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"A piscina é um centro de sociabilidade"

Foto: Dani Sandrini
Foto: Dani Sandrini

Para José Magnani, professor titular da USP, as práticas de lazer podem ser interpretadas e reconfiguradas a partir do ponto de vista de seus usuários

texto: Gabriel Vituri

Certamente você conhece alguém que adora frequentar uma piscina, mas que não ousa mergulhar nem sequer os pés na água. Deitadas em cadeiras espalhadas nas bordas ou batendo papo sob um guarda-sol, essas pessoas chegam e saem com seus trajes de banho intactos. Para muitos, isso pode soar estranho, afinal, piscina é água, e água, para se molhar. Mas para o antropólogo e professor titular da Universidade de São Paulo (USP) José Guilherme Cantor Magnani, não há nada estranho em usufruir desse espaço dessa maneira. É tudo questão de perspectiva. “A piscina, na verdade, é um centro de sociabilidade. Ela tem esse lado simbólico importante, de estar no centro de um espaço de convivência”, afirma o pesquisador.

Responsável por coordenar o relatório “Cultura e Lazer: práticas de lazer e físico-esportivas dos frequentadores do Sesc em São Paulo”, publicado em 2015, José Magnani demonstra que a ideia de lazer suscita várias interpretações distintas, podendo ser reconfigurada por aqueles que usufruem das atividades. No estudo, o professor e uma equipe de pesquisadores percorreram diferentes unidades da instituição para observar, a partir do método etnográfico, a forma que os usuários escolhiam aproveitar os espaços oferecidos pelo Sesc.

Na entrevista a seguir, o antropólogo explica por que as piscinas são mais que um espaço de práticas aquáticas.

Como o senhor definiria a discussão sobre a temática do lazer e como as pessoas se relacionam com esse debate?

O lazer, de maneira geral, é visto formalmente como um direito social, há até documentos comprovando isso, mas, partindo de um olhar mais analítico, do meu ponto de vista da antropologia, o lazer é mais amplo. O lazer pode ser considerado do ponto de vista do Direito; da possibilidade de exercê-lo no chamado tempo livre; junto a instituições que oferecem atividades de lazer; e também do mercado.

Qual foi a abordagem que vocês como pesquisadores procuraram no relatório “Cultura e Lazer: práticas de lazer e físico-esportivas dos frequentadores do Sesc em São Paulo”?

Primeiramente, valorizamos que o Sesc é uma das poucas instituições em que o lazer não é só tema de pesquisa, como foi, mas é também uma instituição que oferece práticas de lazer. Num segundo momento, a ideia era ver o comportamento dos frequentadores: se o Sesc como instituição oferece práticas, os frequentadores também têm sua visão do que é lazer, então toda a pesquisa buscou mostrar de que maneira os frequentadores, na sua inventividade, usam o lazer do seu ponto de vista. É aí que entra a perspectiva mais etnográfica da antropologia: se de um lado a gente reconhece todo o leque de alternativas que a instituição oferece, do ponto de vista dos frequentadores a ideia de lazer pode ser bem mais ampla.

De que forma isso foi demonstrado no estudo?

Vou te dar um exemplo: a ideia da soneca, que aparece no relatório. Para quem oferece práticas de lazer, ver alguém dormindo no sofá pode ser uma coisa estranha, “tanta coisa pra fazer e ele vem dormir”, mas para o frequentador aquilo pode ser um bom lugar de acolhimento pra ele descansar. Então, aí começam a aparecer essas sutilezas da análise. Eu até tenho um termo para isso, chamo de contra-usos do lazer, que são as formas que agentes sociais escolhem para utilizar [a estrutura de lazer] do seu ponto de vista.

Esse é um pouco o quadro geral, a ideia pode ser analisada desde muitos pontos de vista, e acho que é isso que constitui a riqueza desse tema, saindo um pouco da caixinha do que o mercado prega. A minha brincadeira é a seguinte: alguns têm uma ideia muito clara do que seja o lazer, por exemplo as imobiliárias quando oferecem um condomínio dizendo que ali tem “lazer completo”. Eles têm absoluta certeza do que é lazer, e nós colocamos isso em discussão, é um ponto de vista da Academia, e mais especificamente no meu caso, da Antropologia Urbana.

O lazer, como vocês apontam na pesquisa, também dá trabalho.

