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José Agrippino de Paula em imagem do documentário Rito do Amor Selvagem
José Agrippino de Paula em imagem do documentário Rito do Amor Selvagem

O escritor, dramaturgo e cineasta José Agrippino de Paula, também conhecido como Bruxo do Embu, criou uma obra considerada experimental, repleta de fusões de linguagens e abastecida de influências pop e do movimento beat. O auge de seu protagonismo na vanguarda da contracultura brasileira se deu nos anos 1960 e 1970. No período, dialogou com o tropicalismo e encantou Caetano Veloso com sua inovação comportamental e linguística, ajudando a influenciar o movimento que se desenharia.

O compositor reverenciou Agrippino em mais de uma ocasião. No verso “PanAméricas de Áfricas utópicas”, de Sampa (1978), a citação é ao romance mais conhecido do escritor, PanAmérica (1967). No início do século 21, retoma a referência, ao escrever o prefácio para o relançamento da obra, descrita como “Ilíada na voz de Max Cavalera”, juntando o que parece inviável: o clássico grego de Homero à voz gutural de um vocalista de rock pesado.

O ator e diretor Sérgio Mamberti se emociona ao lembrar da convivência com Agrippino. A casa de Mamberti, localizada na Rua dos Ingleses, era um dos espaços de encontro de artistas de dentro e fora da capital paulista.

“Nosso trabalho tinha um caráter de vivência e transposição, uma relação entre arte e vida”, conta. “Certamente, ele está entre os grandes artistas do século passado, do ponto de vista não só de comportamento, mas de inovação da linguagem, contribuindo para entendermos melhor esse mistério que se chama Brasil”, afirmou Mamberti, que esteve no Cinesesc, em setembro, para o lançamento do documentário Rito do Amor Selvagem. Realizado pelo SescTV e produzido pela Armazém Mídia Arte, o filme tem direção de Lucila Meirelles, que é videoartista e curadora da obra audiovisual de Agrippino (leia o boxe Para ver).
 

Da prancheta ao tablado

Nascido em São Paulo em 1937, Agrippino entrou para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em meados da década de 1950. Era colega de classe do cenógrafo e artista Flávio Império. No entanto, a conclusão do curso se deu fora das redes paulistanas, na Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio de Janeiro, para onde se transferiu em 1959.

Lá também ocorreu o primeiro contato com a realização dramatúrgica. “Na Arquitetura do Rio tinha um Teatro de Arena. Consegui um dinheiro, cartaz, dirigi e montei Crime e Castigo, de Dostoiévski. Fiz o papel de Raskólnikov”, comentou sobre essa época o próprio Agrippino, em entrevista à cineasta Lucila Meirelles, registrada no vídeo Sinfonia Panamérica (realizado por ocasião da Mostra JAP, que ocorreu simultaneamente no Museu da Imagem e do Som e na Galeria Fotóptica, em São Paulo, no fim da década de 1980, em homenagem ao autor).

Anos depois, o escritor retornou a São Paulo, onde seu romance de estreia, Lugar Público (1965), foi lançado. Em 1967, veio à luz o marco PanAmérica (saiba mais sobre as obras no boxe Para ler). 
 

Teaser do documentário: Rito do Amor Selvagem


 

Parceria criativa

Nesse momento de efervescência, conheceu a bailarina Maria Esther Stockler, parceira de vida e de trabalho. Foram apresentados por um amigo em comum, o artista José Roberto Aguilar.

Juntos, escreveram e dirigiram filmes e espetáculos de teatro e dança. Entre eles, o impactante Rito do Amor Selvagem, de 1969.

A estrutura da peça inovou a dramaturgia brasileira, ao cadenciar teatro, dança e happening. Ponto extra para Agrippino, que foi capaz de revigorar a própria produção, uma vez que a montagem foi inspirada em outro texto seu, As Nações Unidas, obra que reúne música, dança moderna e história em quadrinhos (numa época em que as HQs não desfrutavam da popularidade atual) e caiu nas malhas da censura durante a ditadura militar.

No teatro São Pedro, onde Rito do Amor Selvagem  foi encenado, com a direção de Maria Esther e roteiro de Agrippino, não sobravam cadeiras vazias durante as apresentações. Nas palavras do autor, as pessoas ficaram excitadas com o acontecimento.

Essa configuração criativa foi exposta em minúcia audiovisual 50 anos depois, por meio de lembranças e impressões sobre o espetáculo, no documentário Rito do Amor Selvagem, da videoartista Lucila Meirelles. Nele vemos um registro da época, na qual a pop art norte-americana e a contracultura pairavam na cabeça dos artistas pelo mundo e no Brasil, dialogando com os símbolos e a cultura nacionais. “Conseguimos recriar, contar essa história que estava perdida”, afirma Lucila.

A diretora diz que a ideia partiu de uma conversa com o cineasta Jorge Bodanzky: “Ele me disse que filmou o Rito do Amor Selvagem, mas que os negativos haviam se perdido”. Sem pestanejar, ela revidou: “Vamos recuperar essa história!”. A trilha musical no documentário conta com 32 composições de autoria de Cid Campos, poeta e criador de projetos musicais interdisciplinares.

Bodanzky revela que Agrippino pedia que ele fizesse a filmagem, mas não se interessava em como o material seria trabalhado. A fascinação pelo autor o motivava: “Ele saía com o carro da Maria Esther e ia pegando as pessoas. Era um happening que ele criava na hora, mas tinha uma lógica dentro da lógica dele, que entendemos, pois é presente na literatura dele”.

Esse caráter inovador, ousado, com grande espaço para a improvisação é reiterado por Caetano Veloso, no livro Verdade Tropical (1997): “A simples presença de Zé Agrippino representava como que um aprofundamento das ideias mais audaciosas”.
 


