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"Quando um corpo negro se movimenta, ele recoreografa toda sua existência no mundo"

Cena do espetáculo Corredeira, que faz parte do projeto (Foto: Divulgação)
Cena do espetáculo Corredeira, que faz parte do projeto (Foto: Divulgação)

No mês da Consciência Negra, o Sesc Bom Retiro apresenta uma seleção de criações em dança que atravessam a experiência de ser uma pessoa negra no Brasil de hoje. É o projeto As Semanas que Dançam - Corpos negros: diálogos diaspóricos, que, de 1 a 30/11, recebe espetáculos, bate-papo e oficinas sobre dança contemporânea.

O projeto, que convida o público a refletir sobre maneiras possíveis de se testemunhar a dança, conta com a co-curadoria do performer e mediador cultural Flip Couto.

A ideia, segundo Flip, é propor um pensamento de expansão, ritualização e descolonização da cena, a partir da pluralidade de corpos dançantes e do cruzamento entre raça, gênero e sexualidades. A Eonline conversou com o artista sobre a programação do especial e a reverberação dos corpos negros em movimento pelo mundo.

Eonline - A arte em geral sempre serviu como ferramenta de luta. Como isso funciona no caso do movimento negro? Qual a importância de coreografar a resistência através da dança?

Flip Couto - A dança, a música, o vestuário, a teatralidade, a religiosidade e até a culinária são linguagens artísticas usadas por povos negros de diferentes territórios e em diferentes tempos como forma de celebração, comunicação e fortalecimento comunitário.

Quando um corpo negro se movimenta, ele recoreógrafa toda sua existência no mundo criando (re)conexões e (re)conhecimentos em busca de se apropriar de cada parte de seu corpo e de sua própria história ancestral.

Eonline - Existe um estigma muito forte que limita a dança de matriz africana como aquela ligada aos orixás, ao toque do tambor. A sua curadoria questiona essa realidade e propõe novas narrativas do corpo negro na daça. Qual panorama você quis revelar com a escolha dos espetáculos? 

Flip Couto - O olhar que a sociedade lança para o corpo negro é repleto de estigmas e preconceitos enraizados no racismo. O pensamento hegemônico presente no circuito da dança tende a definir como a dança negra deve se mostrar no palco, muitas vezes limitando essa dança a uma dança folclórica ou de entretenimento. Mas a diversidade das danças africanas e da diáspora é enorme e plural, carregando em si diferentes identidades, experiências e intelectualidades.

Nesta curadoria, eu busquei traçar panorama de trabalhos que unem ancestralidade e contemporaneidade a partir do pensamento do tempo espiralar, alinhando passado, presente e futuro.

São trabalhos criados a partir de utopias de quem veio antes que nós e que está gerando utopias futuras de como é ser um corpo negro no mundo, trazendo, para além da identidade etnica/racial, discussões de gênero e sexualidade que muitas vezes são invisibilizadas.

Fotos: Brício Photography 

Eonline - De quem são os corpos negros que vão se apresentar no Sesc Bom Retiro? Pode fazer um breve panorama sobre as companhias e artistas que estão no projeto?

Flip Couto - Partindo do desejo e da necessidade de gerar aproximações, fricções e diálogos entre diversas produções no circuito de dança — suas vivências, metodologias de criação e referências. São apresentados ao público trabalhos de novos criadores como Filhos(as) da Porra Toda, do Coletivo Calcâneos, que busca transpor as dores da periferia delimitadas aos corpos que compõem os altos índices de preconceitos e vulnerabilidade social.

Tem o Esquina, do Fragmento Urbano, que traz homens pretos periféricos à cena para discutir masculinidades gerando dança e música; E o Porque, Zé?, da companhia baiana Experimentando Nus, que pesquisa o movimento do quadril problematizando o preconceito em torno do funk, arrocha e pagode baiano; e também trabalhos solos de Djalma Moura, com Depoimentos pra fissurar a pele, que pensa a relação entre cena e ritual presente em terreiros de candomblé e umbanda e Kanzelumuka com Corredeira, que pesquisa a relação do poder ancestral ligado às águas no corpo feminino.

A dança se apresenta em diferentes formatos e plataformas para além dos espetáculos. Intervenções, batalhas e jams contemplam as diferentes estéticas da dança negra como a dança afro-contemporânea da Cia. de dança Afrooyá, que pesquisa movimentação de matrizes africanas; o Vogue da “House of Zion”, dança que surge nos bailes organizados pela comunidade LGBTQIA+ negra e latina no Harlem pela urgência de acolhimentos; o Dancehall da Academia Dancehall, elemento da cultura Jamaicana criada nas periferias de Kingston; o Locking, criado durante a era Soul Funk dos anos 70 nas festas de Los Angeles, e difundido em São Paulo pelo encontro Sou Locker.

Entre as ações formativas, haverá uma mesa de abertura da programação sobre as subjetividades do corpo negro na cena com Gal Martins, Félix Pimenta e Deise de Brito; workshops de Locking com a dançarina Afro-canadense "Tash" e de Vogue com o projeto Vogue for Life de Luna Akira dando visibilidade para artistas trans.

 

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SOBRE FLIP COUTO
Dançarino, performer e mediador cultural, Flip Couto iniciou seus estudos em dança em 1999 a partir do contato com a Cultura Hip Hop, realizando colaborações com artistas de diferentes linguagens, transitando entre a artes urbanas, cênicas e contemporâneas. Tendo a arte relacional como forte característica de seus trabalhos, o artista negro, bixa e abertamente soropositivo, lança um olhar para a contemporaneidade, criando espaços de sociabilização a partir do encontro de corpos, suas identidades, subjetividades e coreografias sociais presentes no cotidiano das cidades. É idealizador do Coletivo Amem, grupo de artistas, produtoras e intelectuais negras LGBTQIA+, que promove eventos, performances e debates sobre sexualidade, raça, gênero e saúde; interprete criador na Cia. Sansacroma, companhia de dança contemporânea negra sediada no Capão Redondo e membro da House of Zion, grupo que realiza performances, bailes e atividades artístico-pedagógicas na comunidade Ballroom.