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O Barão de Itararé

 


Mendes André e Sergio Papi, do Projeto Barão /
Foto: Célia Thomé

Gênio irreverente de Aparício Torelly renasce em projeto editorial

RODRIGO ARCO E FLEXA

Considerado um dos mais importantes nomes da imprensa nacional de humor, o jornalista gaúcho Aparício Torelly (1895-1971) ganhou notoriedade escrevendo sob o pseudônimo de Barão de Itararé. Durante as décadas de 30, 40 e 50, ele protagonizou alguns dos melhores momentos da sátira e do humor da imprensa brasileira. Com suas longas barbas, jeito amalucado e língua tão ferina quanto certeira, era capaz de pôr o Brasil a nu. "Seu estilo escrachado e moleque, marcado pela crítica política, transformou-o em um ídolo popular de sua época, um verdadeiro gênio do humor", conta o cartunista Jaguar, um dos criadores do célebre semanário "O Pasquim", jornal que foi bastante influenciado pelo Barão de Itararé.

Aparício Torelly foi autor de crônicas, contos e máximas que ironizaram a política e os costumes dos anos da República Velha, de Getúlio Vargas e do início do governo de Juscelino Kubitschek, a maioria publicada no jornal "A Manha", fundado por ele em 1926, e ainda em outros veículos da época. A figura do Barão de Itararé foi criada pelo jornalista em meio aos acontecimentos da Revolução de 1930. Entre tantas, são suas algumas frases antológicas – que de diferentes maneiras foram incorporadas e recriadas pela linguagem nacional – como "Estado Novo é o estado a que chegamos", "há mais coisas no ar do que os aviões de carreira", "triste não é mudar de idéias, triste é não ter idéias para mudar" e "negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados".

Uma coletânea dos textos de Torelly volta agora, enfim, às livrarias brasileiras, na forma de um almanaque, ou, mais precisamente, de um "almanhaque". Trata-se do impagável Almanhaque para 1949 do Barão de Itararé (Edusp, em colaboração com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e o Studioma).

Projeto Barão

O Almanhaque para 1949 é o primeiro dos três almanhaques lançados por Torelly, numa paródia aos almanaques de variedades que faziam sucesso na época. A publicação traz uma seleção de textos escritos pelo Barão de Itararé em "A Manha" (daí o nome "almanhaque"), além de trabalhos gráficos do cartunista paraguaio Andrés Guevara, um dos mais importantes do período na América Latina, a quem os amigos se referiam, ironicamente, como "o único paraguaio que venceu no Brasil".

O relançamento do livro é fruto do Projeto Barão, uma iniciativa de dois pesquisadores paulistas, José Mendes André e Sergio Papi, que desde o final dos anos 80 lutam pela divulgação da obra de Aparício Torelly.

Atualmente, o projeto tem o apoio da USP e prevê novas edições para os outros dois almanhaques, além da publicação de antologias de sua obra, no formato de livros de arte. O empreendimento abrange ainda a recuperação e organização de um amplo acervo de documentos e de textos escritos por ele. A coleção foi reunida pelos pesquisadores com contribuições de familiares do jornalista e de entusiastas pela obra do Barão, como o cartunista Fortuna, e doada ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

"A idéia é criar um banco de dados digital sobre o Barão de Itararé. O material será referência para diferentes pesquisas sobre a importância cultural e histórica do seu trabalho, que está imbricado na vida nacional", diz Mendes André. Parte do acervo poderá ser acessado pelo site www.baraodeitarare.com.br, endereço já registrado mas ainda sem data prevista para começar a funcionar.

PCB e Getúlio

O Projeto Barão começou quando os pesquisadores, em 1988, tiveram em mãos, pela primeira vez, um dos almanhaques de Torelly. Mendes André se lembrava do Barão como um personagem de histórias e piadas contadas por seus pais, "especialmente sobre Getúlio Vargas e o Partido Comunista Brasileiro", diz ele. Essa imagem, no entanto, tomou outra dimensão quando leu o almanhaque. "Descobrimos a figura de um publisher contestador que havia dado certo, um espírito crítico com licença de bobo da corte, aquele que podia dizer a verdade ao rei, rindo", afirma.

