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A noite dançante dos paulistanos

Desde às 22h30, a fila dobrava o quarteirão e os já carros congestionavam a rua José Baleeiro, bem em frente ao Mistura Fina, tradicional casa de samba e pagode no bairro de Santana. Na porta do local, dois adolescentes tentavam convencer o eficiente porteiro Luizão que já eram "de maior". "Pô, mano. Olha aqui. Tá dizendo no documento", implorava Denilson. A prova da independência estava estampada em uma xerocópia amassada, antiga e desbotada de uma carteira de identidade que poderia tanto ser dele mesmo, como do presidente Fernando Henrique, dependendo da boa vontade.

O segundo, resignado, tentava convencer o amigo de que não iriam conseguir entrar e que já estava ficando tarde e que não agüentava mais esperar. Mas Denilson, perseverante, não abandonou a empreitada e, depois de muita conversa mole, conseguiu chegar até o gerente. Passados mais alguns minutos de renitente insistência, mesmo com a cara deslavada de menino, venceu a batalha e adentrou imponente no templo do samba.

Ao observar a cena, Luizão abanou a cabeça com brandura. "É. Não tem jeito. Eles sempre conseguem." Com a experiência de três anos organizando a fila de entrada, evitando tumultos, arrefecendo os ânimos mais efervescentes e contendo os pileques excessivos, Luizão desenvolveu um faro apurado para reconhecer, de cara, quem cumpre o requisito etário para freqüentar a casa. "Em 95% das vezes eu acerto. Alguns são muito descarados. Trazem documentos de amigos ou xerox apagados e, depois, vêm com 'mosca branca' para entrar." Mosca branca? "É. Grupo, 171, plá. Entende?" Claro. Essas gírias todas significam que as pessoas tentam enganá-lo, ludibriá-lo, certo? "Isso. Mas aqui, com o Luizão, o Bom, fica difícil."

Porém, mesmo com a vigilância atenta do porteiro, o Mistura Fina recebe lotação máxima às sextas e aos sábados, quando os entusiastas do samba e pagode dançam sem parar até às cinco da manhã. A casa, bem próxima à estação de metrô de Santana, tem companhia de outras discotecas que tocam o ritmo brasileiro. A avenida Cruzeiro do Sul forma, de fato, um verdadeiro corredor dançante que reúne milhares de pessoas em busca de diversão.

No bairro, pórtico da Zona Norte, concentram-se principalmente os sambistas, mas, por toda a cidade, há vários centros nervosos que oferecem, constritos em poucos quarteirões, uma infinidade de casas noturnas que abrem suas pistas para gostos, pessoas e finanças variados, provando que a noite musical de São Paulo vai bem além dos Jardins.

Viva Madalena

Cada região da cidade tem sua preferência particular. A Vila Madalena, bairro da Zona Oeste, há alguns anos já vem ostentando o título de Rei da Boemia. As ruas estreitas e essencialmente residenciais foram invadidas por bares e boates que se reproduzem sem parar. A cada semana, invariavelmente, surge um novo 'agito', atraindo gente de todos os tipos.

Das mais tradicionais às mais recentes, as casas noturnas não param um dia sequer. De segunda à segunda, a Vila Madalena oferece uma miscelânea que agrada desde os mais comedidos, que se contentam com um lugar calmo e tranqüilo, até os homéricos irrequietos, que não sossegam enquanto não encontram um reduto agitado.

Para o frêmito desse segundo padrão de notívagos, foi inaugurado há um ano o Dolores & Dolores, um bar com ares de sala de estar. A comparação aparentemente indevida deve-se à presença de sofás e cadeiras espalhados pelo ambiente. Esquivando-se do mobiliário inusitado, o público (bem original, aliás) sacode o esqueleto ao som de "black music de qualidade", na definição do gerente da casa, o famoso Roge. O preço acessível cobrado na entrada estimula pessoas de todas as classes sociais a 'agitarem' o Dolores. Às vésperas do primeiro aniversário, a casa vive lotada, principalmente às quartas-feiras, o dia mais "negreiro", como diz Roge.

Lá, é impossível ouvir-se pagode e funk brasileiro, representado pela dupla do momento, Claudinho & Buchecha. Da lavra do DJ Paulinho Brown, os timbres americanos deleitam o público eclético. O sucesso repentino, segundo o gerente, é decorrência da carência de black music no bairro. "Nós viemos preencher uma lacuna. Aqui, apesar de darmos preferências aos ritmos negros, acolhemos todas as pessoas. Sem preconceito", garante Tuca.

