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Distâncias

Ilustração: Werner Schulz
Ilustração: Werner Schulz

Eu sempre sabia quando ela chegava, não porque ela tivesse horários fixos, mas pelo barulho dos sapatos. Os saltos dos sapatos eram um latejar lento e contínuo a percorrer degraus, lances de escada, a escada que se estendia em estreitas curvas pelo interior do prédio. Enquanto isso, sentado à mesa da cozinha, eu esperava, os passos que se aproximavam, o momento exato para abrir a porta, quando o ruído se espalhasse, quando a sua presença do outro lado. Abrir a porta e encará-la, somente alguns instantes, depois pedir-lhe que entrasse, que sentasse ali comigo, um café, um copo d’água, me falasse qualquer coisa sobre o tempo, ou sobre o dia, ou sobre a hora, ou então pedir-lhe

que entrasse, que entrasse e simplesmente ficasse ali, sem dizer nada, nós dois em silêncio olhando pela janela, lá fora, o vento e a paisagem e o barulho das árvores, em câmera lenta, nós dois como diante de um filme, ou de um aquário. Mas os passos se aproximavam e voltavam a se distanciar, o meu olho encaixado no olho-mágico, minha mão envolvendo a maçaneta da porta que eu nunca chegava a abrir.

Naquela época eu raramente pensava nela. Naquela época os meus pensamentos enroscavam-se nas horas feito algas ou

feito espirais.

Um dia ela se mudou para o outro lado da cidade. No mesmo instante, o outro lado da cidade distendendo-se, afastando-se,

até tornar-se o lugar mais improvável, o lugar mais distante. No início eu ainda ouvia seus passos nos passos de cada um que chegava, no início ainda havia a porta e a janela e o aquário. Depois os ruídos cada vez mais leves, depois cada vez mais suaves, até que um dia desapareceram, os dias atrás da porta, o café, o copo d’água, e eu me acostumei a não mais esperá-la chegar.

Eu raramente pensava nela. Durante um ano. Naquele ano eu pensei em outras coisas, naquele ano tudo continuou igual.

Talvez houvesse se passado muito mais tempo até que um dia nos encontramos por acaso. Cumprimentei-a com um aceno escondido, reservado, talvez esperando que ela não me visse, não me reconhecesse, talvez que ela fosse embora, preocupada, correndo, imaginando ter esquecido qualquer coisa no forno, na geladeira, no varal. Ela se aproximou, me viu, me reconheceu, mas algo havia mudado, olhei-a com atenção, os olhos, o nariz, a boca, o cabelo, mas o que eu notava eram seus sapatos, seus sapatos que agora não tinham salto, os passos que agora eram leves, como se o chão inteiro fosse de borracha. Ela se aproximou como se nunca houvesse ido embora, eu sorri como se todo aquele tempo a houvesse estado esperando. Ela disse que tanto tempo, eu respondi que por aí. Ela disse que de vez em quando, eu respondi que talvez, que sempre, que sim.

Passamos a nos encontrar, talvez uma, duas vezes. Eu ligava como que por acaso, ela inventava desculpas para atender, eu esquecia o número do prédio num caderno antigo, ela perdia as chaves entre as almofadas do sofá. Ela nunca estava pronta, eu tocava a campainha, ela, a sua voz ampliada pelo interfone, que a rua, que o vento, que o dia, que a hora, eu colava o interfone ao ouvido, ela não dizia nada, ela descia as escadas correndo, eu nunca desligava. Pelas ruas, caminhávamos feito dois desconhecidos, surpresos, desconcertados, sem saber o que dizer. Tropeçávamos nas calçadas, trocávamos os nossos nomes, pedíamos água e café sem açúcar nos terraços dos cafés.

Ela me oferecia balas de gengibre, eu lhe oferecia tabaco sem filtro que ela nunca aceitava. Eu fumava e ela parecia sumir por trás da fumaça. Eu gostava quando ela quase desaparecia e o seu rosto tornava-se difuso e inquieto. E era como se ela sorrisse.

E passavam-se horas enquanto o tempo passava. E dormíamos juntos na mesma cidade. E nunca nos tocávamos. E desviávamos o olhar. E nunca nos despedíamos.

E nossas mãos se perdiam

nas esquinas, entre os postes, entre a multidão.

Ela me escrevia cartas que nunca mandava.

Eu inventava promessas que nunca fazia.

Ela marcava encontros em lugares inexistentes.

Eu confundia os nomes de ruas conhecidas.

Eu ia embora todas as tardes. Ela nunca voltava.

E durante o caminho, nos meus passos, na calçada, havia sempre uma mesma rotina, um mesmo itinerário.

 

Carola Saavedra é autora dos romances Toda Terça (2007); Flores Azuis (2008) – eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte e finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti –, Paisagem com Dromedário (2010) – Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor e, finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti) – e Com Armas Sonolentas (2018) – finalista do Prêmio São Paulo. Todos publicados pela Companhia das Letras.