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Branquitude e privilégios

Por Lia Vainer Schucman*

Quando que raça foi um problema para você? Se esta é uma pergunta difícil de responder é porque provavelmente você é branco. O oposto disto é quando, diante desta pergunta, há tantas experiências para narrar, que é impossível pensar em uma só resposta – e aí, é porque provavelmente você no Brasil é classificado como negro ou indígena. Diante desta assimetria de experiências relacionadas as racialidades dos sujeitos, podemos dizer que os brancos vêm sendo poupados da responsabilidade de pensar e agir contra o racismo de nossa sociedade.

Contudo, o branco não é apenas favorecido nessa estrutura racializada, mas é também produtor ativo dela, por meio dos mecanismos mais diretos de discriminação e pela produção de um discurso que propaga a democracia racial e o ideal de embranquecimento. Esses mecanismos de produção de desigualdades raciais foram construídos de tal forma que asseguraram aos brancos a ocupação de posições mais altas na hierarquia social, sem que isso fosse encarado como privilégio de raça. Isso porque a crença na democracia racial e no mérito permite que o ideal liberal de igualdade de oportunidades seja apregoado como se fosse realidade. Desse modo, a ideologia racial oficial brasileira produz um senso de alívio entre os brancos, que podem se isentar de qualquer responsabilidade pelos problemas sociais dos negros e indígenas ao mesmo tempo que acreditam que suas posições dentro da estrutura social foram alcançadas por esforço individual, alimentando assim, como narcisismo grupal, um sentimento de superioridade racial. É como se relações raciais fossem apenas questão de/para negro. Contudo, raça é relacional: só existem negros e índigenas como categorias raciais em relação ao branco. Portanto, é sobre esta super visibilidade racial dada ao negro e o lugar de norma racial dado ao branco que se trata o conceito de Branquitude.

Na sociedade brasileira, os estereótipos construídos em torno de uma ideia imaginária de raça fazem com que atributos e significados positivos ligados à identidade racial branca – como inteligência, beleza, educação, progresso – sejam apropriados pelos sujeitos brancos. Desta forma,  o ideal estético da branquitude é supervalorizado em relação às identidades raciais não brancas, o que acaba por tornar a ideia de superioridade um traço constitutivo (primordial) da branquitude.

O argumento de que a branquitude foi construída sócio-historicamente como uma posição racial de superioridade – construção sustentada pela ideia falaciosa de hierarquia racial – é tese unificadora de diferentes teóricos dos estudos de branquitude. Neste sentido, é importante frisar que não necessariamente os sujeitos brancos se sentem superiores aos não brancos, trata-se de uma crítica direcionada à significação da branquitude como o lugar racial da superioridade. Assim, os brancos obtêm privilégios simbólicos em razão dessa pertença, mesmo que involuntariamente.

Sob esse enfoque, a ideia de privilégio é essencial para a compreensão da branquitude. Contudo, os privilégios muitas vezes não são percebidos pelos sujeitos que os obtêm, pois as sociedades que foram colonizadas são em sua maioria sociedades eurocentradas que condicionam a constituição de uma determinada perspectiva sobre o mundo, mantendo uma visão única sobre as formas de viver e ser no mundo baseada centralmente nos padrões culturais brancos  que dificulta aos sujeitos perceberem sua singularidade e seu próprio fechamento: Assim, brancos acreditam que suas especificidades e particularidades são universais, e que as posições  culturais próprias da branquitude são neutras.

Maria Aparecida Bento argumenta que os brancos em nossa sociedade agem por um mecanismo que ela denomina de “pactos narcísicos”, alianças inconscientes, intergrupais, caracterizadas pela ambiguidade e, no tocante ao racismo, pela negação do problema racial, pelo silenciamento, pela interdição de negros em espaço de poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica e política do negro no universo social. Assim, a branquitude é “um lugar de privilégio racial, econômico e político no qual a racialidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de experiências, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade”.