O habituê e atendente da Embratel, Maurício De La Cruz, endossa a opinião do gerente. Freqüentador assíduo, prefere as noites de quarta. Acostumado a acompanhar o som negro pelas boates de S. Paulo há mais de 10 anos, encontrou no Dolores o lugar ideal. "Conheço a maioria das pessoas que vêm aqui há muito tempo. Nós seguimos a black music para onde quer que ela vá. Há muitos anos, costumava ir no Palmeiras, depois no Aeroanta e, agora, a música que eu gosto, ou seja, o som das antigas, toca bem aqui", dizia, aos berros, para competir com o volume imposto pelo DJ.

Outro fator que agrada Maurício é a presença de "vários públicos". "Não importa se a pessoa é branca ou negra, no Dolores não há preconceito. Cada um fica na sua e não há confusão. Aqui, 'nobody moves, nobody gets hurt' (ninguém se mexe, ninguém se machuca)."

Perdão, não entendi...

"Pois é. Quem fica na 'tetéia' se diverte e não arruma confusão."

Hein?

"Eu quis dizer que, no Dolores, as pessoas ficam 'na boa'. Respeitam-se mutuamente e o clima é muito legal."

Ah...

É de Salsa e de Forró...

Com muito custo a conversa chegou ao fim e Maurício continuou curtindo o som da black music. Entre um rodopio e outro, deparou-se com Helen Pedroso e, sem perder tempo, pespegou um animado bate-papo. A menina, no entanto, não demonstrou muito entusiasmo com a abordagem. A conversa prolongou-se por alguns minutos, até que Helen, em um movimento insidioso, mas extremamente polido, desvencilhou-se do pretendente. Ainda sob o efeito do esforço felino, falou. "Adoro a música que eles tocam e você encontra muita gente interessante. Os preços são bons e tem muita gente alternativa." Sobre a cortesia impertinente recém-aplicada, emitiu um longo muxoxo: "Você sabe, à noite a libido sempre aumenta um pouquinho."

Saindo do Dolores e descendo a rua Cardeal Arco Verde até as proximidades da Igreja de Monte Serrat, no Largo de Pinheiros, o ávido pé-de-valsa pode desfilar seus conhecimentos regionais ao som tradicional dos discípulos de Luiz Gonzaga. É que a região, devido à maciça presença de migrantes nordestinos, conta com inúmeras casas de forró. No começo eram bem populares, como o Asa Branca, um dos maiores de São Paulo, além de pequenos inferninhos, quase clandestinos, esparramados pelo coração do bairro.

Em um certo momento, e ninguém sabe dizer exatamente por que, o ritmo intimamente ligado à gente do Nordeste caiu no gosto da classe média. Aproveitando a infra-estrutura logística do bairro, foi inaugurada, há quase cinco anos, uma casa diferente, o Projeto Equilíbrio. Utilizando as dependências de uma quadra esportiva, o espaço dedicado à zabumba, ao triângulo e à sanfona atraiu um público formado por estudantes que passou a ser denominado de "forró universitário". A febre foi crescendo e o Projeto não comportava mais todos os entusiastas.

Assim, para acomodar os excluídos do forró pioneiro, rechaçados devido à absoluta falta de espaço, o casal Ednei e Gleice Santos resolveu adaptar uma modesta pizzaria de bairro em um amplo salão de dança que passou a recolher o excesso do contingente à procura de guarida. Hoje, o Remelexo, situado na esquina das ruas Paes Leme e Ferreira de Araújo, é a coqueluche do "lustra fivelas" em São Paulo.

Os proprietários dedicam o sucesso do forró universitário ao fim do preconceito que a classe média nutria pelo ritmo migrante. "A presença dos salões mais populares assustava um pouco as pessoas. A maioria dizia que forró é coisa de peão. Mas, atualmente, mesmo com a existência de muitas casas freqüentadas por nordestinos, a vergonha acabou e os estudantes lotam o Remelexo de quarta a sábado", comemora o casal.

Deixando a animação do forró, ainda no bairro de Pinheiros, está situada uma das casas noturnas mais badaladas e tradicionais da cidade, que festeja onze anos de vida. O Avenida Club possui uma amplíssima pista de dança, com capacidade para mil dançarinos, onde gente de todas as idades e estilos esbanja muita elegância municiada pelo som que varia de acordo com o dia da semana.

Logo na entrada da casa, dândis de todas as classes sociais se aboletam em trajes finos. Algumas mulheres chegam de vestido longo e há cavalheiros desfilando ternos completos.

A indumentária caprichada, entretanto, perde um pouco do vinco depois de algumas horas sob o efeito da salsa esfusiante embalada pelo grupo Heartbreakers, que domina o palco do Avenida todas as quartas-feiras.