A ideia de senso comum sobre o lazer é de que ele é espontâneo. Tem um lado interessante: não fazer nada, por exemplo, é uma forma de lazer. Em uma entrevista que fizemos para o relatório, perguntamos a uma entrevistada o que ela ia fazer no Sesc, e ela respondeu: “Venho fazer nada. Vim fazer um monte de nada”.

Para o funcionário do Sesc, que oferece tantas coisas de lazer, isso pode parecer estranho. No entanto, é um contra-uso do lazer. Não fazer nada em um lugar que permite isso com acolhimento é uma forma de lazer. Agora, a ideia de que o lazer dá trabalho é porque ele não é simplesmente algo da espontaneidade apenas. Do ponto de vista de quem é um profissional do lazer, aquilo é um investimento. O lazer dos outros dá trabalho para quem oferece. Também, às vezes a gente produzir um lazer, por exemplo, o skatista que decide curtir a atividade como lazer, tem que se equipar, ter seu instrumento, decidir em que horário vai andar, e isso não deixa de ser lazer.

Isso vai bem além do senso comum que define lazer como algo quase romântico.

Sim, na verdade, no senso comum a ideia de lazer tem várias conotações. Ela se opõe a trabalho, por exemplo, e é uma coisa que estou contestando, porque de repente você pode juntar o trabalho com o lazer. Uma pessoa que está sentindo prazer no que tá fazendo naquele momento, de certa maneira está fruindo. Tem um gancho que utilizei no livro “Lazer de Perto e de Dentro: Uma Abordagem Antropológica” (Edições Sesc, 2018), que traz essas várias formas como os meus alunos estão estudando o lazer nas suas práticas. Eu começo assim: um escritor foi convidado por um amigo para ir a um sítio para terminar seu livro. Ele senta na varanda, deita na rede, e começa a retomar os personagens que estava fazendo, os capítulos, quando passa o caseiro e diz, “descansando, hein, professor”, ao que ele responde, “não, trabalhando”. Depois de um tempo, ele consegue reestruturar alguns capítulos, levanta da rede, dá uma volta, vê uma horta e uma enxada e começa a capinar, quando o caseiro passa e diz, “trabalhando, hein, professor”, e ele diz, “não, descansando”. Então, dependendo da perspectiva com que a gente olha, o trabalho pode ser lazer, e o lazer pode ser trabalho. Isso complica um pouco, mas amplia o quadro.

Como as rápidas transformações que as cidades atravessam podem modificar as formas de usufruir de atividades de lazer?

Por exemplo, você tem a questão das redes sociais: como as coisas acontecem de forma muito acelerada, já tive vários exemplos de alunos que estão assistindo a uma aula, que certamente não é um lazer, mas que estão usando o celular para acessar o YouTube ao mesmo tempo. Num primeiro momento, o professor mais convencional diria que é preciso prestar atenção o tempo todo na aula, mas há uma nova perspectiva sendo incorporada, em que é possível fazer duas coisas ao mesmo tempo. Você tem, então, a alternância entre o lazer e uma coisa de não-lazer, como a aula, que pode ser também observada no ambiente de trabalho, e passa de um lugar para o outro sem solução de continuidade.

Não existe uma separação antiga, em que se trabalha a tal horário, e depois vai pra casa e descansa no fim de semana. Você pode trabalhar no fim de semana, assim como na hora do trabalho é possível haver momentos de fruição. As relações de trabalho atuais, e a forma acelerada da vida cotidiana, permitem essas passagens rápidas. Não dá mais pra classificar de uma forma muito dicotômica. Na cidade, mesmo que você esteja trabalhando, indo de um lugar para outro, andando pelo centro, na caminhada é possível usufruir de uma vista, de uma conversa, de uma troca, então há a possibilidade. Acho interessante essa alternância, depende muito da agência do ator social, ele não fica preso à oferta do mercado do lazer. E de repente fica tão mais amplo que ele pode acabar não precisando de mais equipamento nenhum, e sim dos elementos que ele próprio tem. É uma coisa perspectivista.

Falando mais especificamente das piscinas, a que o senhor atribui o fascínio da população por espaços e atividades aquáticas?