Acima, imagem do documentário Rito do Amor Selvagem
 

Vamos rodar por aí

O filme Hitler Terceiro Mundo teve sua concepção entre os anos de 1968 e 69, tensionados pelo endurecimento do regime militar, com a promulgação do Ato Institucional nº 5. No elenco, Ruth Escobar, Jô Soares e Eugênio Kusnet. É o único filme em 35 mm de Agrippino e foi realizado em parceria com o Sonda, grupo teatral coordenado por ele e Maria Esther. O tema da crise de identidade em momentos de repressão política, abordado por Agrippino, e o ambiente de transgressão em que o casal estava inserido contribuíram para ambos entrassem na mira da polícia. No início dos anos 1970, deixaram o país rumo à África. Acompanhados por uma câmera Super-8, fizeram curtas documentais, enquanto o autor se dedicava à escrita.

Ao retornarem, em meados da década, depois de um curto período em São Paulo, foram morar na Bahia. Em 1980, Agrippino recebeu o diagnóstico de esquizofrenia.
 

Vida reclusa, mas nem tanto

Pouco depois, foi morar em Embu das Artes, município da região metropolitana localizado a 25 quilômetros de São Paulo, onde permaneceu até a morte, ocorrida em 2007, em decorrência de um infarto. A vida reclusa não implicou paralisia criativa ou completo isolamento. Continuou a escrever em cadernos que, somados, ultrapassam 170.

Em 2001, conversou com jornalistas sobre o festejado relançamento de PanAmérica. Pôde ver a retomada do interesse por sua obra. Seu livro de estreia também voltou às prateleiras, assim como outros textos seus.

Outra faceta sua que ganhou atenção foi a dos filmes, com a exibição de Hitler Terceiro Mundo na mostra Cinema Marginal e Suas Fronteiras, no Centro Cultural Banco do Brasil. Para completar, o Itaú Cultural sediou uma mostra mais lado B, incluindo o material audiovisual feito pelo casal na África, organizado por Lucila Meirelles. Em 2011, ocorre o lançamento do CD/DVD Exu 7 Encruzilhadas, pelo Selo Sesc, disco contendo dez músicas inéditas de Agrippino, encontradas pelo cineasta Hermano Penna, e um DVD com dois filmes realizados na África, em Super-8, Candomblé no Togo e Candomblé no Dahomey, além de duas entrevistas inéditas, um pôster e depoimentos de personalidades como Caetano Veloso, Jô Soares, Arnaldo Antunes, Mario Prata e Hermano Penna.

Ainda pouco conhecida por novas gerações, mas com um território amplo a desbravar, a obra de Agrippino mantém o frescor e o ímpeto libertário que a impulsionaram quando veio a público.

 

Para ler

MERGULHE NAS PRINCIPAIS OBRAS DO BRUXO DO EMBU

Lugar Público (1965)

 Trouxe o universo da contracultura para o Brasil. Foi reconhecido em seu lançamento, mas permaneceu longo tempo sem atenção, que foi retomada com o relançamento, em 2004, pela editora Papagaio. A capa é do artista plástico Antonio Peticov, reprodução da capa original de Eugênio Hirsch, e traz o texto de apresentação do jornalista Carlos Heitor Cony. 
 

PanAmérica (1967)

 Um clássico nada acomodado da literatura brasileira. Sem pausas ou parágrafos, é uma colagem literária que reúne artistas, esportistas, políticos, cantores, como Marilyn Monroe, Marlon Brando, John Wayne, Cassius Clay, Frank Sinatra, Che Guevara, Martin Luther King, na filmagem grandiosa e fantástica de uma versão da Bíblia Sagrada em Hollywood. A primeira edição trazia na capa a ilustração do artista paraibano Antônio Dias. A edição mais recente é de 2001 (Editora Papagaio).
 

As Nações Unidas (1968)

 Texto teatral que incorpora a mídia de massa do final dos anos 1960 – época em que foi escrito –, com quadrinhos, pintura e cinema. Imagina o encontro de personalidades que vão de Pato Donald a Napoleão Bonaparte e Getúlio Vargas. O autor definia o espetáculo como uma “grande feira do povo”. O texto, que durante muitos anos circulou em cópia mimeografada, foi lançado pela Papagaio neste ano.
 

Para ver

PROGRAMAÇÃO ABORDA DIFERENTES FACETAS DO AUTOR


Foto: Augusto Calçada
 

José Agrippino de Paula está na programação do SescTV neste mês. O documentário Rito do Amor Selvagem (foto), dirigido por Lucila Meirelles (2019), está disponível on demand. A obra faz um registro de lembranças e impressões sobre o espetáculo homônimo 50 anos depois de sua estreia e traz depoimentos dos atores Sérgio Mamberti e Stênio Garcia, dos cineastas Jorge Bodansky e Hermano Penna e do músico Tom Zé.

Nos intervalos dos programas do canal também rola uma conversa, ou melhor, um Lero Lero Agrippínico. São 13 pílulas da videoartista Lucila Meirelles, com trechos inéditos de uma entrevista realizada por Sofia Carvalhosa em 1979 recentemente encontrada em uma fita K-7. Nessas pequenas joias estão comentários de diferentes vertentes: Consumo Brasileiro e a Decadência; Transcender o Cotidiano; e Autonomia da Comunidade. O áudio é ilustrado com imagens em vídeo gravadas na cidade de Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo, onde Agrippino foi morar em 1980. Outro destaque do acervo do SescTV neste mês, o programa O Mundo da Literatura: José Agrippino de Paula – Lugar Reservado traz uma entrevista em que ele fala sobre sua produção literária. Confira a programação completa e assista em sesctv.org.br.

 

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