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Veríssimo de A a Z: 50 anos de histórias (O P Q R S)

foto: acervo da família - Luis Fernando e seus pais, Mafalda Volpe e Érico Veríssimo, em 1941
foto: acervo da família - Luis Fernando e seus pais, Mafalda Volpe e Érico Veríssimo, em 1941

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Poesia numa hora dessas?, nos pergunta um dos bordões que se tornaram marca registrada de Luis Fernando Verissimo. A frase é um alerta para a gravidade da situação, qualquer situação (lembra um de seus personagens mais saborosos e atuais: Dudu, o alarmista), e para o deslocamento da poesia nos dias de hoje.

Mas é também uma afirmação da poesia (e do humor) a qualquer momento, em especial do tipo muito peculiar de poesia que Verissimo nos oferece há cinco décadas, mesmo quando escreve em prosa, mesmo quando desenha, faz piadas para um roteiro de TV ou sopra o seu sax.

Para celebrar cinco décadas desse humor fino que, decantado em colunas de jornal, deu corpo a uma obra sólida e popular, convidamos o jornalista Paulo Werneck para repassar neste abecedário a enorme crônica da vida brasileira que é a obra de Verissimo.

Uma obra que espelha o país em cada linha e cada entrelinha, e nunca nos deixa sozinhos, sempre fazendo rir e pensar, quase sempre ao mesmo tempo. 


#VerissimoDeAaZ
O P Q R S 
 

Quais serão as probabilidades estatísticas de a mesma história ter dois orangotangos hipotéticos?

A pergunta enigmática surge no fio de Borges e os orangotangos eternos, um dos romances que Verissimo, mais uma vez por encomenda, escreveu. 

Escreveu? 

A pergunta se justifica. Neste que é seu trabalho mais experimental, digamos assim, Verissimo dialoga com Jorge Luis Borges, o orangotango argentino que escreveu uma das obras que definiram a literatura do século 20. 

No livro, Verissimo sai de seu habitual lugar de fala — a vida privada brasileira, a existência de classe média a que estamos todos condenados — para penetrar um universo hermético, esotérico, místico. 

Ali, um desses ruivos primatas conhecidos como Orangotangos Eternos seria capaz de escrever não apenas obras literárias inteiras, mas também toda a bibliografia de diferentes escolas filosóficas, inclusive antagônicas. 

O resultado é um livro tão divertido quanto intrigante, cabalístico, em que humor, literatura, investigação e, claro, a Cabala, se misturam. Alguns exemplos estão nas frases abaixo, sobre o significado da letra O: 

“O. A mãe das vogais. Símbolo de Deus. O que não tem começo nem fim.”

“Uma serpente comendo o próprio Rabo para sempre. Símbolo da Eternidade.”

“Sua origem é a palavra semita ayin, olho para os fenícios.”

Respondendo à pergunta inicial: sim, é estatisticamente possível encontrar dois orangotangos numa mesma história. 

Acontece que os orangotangos, ao contrário de Borges, Verissimo e dos diamantes, não são eternos. São cada vez mais raros, inclusive — desde 2000, quando o romance foi escrito, seu habitat natural diminuiu assustadoramente, em grande parte em razão da exploração de óleo de palma, usado na indústria alimentícia. Que a cabala os conserve.
 


 

É conhecida a posição política de Verissimo, que em seus escritos nunca deixou de mostrar de que lado esteve em cada momento da complicada história recente do país.

“Fica difícil entender como se paga e se dá espaço a alguém para dizer o que pensa de tudo, do sorvete de morango à vida eterna, mas não como vai votar, e por quê”, escreveu certa vez, ao defender o direito de cronistas declararem seu voto em seus espaços no jornal.

Mas nem por isso suas posições foram dogmáticas. Observador dos eventos que mudaram o rumo da história de nosso tempo, ele enxergou com clareza, no calor da hora, o significado mais profundo dos acontecimentos. Crítico do capitalismo, Verissimo jamais aderiu ao totalitarismo  de esquerda: assistiu à derrocada do mundo comunista e a registrou em suas crônicas desde o primeiro instante – mais precisamente, a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989.

