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Veríssimo de A a Z: 50 anos de histórias (E F G H I)

foto: acervo da família Veríssimo - Luis Fernando Veríssimo
foto: acervo da família Veríssimo - Luis Fernando Veríssimo

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Poesia numa hora dessas?, nos pergunta um dos bordões que se tornaram marca registrada de Luis Fernando Verissimo. A frase é um alerta para a gravidade da situação, qualquer situação (lembra um de seus personagens mais saborosos e atuais: Dudu, o alarmista), e para o deslocamento da poesia nos dias de hoje.

Mas é também uma afirmação da poesia (e do humor) a qualquer momento, em especial do tipo muito peculiar de poesia que Verissimo nos oferece há cinco décadas, mesmo quando escreve em prosa, mesmo quando desenha, faz piadas para um roteiro de TV ou sopra o seu sax.

Para celebrar cinco décadas desse humor fino que, decantado em colunas de jornal, deu corpo a uma obra sólida e popular, convidamos o jornalista Paulo Werneck para repassar neste abecedário a enorme crônica da vida brasileira que é a obra de Verissimo.

Uma obra que espelha o país em cada linha e cada entrelinha, e nunca nos deixa sozinhos, sempre fazendo rir e pensar, quase sempre ao mesmo tempo. 


#VerissimoDeAaZ
E F G H I

 


O estilo informal, sem absolutamente nenhuma pompa, é uma das marcas de Luis Fernando Verissimo, mestre do diálogo, da frase cortante, da ironia na entrelinha. Entre as várias profissões de fé que podem ser observadas em seus textos, a defesa da clareza merece a gratidão do leitor. “Sempre que um leitor não entende o que um jornalista profissional escreve a culpa é de quem escreve. Tenho, no mínimo, a obrigação de ser claro.” 

E essa obrigação jamais significou prejuízo para o humor ou para o estilo – pelo contrário. “Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo”, afirmou em outra ocasião. “Por exemplo: dizer ‘escrever claro’ não é certo mas é claro, certo?”

 


O pai da psicanálise jamais poderia imaginar, mas teve um discípulo dos mais populares bem longe de Viena, Paris e Nova York – nos confins da América do Sul, bem na fronteira do Brasil com o Uruguai: o Analista de Bagé, que conjugava os insights sobre a subjetividade humana com rudes tiradas do homem do pampa, por vezes mais terapêuticas em sua contundência que o repertório conceitual do médico vienense. 

Sucesso em livro, nos quadrinhos e nos palcos, o personagem é o mais gaúcho de um autor que, ao contrário do pai, privilegiou em sua obra os personagens neutros, “nacionais”, aos regionais. É em seus textos que Verissimo se entrega aos regionalismos e às peculiares expressões gaúchas que por vezes soam incompreensíveis para quem vem de fora do Rio Grande do Sul, exigindo o acréscimo de um glossário ao final de alguns textos.
 
Mas o vocabulário não é a atração principal do Analista de Bagé. Como sabemos, o machismo, a grosseria e a teoria psicanalítica são universais, e esse trio foi imbatível para levar o personagem para além das fronteiras gaúchas.
 



Falta-nos um pouco mais de intimidade com o mestre para afirmar categoricamente qual é o pecado preferido do Verissimo. Por isso vamos arriscar um palpite apenas sobre qual seria o segundo pecado preferido dele: a gula. O primeiro fica por conta da imaginação do leitor.

A gula, de fato, se mostra um prato cheio para o escritor. A gula, diz ele, “se sacia no ato”. Não depende de uma outra pessoa para existir.

“A luxúria e uma condição de insaciedade permanente, elava ao alívio passageiro, mas nunca à plenitude. A preguiça não chega a nenhum estado de saciedade porque nem sai do lugar. Todos os outros pecados (ira, inveja etc.) dependem do seu objeto, o próximo, para existirem. Só a gula se basta”. 
 
O fascínio de Verissimo pela gula se deixa ver em muitas crônicas, mas também lhe rendeu um romance, o segundo de sua carreira: O clube dos anjos, encomenda de uma coleção sobre os sete pecados capitais.
O livro conta a história de uma confraria de marmanjos que se encontram para se entregar à comilança num certo Clube do Picadinho. Os ingredientes incluem muitas colheradas de misoginia dos personagens, quilos de mortes não explicadas, diálogos levemente picantes e um leve e crocante senso de humor salpicado por toda a narrativa. 

“Para o gourmet nenhum crime compensa uma refeição ou uma digestão interrompidas. Um gourmet não cometeria nenhum crime por absoluto desinteresse em pecados adicionais”, explica ele, não sabemos se em causa própria. 

O fato é que morre-se muito e come-se muito neste livro apetitoso, em que a única moderação está no número de páginas, pouco mais de 120. 

Resta ao leitor voraz especular sobre qual seria a resposta do autor a uma velha questão: o que é mais gostoso, comer ou falar de comida? Falta-nos intimidade para cravar uma resposta. Ou talvez falte inventar o nome de um oitavo pecado, o de falar e escrever sobre comida.

 


Durante muito tempo, antes de ser um gênero literário tal como o conhecemos, de conversa desinteressada entre o autor e o leitor, “crônica” foi sinônimo de “história”, no sentido “histórico” mesmo. 

Os primeiros livros de história do Brasil tinham “crônica” no título, e os primeiros historiadores do país, em geral viajantes em missão colonial ou científica, eram chamados de “cronistas”. Só no século 20 a palavra ganhou definitivamente o sentido com que a conhecemos hoje: a arte maior de Luis Fernando Verissimo.

Na literatura, a História com H maiúsculo acabou desaguando nas águas em que bebeu Erico, o pai de Luis Fernando: as do romance histórico, épico, grandioso. Para os cronistas sobrou uma história bem menos maiúscula, mas não por isso menor, que acontece na escala do dia a dia e do presente. Nem parece que estamos diante de séculos de história a nos contemplar.
Desde as primeiras crônicas, de fins dos anos 1960, a história é uma espécie de personagem principal das crônicas que seriam futuramente reunidas sob o título “Crônicas da vida pública”.

“A história é um pesadelo do qual estamos tentando acordar. A História é um relato da imperfeição humana. A história é o nosso dossiê criminal, nossa culpa documentada.” 

 


Uma crônica de abril de 1997 registra o fascínio do escritor ao enviar um dos seus primeiros e-mails, operação que ele descreve com graça e auto-ironia: “Estou escrevendo num quarto de hotel perto do coração da nação mais tecnófila do mundo. Quando terminar o texto, apertarei algumas teclas e ele irá, não me pergunte como, diretamente deste lépi-tópi para o computador do JB. Se você estiver lendo isso é sinal de que apertei as teclas certas”. Tudo indica que deu certo. 

“Aqueles malucos da Califórnia eram craques da informática para os quais o ciberespaço não tinha segredos, mas olhavam o céu com a mesma boca aberta dos homens das cavernas. E liberaram seus espíritos ilustrados para seguir um cometa.”

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