Surgiu então a idéia de publicar aquele material. Com o apoio de amigos, em 1989 Sergio Papi e Mendes André lançaram a primeira reedição do Almanhaque para 1955 – 1º Semestre. Em 1991, já com o selo editorial Studioma, criado por eles, e uma parceria com a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, foi lançada a primeira reedição do Almanhaque para 1949. A iniciativa aproximou os responsáveis pelo Projeto Barão de outros admiradores da obra de Torelly, entre eles os cartunistas Fortuna e Jaguar.

Desde os anos 50, Fortuna alimentava a idéia de lançar uma compilação de edições de "A Manha". Em parceria com Jaguar, a proposta foi levada adiante, e o material ficou pronto em 1968, bem às vésperas da decretação do AI-5, ato institucional que acirrou a perseguição política do governo militar. "Desistimos então do lançamento, pois Torelly poderia ser preso", conta Jaguar. "Aquilo me deixou muito deprimido." Em meio ao tumulto daqueles dias, o cartunista lembra que acabou esquecendo os originais do livro num táxi, numa madrugada carioca.

Posteriormente, o projeto foi retomado por Fortuna, que ganhou uma coleção de "A Manha" e fez uma outra compilação dos textos de Torelly, terminada pouco antes da morte do cartunista, em 1994. "Pretendemos lançar esse material pelo Projeto Barão", diz Sergio Papi.

As reedições dos almanhaques do Barão, em 1991 e 1995, tiveram pequenas tiragens, que se esgotaram em pouco tempo, em movimentados eventos e exposições dedicados ao jornalista. Embora a aceitação do material tenha sido grande, não havia recursos, na época, para maiores tiragens e novas edições.

Criador e criatura

Aparício Torelly era o próprio Barão de Itararé em seu cotidiano, fazendo da sua vida um ato de paródia e ironia da realidade, mesmo nos momentos mais difíceis. "Ele propositadamente fazia com que se confundissem a pessoa e o personagem, história e ficção", diz Sergio Papi.

O jornalista foi amigo, entre outras personalidades, de Luís Carlos Prestes, Samuel Wainer, Cândido Portinari, Assis Chateaubriand e Carlos Drummond de Andrade. Preso durante o governo Getúlio Vargas, foi companheiro de cela do escritor Graciliano Ramos, além de outros intelectuais perseguidos pelo regime, como Nise da Silveira, Hermes Lima e Eneida de Morais. O episódio acabou por transformar o Barão em personagem do livro Memórias do Cárcere, no qual Graciliano narra seu período na prisão.

O próprio presidente Getúlio Vargas, motivo de muitas sátiras, era leitor constante do Barão de Itararé. "Ele gostava de ler ‘A Manha’ e ria muito", diz o jornalista e escritor Joel Silveira, lembrando que isso não impediu que Torelly fosse censurado e se tornasse vítima de agressões políticas.

No começo dos anos 30, alguns artigos seus desagradaram a oficiais da marinha. O resultado foi uma surra em Torelly, em plena Avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro. Mesmo machucado, ele não perdeu o humor nem a pose. É o que conta Joel Silveira, que o conheceu pessoalmente. "Ao voltar para o escritório, ele tratou logo de pendurar uma plaqueta de aviso na porta: ‘Entre sem me bater’."

Interrogatório na Guanabara

O jornalista Moacyr Werneck de Castro também se lembra de um episódio marcante. Trata-se do interrogatório que o humorista sofreu quando levado a um navio-prisão aportado na baía de Guanabara. A cena abaixo está descrita no livro As Duas Vidas de Aparício Torelly, o Barão de Itararé (Editora Record), de Cláudio Figueiredo.

Torelly foi interrogado pelo juiz do Tribunal Especial que investigava as motivações dos opositores ao regime. Ao ser questionado "se faria parte do movimento", respondeu sem titubear: "Sim". O juiz insistiu: "Pode dar mais detalhes?" E o humorista emendou: "Bem, eu participo do movimento e o senhor também participa. Afinal, tudo é movimento".

O Barão exibiu então seus conhecimentos de física, demonstrando que a cadeira em que estava sentado, a mesa do juiz e o próprio ar que respiravam nada mais eram do que uma infinidade de átomos e moléculas em permanente movimento. O juiz, irritado com as brincadeiras e as risadas na sala, repreendeu-o severamente: "O senhor está aqui para depor". E a resposta veio rápido: "Quem, o governo? Não tenho elementos para isso".