Desta forma, fica evidente que a branquitude é um lugar de poder e vantagem em uma sociedade que se estruturou silenciosamente sobre raça para dividir desigualmente recursos materiais e simbólicos. Assim, é preciso que brancos quebrem o pacto e, além de admitirem privilégios, abram mão deles. Contudo, para uma real transformação no tecido social brasileiro, precisamos que haja – além dos sujeitos brancos serem precursores  de mudanças em seus micros e macrolugares de poder e atuação – uma mudança estrutural nos valores culturais da sociedade como um todo: é preciso que a branquitude como lugar de normatividade e poder se transforme em identidades étnico-raciais brancas que não tenham o racismo como pilar de sua sustentação. Para isso, é preciso alterar as relações socioeconômicas, os padrões culturais e as formas de produzir e reproduzir a vida e história brasileira. Assim, as políticas públicas voltadas para a igualdade racial, como as cotas, o reconhecimento da história e do espaço do negro e a ação do movimento negro, são essenciais para que os brancos consigam se deslocar da posição de norma e hegemonia cultural, simbólica e econômica.

* Lia Vainer Schucman é Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo com estágio de Doutoramento no Centro de Novos Estudos Raciais pela Universidade da Califórnia. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ativista antirracista  e pesquisadora de Psicologia e Relações étnico-raciais . Autora dos livro “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo” (Annablume 2014) e Famílias Interraciais: tensões entre cor e amor (EDUFBA, 2018)

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Lia participa do Encotro Virtual: Branquitude e Antiracismo, que acontece no dia 30 de junho às 16h, no canal do Youtube do Sesc SP e objetiva refletir sobre conceitos e práticas que são envolvidos na  discussão sobre relações raciais brasileiras, em específico, àqueles nos quais a discussão centraliza o lugar do “branco” nessas relações. O bate-papo faz parte da segunda edição da ação Do 13 ao 20 - (Re)Existência do povo Negro.

Participam deste encontro, também: Naruna de Lima Costa e Petronilha B. G. e Silva. Mediado por Fabiano Maranhão.


Lia Vainer | Naruna Costa | Petronilha Silva | Fabiano Maranhão

Lia Vainer Schucman é Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo com estágio de Doutoramento no Centro de Novos Estudos Raciais pela Universidade da Califórnia. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ativista antirracista  e pesquisadora de Psicologia e Relações étnico-raciais . Autora dos livro “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo” ( Veneta 2020) e Famílias Interraciais: tensões entre cor e amor (EDUFBA, 2018)

Naruna de Lima Costa é uma premiada atriz, cantora, diretora e compositora. Sua atuação se caracteriza pela valorização poética das periferias paulistanas e da presença negra no cenário cultural. Naruna se firma no mundo artístico brasileiro graças ao impacto político e estético de seus trabalhos em teatro, televisão, cinema e música. Suas escolhas de personagens ilustram a resistência à opressão social e aos abismos econômicos do país.

Petronilha B. G. e Silva, professora Emérita da Universidade Federal de São Carlos. Professora sênior junto ao Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas da UFSCAR.  Pesquisadora junto à ao NEAB/UFSCar. Milita junto ao Movimento Negro Brasileiro. Relatora do Parecer CNE/CP 3/2004, do Conselho Nacional de Educação que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Fabiano Maranhão, mestre em educação pela Universidade Federal de São Carlos, membro no NEAB – Núcleo de Estudos Afro Brasileiros da UFSCar e assistente técnico da Gerência de Estudo e Programas Sociais do Sesc São Paulo.

Diante da covid-19 e do distanciamento social, a ação Do 13 ao 20, acontece nas redes e plataformas digitais do Sesc São Paulo e de suas unidades da capital, interior e litoral. Saiba mais em www.sescsp.org.br/do13ao20

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Ação do Sesc São Paulo, que abre um espaço para troca de ideias nos mais variados campos de atenção das questões do contemporâneo, daquilo que nos sustenta enquanto sociedade e enquanto cidadãos. Assista em youtube.com/sescsp.

A ação se soma às atividades que vêm sendo realizadas para manter a missão educativa do Sesc ativa na internet, no período em que as unidades permanecem fechadas para prevenção ao coronavírus. Fique #EmCasaComSesc e acompanhe o portal, as redes sociais do @SescSP e das unidades.