, por isso a importância em destacar as iniciativas que promovem a diversidade cultural presente em todas as áreas da cidade, e evidenciam os patrimônios que narram a presença do povo negro, dos índios, dos imigrantes, refugiados, da cultura LGBT, e dos movimentos sociais periféricos na construção histórica da cidade.

A  memória é um poderoso instrumento de consolidação de identidades e de resistência e este potencial se reafirma quando observamos a organização coletiva de grupos sociais que reivindicam o reconhecimento de sua memória e promovem ações para ocupação de espaços que são representativos em sua trajetória. É no uso destes espaços que a resistência cultural se consolida e os patrimônios se constituem muito além dos prédios e construções materiais, mas no reconhecimento pela população de seus bens culturais, no pertencimento de sua própria história e no direito a memória e visibilidade. 

"Todo lugar tem história. A história está ligada às pessoas. Uma região não é mais importante que a outra... todas elas tem sua importância", reafirma Mônica Goulart do Grupo Ururay - Patrimônio Cultural , que esteve no Sesc Itaquera para um bate-papo e apresentação do mini documentário “Territórios de Ururay”, atividade preparatória para o roteiro “Patrimônios da Zona Leste” que será realizado pelo Sesc Itaquera durante a Jornada do Patrimônio 2019. 

 

Vídeo: Thais Fero e Vírgula Filmes

 

O conceito de patrimônio que a Jornada busca promover é aquele que vai além dos prédios históricos tombados oficialmente; ele abrange os bens culturais que fazem parte da identidade e da memória afetiva da cidade. É segundo essa perspectiva que o Sesc tem participado desde 2015 desta iniciativa do Departamento do Patrimônio Histórico da cidade de São Paulo, por meio de seu programa de Turismo Social onde promove atividades que democratizam e ampliam os debates em torno da ideia de patrimônio.

Um exemplo destas atividades é o passeio “Quilombos Urbanos: Quilombaque”, proposto pelo Sesc Guarulhos durante a Jornada do Patrimônio, que visita uma organização sem fins lucrativos criada em 2005 a partir da iniciativa de um grupo de jovens, moradores de Perus, bairro periférico situado no limite noroeste da cidade de São Paulo. Ali, comunidade e território se unem em torno de uma memória comum: a da Fábrica de Cimento de Perus.

Nos anos 1960, essa comunidade era formada essencialmente pelos trabalhadores que fizeram uma célebre greve de quase sete anos exigindo melhores salários e condições na insalubre linha de produção. A coesão social promovida pelo “Movimento dos Queixadas” e o entrelaçamento da história de vida dos moradores com a da fábrica levaram, quando a produção foi desativada em 1987, a uma nova mobilização. Dessa vez, em torno da proteção da memória comum na forma da materialidade do complexo produtivo, que veio com o tombamento em 1992. Hoje, o Movimento pela Fábrica segue lutando pela fruição pública de seu espaço de memória social e demanda um projeto para o local que contemple essa função. 

 

 

E porque um "Quilombo Urbano"? A palavra quilombo origina-se do quibundo "Kilombo", significando acampamento, arraial, povoação, ou ainda união e exército. Mais do que esconderijos de  escravos, os quilombos são entendidos como espaços de resistência. Espaços não apenas rurais, mas também citados em áreas urbanas.

A partir do envolvimento com a arte e a apropriação das fortes memórias de luta e resistência presentes na região, a Comunidade Cultural Quilombaque desenvolveu um museu territorial e uma agência de turismo comunitária onde as diversas trilhas de memória realizadas apresentam a temática da resistência em suas mais diversas expressões: política, social, territorial, trabalhista, cultural. A memória neste contexto se constitui como instrumento de luta pelo direito a própria narrativa histórica, ao pertencimento local e a identidade plural, diversa. 

Iniciativas como estas ampliam e reivindicam a história da cidade de São Paulo além das margens dos documentos históricos, das margens das regiões centrais, onde a história oficial pode “dar margem” as memórias paulistanas que pulsam vivas como um rio na trajetória de vida das pessoas e comunidades. Afinal de contas, em essência, não é disto que é feita a memória de uma cidade? Das pessoas com suas histórias de vida? Então quem delimita as margens desta história é cada um com sua jornada. Qual é a sua jornada? Qual é a sua memória de São Paulo? 

A Jornada do Patrimônio promove sua quinta edição nos dias 17 e 18 de agosto de 2019, com o objetivo principal de estimular a população a reconhecer os patrimônios históricos e culturais paulistanos que tratam da memória e identidade dos diferentes grupos sociais presentes na cidade. Esta é uma oportunidade para mergulhar no universo das memórias paulistanas e encontrar mais do que a história da cidade, talvez um pouco mais de sua própria jornada. 

O evento traz uma intensa programação elaborada por diversas instituições ligadas ao patrimônio histórico. As atividades do Sesc na Jornada podem ser conferidas em sescsp.org.br/jornadadopatrimonio e a programação completa do evento pode ser vista em jornadadopatrimonio.prefeitura.sp.gov.br