“Não é preciso passar mais de algumas horas em Berlim oriental para sentir que a escassez não é apenas o sacrifício do supérfluo para distribuir o essencial. É fruto de uma mentalidade opressiva, que considera a expectativa individual uma heresia.”
 


 

Dizem os dicionários que o ouro é um metal dúctil, isto é, “que se pode estirar ou comprimir sem se romper ou quebrar; elástico, flexível, moldável”. O adjetivo se presta igualmente para classificar o humor de Luis Fernando Verissimo, um metal nobre que se adapta às diferentes formas da literatura, do roteiro de TV, do jornalismo e dos quadrinhos.

Verissimo é da geração de escritores brasileiros – como Millôr Fernandes, por exemplo – que ao mesmo tempo consumia a mais alta literatura e um tipo de leitura considerada subversiva: os quadrinhos. Embora até hoje haja quem queira condenar os quadrinhos, naquela época eles eram estigmatizados e até perseguidos publicamente. O político Carlos Lacerda, conhecido pelo implacável conservadorismo, chegou a afirmar que se o Brasil não proibisse os quadrinhos as gerações seguintes seriam “fornadas inteiras de cretinos”.

Lacerda estava errado, pois Verissimo e sua geração enxergaram a inteligência e o valor artístico dos quadrinhos e o incorporaram à sua produção “literária”, mais ou menos como faziam os poetas que desciam do pedestal das belas-letras para compor música popular.

Fã de Steinberg, o mestre húngaro-americano da linha e do cartum, mas também dos populares gibis de detetive americanos, Verissimo criou personagens marcantes nos quadrinhos brasileiros. Nascidas nos anos 70, com traço minimalista e ironia cortante, as tirinhas d’As Cobras estiveram por décadas entre os mais finos comentários políticos da imprensa brasileira.

Ed Mort, o detetive carioca que despacha num escritório cheio de baratas, nasceu nas páginas de livro mas ganhou corpo e popularidade no traço do cartunista Miguel Paiva. Chegaria às telas do cinema, interpretado por Paulo Betti. O Analista de Bagé também virou gibi pelas mãos de Edgar Vasquez. E a coluna de Verissimo nos jornais sempre teve seu desenho minimalista e mordaz como um complemento à crônica, em especial a Família Brasil, versão rabiscada das Comédias da Vida Privada que ganharam a forma de livro e de roteiros para a TV.
 


 

Mestre em diferentes gêneros literários, a crônica de jornal foi o espaço em que Verissimo mais exercitou sua arte. Talvez pelas exigências do ofício, que impõem disciplina, mas em troca entregam produtividade. “Minha musa inspiradora é o meu prazo de entrega”, escreveu ele certa vez.

Talvez por isso tenha feito uma estreia tardia no romance – e ainda por cima sob encomenda. Lançado em 1988, quando já era um autor consagrado, O jardim do diabo tornou-se um livro cult na obra de Verissimo, que se mostrou à vontade na narrativa de fôlego. Estrelada pelo detetive Macieira (e pelo vilão “o Grego”), a trama é ao mesmo tempo uma obra-prima do romance policial e uma sutil paródia do gênero. E uma inconfundível obra de Luis Fernando Verissimo.  

O autor pelo visto tomou gosto. Outros romances viriam, sempre por encomenda – circunstância que, assim como na crônica, jamais comprometeu o resultado: O clube dos anjos, Borges e os orangotangos eternos, O opositor e A décima segunda noite. A exceção ficaria por conta de Os espiões, de 2009: “Esse aí eu mesmo resolvi me encomendar”, disse ele.
 


 

“De certa maneira, o livro é melhor que o sexo. Você pode tomar o uísque antes, depois e durante. Livro é sempre com a luz acesa. Quando você termina com livro, ele não pergunta ‘foi bom?’. Livro nunca está com dor de cabeça.”

 

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