Isso nos chamou atenção em três lugares da pesquisa: em Itaquera, com aquele parque aquático tão importante; no Belenzinho; e em Presidente Prudente. A unidade de Itaquera fica na periferia, e oferece um serviço de alta qualidade a uma população que não tem acesso a piscinas em suas casas, ou acesso fácil para ir passar férias na praia, então não é só a questão de nadar, é a sociabilidade: as pessoas se encontram, se observam, paqueram, há a possibilidade de a criança brincar de um jeito e o adulto de outro. Na antropologia a gente poderia chamar isso de “fato social total”. Não é simplesmente o contato da água com o corpo, é todo esse conjunto, a roupa, o corpo, o olhar, tudo isso faz com que o lazer na piscina seja amplo, e diverso, na verdade.

Em Itaquera, uma das coisas que nos chamou a atenção foi a centralidade da piscina, os tobogãs, as regras todas, isso causa um fascínio mesmo, é bem interessante. No caso de Presidente Prudente, o Sesc recebeu essa piscina de águas térmicas, que estão mais ligadas à questão da saúde: muitos idosos e crianças vão usufruir. Para além da questão do prazer e do lazer, há a questão curativa também. Não faz bem pro corpo só na parte física, de exercícios: nesse caso a temperatura da água também funciona como elemento de atração pelo fato de ser curativa.

Cada vez mais, é possível observar um aumento de piscinas privadas, onde há uma circulação de pessoas bem menor do que nas piscinas coletivas.

Em geral são piscinas que estão em condomínios, prédios, e também as individuais, mais da elite, em suas casas. Mas mesmo nesses casos são de uso coletivo em termos familiares, dentro de um ciclo de convivência da pessoa. Normalmente não é para uso individual. Como lazer, mesmo numa casa de família, a piscina é lugar de convivência, com familiares, colegas, que se reúnem para curtir algo em torno da piscina, não necessariamente pra entrar na água, mas para conversar, debater, ter formas de sociabilidade. A piscina, na verdade, é um centro de sociabilidade. As pessoas até entram na água, mas às vezes você vê uma piscina enorme e todo mundo está em volta, nas cadeiras, tomando sol, conversando, mas não necessariamente dentro da água. Isso é interessante. Ela tem esse lado simbólico importante, de estar no centro de um espaço de convivência, tanto em casas particulares como nos clubes e outras instituições.

E no caso das piscinas coletivas, que tipo de desafios existem?

Quando a piscina é mais coletiva, aí tem a convivência de quem não se conhece. Eu trabalho com a ideia do “pedaço” e da “mancha”. No pedaço, todo mundo se conhece, ninguém é estranho, não há sobressalto. Mas numa piscina grande, como a de Itaquera, por exemplo, consideramos que há uma mancha, gente de vários lugares diferentes, de várias regiões, de classes sociais distintas, e isso implica em regras de convivência. As regras são dadas pela instituição, mas também são inventadas pelos frequentadores.

A piscina é um bom lugar para constituir regras: tem algumas dadas oficialmente, como o exame médico, o traje de banho apropriado, onde pode ir a criança, o adulto, tudo isso é regulado pela instituição, mas a convivência também é regulada pelas pessoas. Se a gente fizesse uma pesquisa de longa duração, poderia ser bem curioso ver como são criadas as regras e “contrarregras” para burlar uma regra oficial, que usuários podem considerar coercitiva. Há aí um ambiente interessantíssimo para ver como a piscina favorece um ambiente de sociabilidade. Acho que esse campo é muito rico, e o Sesc é um lugar legal pra esse tipo de análise.

Como as instituições que oferecem um centro de lazer com piscinas devem lidar para promover um aproveitamento amistoso desses espaços?

São espaços comuns. Todo espaço coletivo exige um tipo de convivência que é dado de forma institucional, porque normalmente não são as pessoas que decidem a forma de utilizar. Isso sai um pouco dos gostos pessoais, porque, como tem um núcleo grande de frequentadores, é preciso consenso. É o que eu chamo de “regra mínima”, caso contrário a convivência fica impossível. Para além das regras mínimas, como ao mesmo tempo as pessoas em torno dela estabelecem suas regras? Uma pesquisa antropológica poderia fazer isso, comparando, por exemplo, condomínios, clubes, casas, pra ver como são constituídas as regras para usufruir desse equipamento tão específico que é a água. Que tipo de atitude corporal, que tipo de roupa, o que pode comer, a música que é levada. Isso exigiria uma bela pesquisa, uma etnografia, pra gente entender como se forma um aprendizado, e uma postura socioeducativa precisa estar aberta para a modificação, senão seria muito impositivo. É preciso acompanhar as mudanças: certamente uma piscina da década de 1940 tinha um uso muito diferente do uso de hoje.