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Educação midiática

Foto: Michell Santana
Foto: Michell Santana

Basta um sinal sonoro ou visual na tela. Você recebeu mais uma notícia por WhatsApp, pelas redes sociais, caixas de e-mail, podcasts... Acredita nela ou não? Como o tempo é curto para se atualizar sobre o que está acontecendo no país e no mundo, na maioria das vezes, nem sequer fazemos uma curadoria desse intenso volume de informação. Neste período, então, em que há uma exacerbada quantidade de reportagens, notas e artigos sobre o novo coronavírus, discernir entre uma notícia verdadeira e outra falsa pode até salvar vidas. Mas como peneirar esses conteúdos? Propagar fake news é exercer liberdade de expressão? Para lidar com essas questões, a alfabetização midiática vem se tornando uma ferramenta primordial para aprender a ler de maneira crítica. A partir dela, nos tornamos capazes de debater e compartilhar conteúdo com responsabilidade para atuarmos como cidadãos. “Não se trata, simplesmente, de ler sem interpretar ou comprar aquela informação que chega sem fazer perguntas. Ela é verídica? Qual seu propósito? De onde vem? Para que vem? A quem interessa? Porque, se você ler e não fizer essas perguntas, você será manipulado”, ressalta a presidente executiva do Palavra Aberta, Patricia Blanco. Criado em 2010, esse instituto sem fins lucrativos promove a liberdade de expressão e informação como pilar fundamental de uma sociedade avançada e sustentável. Entre outras atuações, o Palavra Aberta criou em 2018 o programa EducaMídia, voltado a professores e alunos, com o objetivo de fornecer suporte e ferramentas para que crianças e jovens desenvolvam as habilidades necessárias para consumir informação de forma segura e responsável. O projeto conta com o apoio do Google.org, braço de filantropia do Google, e nasceu como um desafio à poluição informacional, à fusão dos papéis de consumidor e produtor de conteúdo e ao aumento da intolerância.

 

Qual a importância da liberdade de expressão?

A liberdade de expressão é um direito humano fundamental, amplamente valorizado e defendido desde a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, quando o artigo 19 trouxe a questão da liberdade de expressão como um valor fundamental para o desenvolvimento do cidadão. Se a gente considerar a liberdade de expressão no âmbito nacional, a gente viveu durante muitos anos um período de restrição à liberdade, na verdade, de não liberdade. O período de censura era de restrição total. Você tinha questões de censura estabelecidas principalmente nas artes, no jornalismo, mas também uma censura do próprio indivíduo, que não podia se manifestar. Ele não podia declarar abertamente qual era sua posição política, religiosa e tantas outras questões do individualismo do cidadão.

Que mudanças houve depois que a Constituição de 1988 estabeleceu o direito à liberdade de expressão?

De lá para cá, temos um processo em que primeiro se consolida o direito. Aí, ele passa a ser efetivado e começamos a ver um aprendizado. O primeiro grande exemplo dessa liberdade utilizada na prática foi com as manifestações de 1992. As pessoas vão para as ruas e começam ali um processo de experimentação dessa liberdade. Os anos se passaram e ficamos com “uma barriga” até que, em 2013, volta a manifestação pública nas ruas e uma nova experimentação dessa liberdade, já na esteira de um ambiente proporcionado pelas redes sociais. Então, ali você passa a exercer a sua liberdade de expressão não só na praça pública, mas também na internet. Você amplia os horizontes de liberdade. Nessa ampliação, acaba-se criando um ambiente em que se tem de tudo. A opinião de qualquer um de nós agora é publicada na internet para todos lerem, com um poder de difusão muito maior. Ou seja, atingimos muito mais gente a partir da tecnologia, mas também criamos espaços para utilização dessa liberdade com outras tintas, vamos dizer. Temos aí uma quebra: há uma liberdade, mas ela também está sendo utilizada para outros fins que não o da responsabilidade, da cidadania e da democracia.

Ou seja, nas redes sociais, há um cenário em que todos se transformam em um “eu-mídia”.

Esse ponto é interessante. O princípio da liberdade é a base do Palavra Aberta, instituto criado para defender e promover a liberdade de expressão. A gente explica que a culpa não é da tecnologia, mas do ser humano que está operando essa tecnologia. Operando de uma forma para a qual ele não foi preparado em termos de cidadania, de educação para a democracia. E em termos de responsabilização da sua opinião, jogada nesse ambiente que tem um poder de disseminação mais ampla. É como se estivéssemos falando num megafone que tem a capacidade de atingir o mundo. Claro que nem todo conteúdo atinge o mundo, mas alguns, se bem colocados, acabam atingindo uma grande quantidade de pessoas que movimentam esse ambiente.

