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Carta a D. História de um amor

Foto: divulgação
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Texto: Fernanda Fava

 

Parece simbólico que o último livro de André Gorz, Carta a D. História de um Amor, tenha alcançado mais visibilidade após a morte do seu autor, em 2007, quando se suicidou com a esposa, Dorine Keir, que sofria de uma doença degenerativa incurável. Lançado um ano antes, ele diz muito mais sobre como viveram o filósofo austro-francês e sua companheira do que sobre como morreram.

Na carta-livro, escrita para Dorine, ele reconhece a importância da esposa em sua vida e obra. Relembra a sua presença ativa em diversos episódios que marcaram sua trajetória e se questiona por que essa participação está ausente de seus escritos. E, quando presente, não é fiel ao significado que ela adquiria em sua vida. “Eu não estava longe de considerar o amor um sentimento pequeno-burguês. Eu ‘falava de você num tom de desculpa, como se falasse de uma fraqueza’”, ele admite. Para, ao final, reconhecer: “Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher.”

Por isso, é também uma ode ao amor, no que ele tem de construção diária, compartilhamento e cumplicidade, vivido com compromisso nos 58 anos em que o casal viveu junto. “A paixão amorosa é um modo de entrar em ressonância com o outro, corpo e alma, e somente com ele ou ela. Estamos aquém e além da filosofia.”

Gorz foi jornalista, escritor, filósofo e economista. Teve valiosas contribuições aos estudos sobre trabalho e formas de opressão na sociedade, e o seu pensamento acompanhou as transformações ao longo do tempo neste campo do saber. Foi grande referência do marxismo existencialista e um dos precursores da ecologia política. Integrou a comissão editorial e foi colaborador da revista ajudou a fundar o jornal e foi uma das vozes mais importantes do Maio de 68 francês. Seu pensamento tem influências de interlocutores como Jean-Paul Sartre, Karl Marx e Ivan Illich. Escreveu obras como eEm ., ele se volta para a sua subjetividade, na qual o André Gorz filósofo se reencontra com o homem comum em sua relação com a passagem do tempo e com os afetos de uma vida, na qual a convivência íntima a dois se entrelaça com os traços biográficos da figura pública. Ou, indo mais além, um diálogo sobre a alteridade que habita em nós, na qual o “eu” e o “outro” não têm fronteiras tão demarcadas. “Você me dava acesso a uma dimensão de alteridade suplementar – a mim, que sempre rejeitei toda identidade e juntei uma identidade na outra, sem que nenhuma fosse realmente minha.” Por conta de tudo isto, Gorz encontra o universal dentro do singular. E constrói uma narrativa em cumplicidade com o leitor, com quem compartilha momentos de graça, ternura e dor.

Quando escreveu a carta a Dorine, Gorz acabara de completar 83 anos. “Eu havia chegado à idade em que a gente se pergunta o que fez da própria vida, o que queria ter feito dela”, ele explicava. “Você se desenvolvia em todas as suas dimensões. Estava firme em sua vida, enquanto eu sempre me apressara a passar à tarefa seguinte, como se a nossa vida só fosse começar mais tarde.”

Sentindo a urgência do presente, precisou revisitar o seu passado com novos olhares, e adotou como fio condutor sua relação com a esposa. “Lembro de ter escrito a E. que, no final das con tas, só uma coisa me era realmente essencial: estar com você. Eu não posso me imaginar escrevendo se você não mais existir.”

A reflexão nos inspira, frente ao mistério da existência e do seu fim, a olhar com mais atenção e mais consciência para a nossa relação com os outros – e com o outro em nós mesmos –, a fim de protagonizarmos a gestão dos nossos afetos e das nossas emoções. Lado a lado com nossas experiências sensoriais e intuitivas, talvez seja o que nos funda como indivíduos.

“Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos.”

A memória é uma construção e adquire esta capacidade de dar sentido à existência quando organizada em sua autonarrativa. E a velhice, para muitos, talvez seja essa fase que propicia rever a dimensão dos nossos afetos e das nossas experiências na construção da nossa identidade.

Como muitas mulheres de sua época, Dorine era essa figura forte e convicta, com opiniões próprias e formação ímpar, que exerceu enorme influência naquilo que o marido iria se tornar, mas cujo nome ficou esquecido pela história. Assim como Gorz no final de sua vida, talvez o mundo como um todo ainda careça de conferir o devido reconhecimento às “dorines” que tiveram trabalhos invisíveis de grande contribuição em seus campos de atuação.

A Dorine de  plantou a semente de grandes reflexões para Gorz em sua relação com as teorias e o conhecimento. “Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade”, escreveria o filósofo,  reconhecendo que as interações com a companheira o incentivavam a jogar novos olhares sobre suas convicções. “Você não precisava das ciências cognitivas para saber que, sem intuições ou afetos, não há inteligência, nem sentido.”

Este pensamento trouxe um aporte valioso a obras como, por exemplo, com a diferenciação entre conhecimento e os saberes vivos e vividos, um capital humano que não é passível de ser apropriado pela lógica da apropriação capitalista. Era uma das respostas de Gorz a esta “complexidade movediça da realidade”, experimentada na prática e perscrutada até o final da sua vida.

Seremos o que fizermos juntos.

Gorz relembraria, em ., este comentário que ouviu de Dorine, enquanto ele se objetava ao casamento. Quase 60 anos depois, a atitude de acabar com o sofrimento da esposa, terminando com a própria existência na sequência, deixou muitas pessoas perplexas, para as quais seu ato derradeiro não aparentava condizer com o pensamento de uma vida inteira.

Em tempos em que o tratamento midiático sobre o suicídio deve se cercar de muito cuidado – e certamente com razão –, talvez devamos nos esforçar por olhar para a morte de André Gorz e Dorine Keir sem a capa de julgamento moral que normalmente acompanha esses casos. “Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passa-la juntos.”

Talvez, seja preferível entendê-lo como um ato de coragem e de amor e concordar, citando o pesquisador Ricardo Luiz Sapia de Campos, que sua morte encerra um ciclo de existência ética e “consegue plantar uma semente (de afeto e inteligência), contrariando instituições – a ética contra a moral”.