Marco nacional

"Aparício Torelly sintetiza uma série de características do humor da chamada Belle Époque nacional, o período da virada do século 19 para o 20", diz Elias Thomé Saliba, professor de história da USP e autor do livro Raízes do Riso (Editora Companhia das Letras). "De forma notável, ele reúne em seu trabalho elementos de diferentes humoristas de gerações anteriores, como a concisão, o poema-piada, a paródia e o texto macarrônico, aquele que mistura, anarquicamente, diversos tipos de fala", afirma o historiador.

A habilidade verbal de Torelly é destacada pelo jornalista Jorge Leão Teixeira, que também conviveu com o Barão de Itararé. "Ele era um mestre em dizer tudo com graça e ironia", afirma. "Muitas das frases que criou e divulgou entraram para o folclore político nacional e para nossa tradição verbal, sendo até atribuídas a outras pessoas, ou mesmo aproveitadas por oportunistas", diz o jornalista.

Outras de suas frases famosas são "Quem empresta, adeus", "Esse mundo é redondo, mas está ficando chato" e "Anistia é um ato pelo qual o governo resolve perdoar generosamente as injustiças e crimes que ele mesmo cometeu".

Para o cartunista e jornalista Jal (José Alberto Lovetro), "o humor corrosivo do Barão era uma espécie de charge escrita, de grande poder contestador".

Não faltam nomes de prestígio da inteligência nacional que reconheceram no Barão de Itararé uma das maiores expressões do humor no Brasil. "O que foi feito antes terá sido preparatório do advento de Torelly, e o que se seguiu busca a altura que ele atingiu", afirmou o filólogo e dicionarista Antônio Houaiss (1915-99) em seu prefácio para o livro As Duas Vidas de Aparício Torelly, o Barão de Itararé.

"Sua influência é bastante clara no jornalismo impresso de humor, em nomes como Luis Fernando Verissimo, Millôr Fernandes e José Simão", diz Elias Thomé Saliba. A opinião é reforçada por Mendes André: "Todo humorista contemporâneo brasileiro bebeu nessa fonte. De Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, à turma do Casseta & Planeta. O cartunista Fortuna reconhecia nele um predecessor, e Jaguar, pela boca do ratinho Sig, o chamou de bisavô do ’Pasquim’".

É verdade que essa não é uma opinião unânime entre os que fizeram "O Pasquim". O cartunista Ziraldo não vê no Barão de Itararé uma de suas influências. "Gostava mais dos cartuns de Guevara [parceiro de Torelly na elaboração dos almanhaques]." Mesmo assim, não deixa de reconhecer a importância da figura do Barão. "Seu trabalho é um marco no humor brasileiro", diz Ziraldo, que comanda atualmente o semanário "O Pasquim 21".

Autodidata e poliglota

O riso imediato provocado pela leitura dos textos do Barão não significa linguagem pouco elaborada. Pelo contrário, seu humor nasceu de uma sólida (e crítica) visão de mundo. Poliglota, leitor do dramaturgo Bernard Shaw, apaixonado pelas ciências, "ele foi o típico autodidata do início do século passado", diz Mendes André.

Em certos aspectos, pode-se dizer que ele antecipou propostas de linguagem que somente surgiriam anos depois, observa o pesquisador. Esse é o caso dos trabalhos realizados pelo Barão junto com Andrés Guevara, a partir do final da década de 1940. "Essa parceria fez das publicações um autêntico laboratório de experimentos gráficos", conta Sergio Papi.

De acordo com o pesquisador, a dupla antecipou formas de edição de texto e imagem que se assemelham ao que seria feito, posteriormente, não apenas no Brasil, mas em países do Primeiro Mundo. "Há elementos gráficos dos almanhaques que trabalham linguagens que depois seriam desenvolvidas em publicações como a revista ‘MAD’, de humor e quadrinhos."

O próprio comportamento de Torelly era algo além de seu tempo. "Com sua longa barba grisalha, de terno, sem gravata e calçando conga, vegetariano (um gaúcho vegetariano), antecipou, de alguma maneira, o movimento hippie", diz Mendes André.

Diligência e medicina

A postura fora da ordem de Aparício Torelly remonta ao seu próprio nascimento, em 29 de janeiro de 1895. "Sou natural de uma estrada gaúcha", contou o jornalista, ao descrever como nasceu em meio a uma viagem no Rio Grande do Sul. "Viajava com minha mãe numa diligência quando uma roda teve o aro quebrado. Com todo aquele barulho, nada mais natural que eu me apressasse a sair para ver o que se passava." O pai descendia de italianos. A mãe era uruguaia. O avô, norte-americano; e a avó, índia charrua. "Sou uma espécie de Liga das Nações", definia-se o Barão.