Sendo assim, acompanhamos uma nova forma de produção e de consumo da informação?

À medida que as redes sociais democratizaram o acesso também houve uma mudança na forma como se consome e produz informação. Éramos simples consumidores passivos de uma informação, num ambiente em que o máximo de proatividade que tínhamos era ligar a TV e mudar de canal, ou ir até a banca e comprar uma revista, um jornal, nos quais, no máximo, havia o espaço para a carta do leitor. E de uma hora para outra – se formos considerar o Facebook, no Brasil ele existe fortemente há dez anos – a gente passou a ter um poder de disseminação e de produção de conteúdo. Como você disse: hoje somos mídia, consumimos e produzimos sem ter tido uma educação para tal. Sem chamar nossa atenção para o impacto de um boato nas redes. E esse impacto está agora reverberando nesse ambiente de desinformação em que vivemos.

A liberdade de expressão pode ser capaz de ampliar um ambiente de desinformação?

Não. A liberdade de expressão não é um salvo-conduto para ofensa. Ela é um exercício da crítica, ou seja, as pessoas podem ter opiniões divergentes, mas há um esforço para o diálogo. No entanto, o que acontece hoje é que muitos estão utilizando essa liberdade de maneira extremamente danosa para o ambiente e gerando algo ainda mais danoso. Quando você posta um comentário na sua rede social dizendo que não gosta de azul, e você tem o direito de não gostar do azul, vem uma horda de pessoas a favor do azul que começam a te atacar, tentam quebrar sua estabilidade emocional, xingam, fazem memes etc. Dessa forma, estão trabalhando para que a pessoa que não gosta de azul pare de postar e pare de participar da discussão, o que gera uma autocensura, e isso é grave. E aí, nesse ambiente, surgem grupos chamados de “milícias digitais”, que atuam com o objetivo de diminuir as vozes plurais e diversas para que haja um pensamento único.

Nesse aspecto, estamos vivendo em um ambiente dominado por poucas vozes?

Há pessoas que passam a criar conflitos que não descem aos fatos. Você pode provar que aquilo é falso, que aquela informação foi forjada, que aquela imagem foi adulterada, mas há esse grupo de pessoas que não está interessado na verdade dos fatos. Ele está interessado na informação que reforça seu viés de confirmação, que reforça sua bolha, crenças e ideologias. Esse é o ambiente da pós-verdade, palavra que o dicionário Oxford elegeu em 2013 como a palavra do ano. E o que significa pós-verdade? Quando crenças e ideologias superam os fatos. Então, esses grupos – e são minorias organizadas –, por causa deste poder de disseminação da informação, acabam tendo uma força muito maior do que tinham fora das redes. São pessoas que estão ali para atacar e desestabilizar o sistema de informação. Aí que vem um ponto extremamente relevante, na ausência [de outras vozes] o que sobra é a narrativa daquele grupo.

Como se forma uma bolha informacional?

Ela acontece porque você tem o grupo de pessoas que você segue e os seus temas de interesse. Então, eu me interesso por jogo de futebol, clico em jogo de futebol e a rede social, por meio desses algoritmos, vai aprendendo. Há uma inteligência artificial ali que vai aprendendo qual é meu comportamento e me oferecendo mais conteúdos do meu interesse. Só que isso gera o efeito bolha, porque os algoritmos só vão mostrar conteúdos que reforçam meu viés de confirmação. Conteúdos que reforçam meu ponto de vista. Então, de novo, é nossa a responsabilidade de furar a bolha, de ter algo que a gente chama de “dieta informacional balanceada”. Do mesmo jeito que temos uma dieta alimentar rica em vários alimentos, a gente tem que ter uma dieta informacional balanceada. Se eu sigo o partido X, é bom seguir o crítico desse partido para comparar. Se eu sigo o jornalista tal, vou seguir outro que pensa diferente. É preciso ter uma dieta informacional plural e diversa para sair dessa bolha.

No entanto, um excesso de informações também prejudica essa dieta informacional?