O dentista Beto Campos, 35 anos, além das atividades no consultório, ensina dança de salão em academias particulares. Fã incondicional dos Heartbreakers, ele teve uma agradável surpresa em uma quarta-feira atípica, quando o Avenida Bar recebeu a deliciosa visita de um grupo folclórico cubano, que abençoou os presentes com o mais puro suingue caribenho. "Foi demais!", entusiasmava-se, de passagem, um grupo que debutava na casa.

Extasiado pela performance cubana, Beto exibia os dotes artísticos e, até as duas da manhã, não parou de dançar por um minuto sequer. "Venho aqui há uns três anos", diz. "E posso garantir: se não tivesse namorada, seria um excelente lugar para paqueras."

Música Tecno no Templo do Samba

Ninguém discute. Sair para dançar é, realmente, um dos programas favoritos do paulistano. Mesmo nos dias úteis, quando o batente atormenta logo cedo, os notívagos não debandam das ruas. Há, inclusive, bares concorridíssimos, que lotam até nas malfadadas segundas-feiras. Dois exemplos: o Brancaleone, na Vila Madalena, recolhe os descolados e o Sandália de Prata, uma popular gafieira, espairece porteiros e zeladores que fizeram plantão no fim de semana.

Mas, é a partir de quarta-feira que a noite da cidade começa a borbulhar. As quintas-feiras abrem caminho para a sexta, que chega em ebulição já no fim da tarde, nos festivos happy hours, arautos do fim de semana que acaba de começar.

É assim em Pinheiros, Vila Madalena, Tatuapé. Enfim, a noite esquenta em todos os bairros que abrem as portas para receber os dançarinos. Na fila da estreante Number One Industry, na avenida Zaki Narki, em Santana, os freqüentadores ratificam essa tese. Com a fachada espelhada e decoração prosaica que ora imita galeras egípcias, ora um bangalô japonês, a peculiar boate apresenta uma alternativa à predominância do samba na região. O staff veste-se com as roupas típicas dos países que caracterizam a casa e, a comida, servida nos quatro restaurantes que ladeiam a pista de dança, acompanha o tema da casa. De sushi à esfiha, passando por um caprichado nhoque, o público pode repor as energias, antes de torrá-las na pista. O som é variado. Toca desde dance music até pagode, depende da preferência do público.

As adolescentes e amigas inseparáveis Giselly, Glaucia e Michele, todas com 15 anos, estavam em polvorosa, apesar do atento desvelo adulto que não lhes despregava os olhos. Afinal, comemoravam em grande estilo o aniversário de Giselly.

Todas muito bem arrumadas, chegaram à Number One, em torno das 23h, quando a pista de dança ainda estava vazia. "Vim aqui para dançar muito", bradava a espevitada Michele, sem se importar com a possível reprimenda da mãe da amiga, que, no frigir dos ovos, não demonstrava a menor preocupação. "Ihh, eu nem ligo. Deixo as meninas em paz", amenizava a paciente senhora.

Cientes da boa vontade materna, as garotas deliravam. "Olha, se rolar um menino, não vai escapar", informava às colegas a sempre alerta Michelle. "Ai, menina, deixa disso. Eu só vim aqui curtir um som. Até porque meu namorado está aí do lado", murmurava a aniversariante, enquanto apontava, de soslaio, o companheiro.

A expectativa das amigas crescia à medida que o DJ alternava o som. "Esse aí não presta", reclamava Gláucia, ouvindo uma dance music. "Queremos ouvir um jungle ou um reaggeizinho", ratificava Michelle.

Jungle, para os incultos, é uma espécie de tecno. Mas... E tecno, o que é? "É música eletrônica. Feita especialmente para dançar. É mais ou menos assim: 'Ta, ts, ts, ta, ts, ts ta', explica Gláucia, balançando freneticamente a cabeça.

A Noite Esquenta na Zona Leste

"É mano, na ZL, o bicho pega", alertou o garçom, enquanto luzia o balcão da padaria que recebia animados transeuntes a caminho da Toco. O recado do balconista não pretendia advertir sobre os potenciais perigos da noite paulistana. Pelo contrário. Referia-se à calorosa jornada à espera de quem se aventura na enorme discoteca, matrona de todas as outras e a mais antiga da cidade, há 25 anos animando a Vila Matilde.

É fácil compreender por que o 'bicho pega' na Toco. São 3000 pessoas que dançam e pulam acompanhando as estrepolias dos DJs, que tocam "aquilo que a 'massa' curte". Ao se observar a pista, de um posto estratégico no patamar superior, tem-se a impressão de que a 'massa' gosta de tudo. Em blocos compactos, o público se move em um compasso simultâneo, subindo e descendo como um corpo único, não importa a música acionada.