Torelly estudou num ginásio de jesuítas, em São Leopoldo (RS), onde lançou sua primeira publicação, o jornal clandestino e "subversivo" "Capim Seco", no qual comparou o reitor da escola à serpente bíblica. Chegou a estudar medicina em Porto Alegre, e era um entusiasta da pesquisa científica, mesmo não tendo concluído o curso, interrompido no quarto ano. Nem a austeridade dos estudos médicos, no entanto, foi capaz de inibir sua personalidade. Durante uma avaliação oral, um professor mostrou-lhe um fêmur, questionando-o a seguir: "Conhece esse osso?" Torelly então se curvou e cerimoniosamente estendeu a mão, apertando o fêmur: "Muito prazer em conhecê-lo!"

De duque a barão

Aos 21 anos, publicou seu primeiro trabalho, o livro de poesias Pontas de Cigarro. A boa recepção a essa iniciativa literária acabou por levá-lo ao Rio de Janeiro, em 1925. Na então capital federal, conseguiu emprego em "O Globo". Depois, trabalhou no jornal "A Manhã", dirigido por Mário Rodrigues, pai do jornalista Nelson Rodrigues. Em 1926, satirizando "A Manhã", resolveu fundar seu próprio veículo impresso: "‘A Manha’, um órgão de ataques... de risos". O tom da publicação também estava claro em seu expediente: "Não temos expediente, jornal sério não usa de expedientes". Nessa primeira fase, o jornal era totalmente produzido por Torelly.

Foi com o advento do governo Vargas que Aparício Torelly se transformou no Barão de Itararé. A eclosão da Revolução de 1930 animou o jornalista, que viu ali a possibilidade de grandes mudanças no país. A expectativa, no entanto, logo deu lugar à decepção e, com ela, à ironia. Indignado com a pressa com que os revolucionários abandonaram seus ideais para obter bons cargos públicos, ele se sentiu traído.

Resolveu então se tornar um nobre. Primeiramente, "fez-se duque". O gesto de autoconceder um título de nobreza (status que ainda despertava muita cobiça naquele tempo) foi, na realidade, um grande ato de modéstia. Subvertendo a hierarquia, o auto-intitulado duque rebaixou-se, logo depois, à "mera" condição de barão.

E foi por meio da figura do Barão de Itararé que Aparício Torelly consagrou-se nacionalmente. Os percalços provocados pela perseguição do regime de Getúlio Vargas, no entanto, interromperam muitas vezes a circulação de "A Manha". Somente com a redemocratização do país, em 1945, foi possível retomar a publicação do jornal, agora com novos colaboradores, como o escritor Rubem Braga, José Lins do Rego e Raimundo Magalhães Júnior.

Filiado ao Partido Comunista Brasileiro, ele foi eleito vereador no Rio de Janeiro, em 1946, e integrou a campanha de Yeddo Fiuza à presidência pelo PCB, cujo slogan era: "Mais água, mais leite, mas menos água no leite". Posteriormente, seu mandato foi cassado com a supressão do registro do PCB.

Como as dificuldades financeiras não cessaram, Torelly, em parceria com o cartunista Andrés Guevara, lançou, em 1949, o primeiro dos almanhaques do Barão de Itararé. O sucesso da edição acabou levando a um reaparecimento de "A Manha", em 1950, editada desta vez em São Paulo. Embora seu humor fosse tipicamente carioca, "assumiu-se" então como paulista, "um paulista de 400 dias", brincava. O jornal, no entanto, parou de circular dois anos depois, em 1952.

Após lançar, em 1955, outros dois almanhaques, Torelly resolveu viajar pelo mundo, e foi conhecer a China e as antigas Tchecoslováquia e União Soviética. Passou recluso os últimos anos, quando se dedicou a pesquisas científicas, além de conceder raras entrevistas. Morreu em 27 de novembro de 1971, no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Se estivesse vivo, com certeza, teria muito o que dizer sobre o Brasil de hoje. "A diferença é que, agora, ele escreveria não um almanaque, mas uma enciclopédia", diz Jorge Leão Teixeira.