O que vejo é que o volume de informação está gerando um cansaço emocional brutal. E esse cansaço emocional faz com que pessoas que tenham interesse em debater, em dialogar, em melhorar a sociedade se ausentem do debate. Essa ausência de quem tem um pouco mais de senso crítico acaba fragilizando todo o sistema. O que a gente precisa é combater com veemência qualquer tipo de agressão. Falando, denunciando e indo atrás para responsabilizar. Fazendo com que as pessoas entendam que elas também são responsáveis e que elas precisam parar e tomar consciência do mal que estão causando.

De que forma?

Você não sabe identificar o que é uma matéria jornalística, um post patrocinado, um conteúdo viral, uma publicidade, uma notícia manipulada, uma informação fora de contexto... Está tudo ali junto e misturado. Então, o que a gente busca com o programa EducaMídia é mostrar essas diferenças de gêneros. É fazer com que o professor entenda e passe isso para os alunos. A gente entende que esse aluno que tem o discernimento e o senso crítico vai produzir conteúdo com mais responsabilidade e ter uma participação mais ativa na sociedade.. Vai analisar aquela imagem ou texto antes de compartilhar. Por isso, buscamos formar professores, para que entendam e saibam interpretar diferentes conteúdos.

Como é esse trabalho com os professores?

É um desafio. Já formamos mais de sete mil professores – tanto no ambiente online quanto no presencial, com grupos de professores que chamamos de multiplicadores, porque eles vão levar conhecimento a outros professores. O que a gente tem destacado é que nós não estamos entrando numa questão política e ideológica. A gente está entrando na seguinte questão: dar competência para que o cidadão possa pensar por ele mesmo. É um empoderamento do cidadão na medida em que ele sabe interpretar aquela informação e sabe participar ativamente. Com essa abordagem, os exemplos que usamos nas formações e planos de aula tentam sair dessa discussão polarizada, política e ideológica. Porque se a gente cai na polarização, perde-se o espaço de conversa. Então, usamos exemplos que afetam a todos.

Poderia exemplificar?

Por exemplo, existe uma resistência grande, a gente já percebeu, em relação ao papel da imprensa. Durante anos, a imprensa foi atacada e o jornalismo profissional foi perdendo credibilidade. No ambiente de educadores isso é muito forte. E aí o que a gente tenta expor é: O que é a imprensa e qual é o papel do jornalismo profissional? Quando falamos de fake news, explicamos os formatos e diferenciamos os conteúdos. Mostramos o papel do jornalismo profissional, como ele funciona, e quais são os métodos para a produção de uma matéria jornalística. Mostramos que os erros jornalísticos existem, só que o jornalismo profissional tem o compromisso em trazer a verdade dos fatos. Aí você vai quebrando esse bloqueio, criando um ambiente que “baixa um pouco a temperatura” [dos conflitos] até um entendimento do papel do jornalismo.

Mesmo assim, por que se compartilham conteúdos falsos?

O conteúdo falso afeta o psicológico, afeta o emocional. Você recebe uma mensagem de WhatsApp de um círculo próximo de confiança: “Vacina de febre amarela causa mortes no interior de São Paulo”. Imediatamente, você fica com medo, com receio e indignado porque as autoridades deixaram isso acontecer. Aí, você avisa o maior número de pessoas a respeito. Hoje as informações que são produzidas com essa característica têm um título chamativo, são muito bem embaladas e usam dados que você jamais vai checar. Então, você valida a informação naquele momento e compartilha. Ainda tem essa questão do círculo próximo: “Se a minha tia me mandou, é porque ela está preocupada comigo”. Tem quem continue enviando esse tipo de informação com o argumento: “Pode ser verdade”.

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) lançou, recentemente, um programa de enfrentamento à desinformação no período eleitoral. Criaram uma campanha muito boa que diz: “Na dúvida, não compartilhe”. E o que a gente estava fazendo? Na dúvida, a gente estava compartilhando.

Há maior consciência desse comportamento?

É um processo longo. Vai demorar até que esse ambiente informacional seja melhor. A questão de criar uma lei de combate a fake news, no entanto, incorre em outro problema: na restrição à liberdade. Há o intuito de resolver um problema e acaba-se provocando outro mais danoso. Já temos agências de checagem. A própria BNCC (Base Nacional Comum Curricular) na aprovação do Ensino Fundamental 2 e do Ensino Médio abriu espaço para tratar desse tema de maneira mais consolidada. Dentro do ensino de Língua Portuguesa, foi criado o campo jornalístico midiático, que tem na sua ementa a questão da análise crítica da informação, a diferenciação de conteúdos e até as fake news estão lá descritas, na BNCC. Aí abre-se espaço para entrarmos nesse tema.