Embaixo, fica difícil transitar entre as pessoas que, hipnotizadas pelo retinido constante dos potentes alto-falantes, respondem ao apelo, dançando em um frenesi estusiasmante.

"Uuuuh. Aqui é demais. Tem muita gente bonita", exalta a morena Laysa. Ela e mais três irmãs frequentam religiosamente a Toco aos sábados. "Somos em onze lá em casa. Fazemos um revezamento. Todos adoram vir aqui."

A maioria dos freqüentadores chega de metrô, o que facilita muito o trânsito no local. Dentro do formigueiro, as 'tribos' se encontram, mas raramente se misturam. Os rótulos são múltiplos. As irmãs, por exemplo: "Nos vestimos como 'patricinhas', mas posso dizer que nosso perfil é 'doideira'", resume Rosania.

Ao primeiro contato, o vocábulo pode assustar. O Aurélio não o reconhece, mas de modo algum denota a patologia tratada nos hospícios. Possui um significado inofensivo, esclarecido às gargalhadas por Roseny, outra das irmãs: "É quase um estilo de vida. Significa que gostamos de curtir. Essa é a filosofia."

O estilo 'doideira' de ser está presente na mixórdia de vestuário. As roupas fazem um espetáculo à parte. O sucesso masculino absoluto, entretanto, está na calça larga, camisa de manga comprida e cabelo raspado, além, é claro, do acessório indispensável, o boné. As meninas são mais ecléticas, vão da calça à saia, passando pelo vestido. O uniforme, se não tem padrão definido no corte das roupas, traduz-se na cor preta, constante em quase todas as peças.

No fim da madrugada, quando o som termina, o mar de gente escoa até o metrô. A primeira composição está para sair, mas, antes do regresso à cama restauradora, a fome aperta. Nas redondezas, os bares já descerraram as portas e o estômago ruge por comida. Eis que, em meio à aridez, surge o bálsamo. Por míseros R$ 1,50, o salvador Bigode monta um cachorro-quente completo e com duas salsichas. "Faço o melhor hot dog da região", anuncia, enquanto incrementa, com catchup, uma das suas criações.

Mas não é só na Toco que os moradores da Zona Leste chacoalham o esqueleto. Um pouco mais próxima do centro, junto a uma das principais vias que servem a região, está o Projeto Radial. No coração do Tatuapé, a danceteria seduz principalmente o público negro, maioria entre os freqüentadores.

Da cabina dos DJs saem os acordes que embalam a multidão. Um dos regentes do som, o aclamado Piu Piu, ensina que para a festa não desanimar é preciso agradar todas as dileções. "Aqui a gente tem de tocar o 'bate-cabeça', o 'samba' e o 'poperô'." Traduzindo: "O primeiro ritmo é uma espécie de rock que eles dançam sacudindo a cabeça; samba... Bem, o samba é samba." Já para entender o que é 'poperô' é preciso fazer uma digressão complexa. A palavra é uma corruptela de pump it up, trecho de uma musica tecno de sucesso que batizou para o português da ZL a música eletrônica.

Acompanha essa salada sonora, o êxtase máximo da noite. De repente, sem mais nem menos, abre-se um clarão em meio à multidão. E, aproveitando esse espaço repentino, os mais arrojados arriscam coreografias ousadíssimas no melhor estilo Michael Jackson, quando estava no auge. Cada dançarino incrementa a exibição anterior, composta de acrobacias, saltos mortais e cambalhotas. O happening dura alguns minutos, o buraco, então, é engolido pelas pessoas, para, depois, reaparecer em outra parte do salão.

A música, as roupas e muitas expressões usadas em inglês transparecem a enorme influência da cultura norte-americana. Percorrendo, não sem enorme dificuldade, o Projeto Radial, é possível observar uma outra característica importada dos Estados Unidos: a ausência de cabelos nos homens. A moda de raspar a cabeça, instituída pelos astros do basquete americano, caiu nas graças dos jovens freqüentadores da casa. Nenhum deles esconde os motivos da lustrosa careca. "Corto assim por causa do Michael Jordan", explica o primeiranista de Direito, Ricardo Villas Boas, de 20 anos.

Concorrendo com a invasão ianque, que não se restringe apenas à ZL, mas se alastra pela imensa maioria das casas noturnas da cidade, a originalidade dos notívagos colore de verde-amarelo a noite paulistana. Quem sai às ruas para dançar encontra diversão certa, não importa o gosto ou a amplitude do bolso. E, mesmo aos avessos às pistas, de cintura dura ou com bolhas no pé, o programa é garantido apenas por oferecer a chance de se deliciar com personagens exclusivos, exóticos ou ortodoxos, que balançam e encantam a paulicéia incandescente.