Podemos dizer que a educação midiática mira contra a disseminação de fake news?

Ela não serve só para combater fake news. A educação midiática serve para muito mais, porque ao disseminá-las há uma questão ética que precisamos discutir. Entramos no eixo participação. Se eu sei que aquele conteúdo é falso, por que compartilho? Por que quero prejudicar alguém?

E, se quero prejudicar alguém, estou sendo antiético com essa pessoa. Então, acho que temos que chamar a atenção para algo maior. Uma coisa que funciona é: seja o estraga-prazer do grupo de WhatsApp. Questione. Pelo menos um ponto de interrogação você vai ter colocado.

No entanto, a pessoa que age racionalmente não ganha tantos likes quanto uma que publica conteúdos sensacionalistas. E os likes viraram uma moeda de valor e de troca.

Você tem um grande número de pessoas que não são monetizadas, que não são pagas por ter likes, mas que querem ter o maior número possível para ter repercussão, para serem reconhecidas, ouvidas. E essa é a diferença dos influenciadores digitais, eles são monetizados a partir da quantidade de likes. Aí, realmente, é um processo de quanto mais sensacionalista for, melhor. Quanto mais chocante for, melhor. Voltamos à questão: “A gente está dando like para conteúdos sensacionalistas?”. É preciso entender que, quando fazemos isso, estamos jogando “óleo na fervura”.

Se a gente quiser baixar a temperatura, a gente vai ter que buscar algo mais racional. É o caso do jornalismo policial. Se a gente continuar assistindo a programas policialescos que mostram uma pessoa sendo morta na rua, a gente vai continuar dando audiência para isso. Essa questão levanta uma decisão sobre qual sociedade a gente quer ser.

Tendo em vista o avanço da tecnologia, a disseminação de um conteúdo sensacionalista é provocada por robôs?

Esse é um ponto relevante porque temos dois ângulos. Primeiro, um estudo do MIT (Massachusetts Institute of Technology), publicado na revista Science [publicação científica editada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência, considerada uma das revistas acadêmicas mais prestigiadas do mundo], que mostrou que as notícias falsas têm um poder de consumo 70% maior que as verdadeiras. Esse estudo trouxe um ponto que acho super-relevante: o papel do ser humano na disseminação desse conteúdo. E o papel do ser humano é extremamente importante para uma segunda questão: é a partir do engajamento humano que os robôs começam a atuar.

Então, o disparador do robô é o ser humano. Se, por exemplo, um assunto não ganhou dimensão, não teve compartilhamento, os robôs não entram. Eles só entram quando começa a haver um volume de publicações maior, aí eles começam a atuar.

Nesse caso, além de um novo comportamento dos usuários da internet, há outra medida a ser tomada?

Aí cabe às plataformas digitais combater perfis falsos nas redes sociais para melhorar o ambiente informacional. Mas o fator humano, ele é o disparador do robô. Aí vem um ponto que a gente coloca: é responsabilidade de todos nós. Se nós queremos melhorar o ambiente informacional, isso tem que partir da gente. Contas falsas, perfis falsos e robôs precisam ser combatidos pelas empresas de tecnologia, pelas grandes plataformas, para limitá-los e tentar retirá-los. Excluí-los totalmente não vamos conseguir, mas dá para ter um caça-robô empenhado para ir limpando esse ambiente.

Você se considera otimista quanto a uma mudança desse cenário?

Acho que esse é um processo que estamos vivendo e sou otimista. Uma pesquisa do jornal Folha de S.Paulo divulgou que 62% das pessoas acreditam na checagem da informação, que elas vão atrás de fontes confiáveis e não querem entrar em brigas políticas. Então, somos 62%. Somos a maioria. Por isso a gente não pode se ausentar desse debate, nem se eximir dessa responsabilidade.

Qual seria o grande desafio da sociedade hoje em relação à prática da liberdade de expressão?

A gente precisa achar um ponto de equilíbrio, que é ter liberdade, sim, mas atuar com liberdade e responsabilidade. A gente tem que participar melhorando o nível e colocando travas em ofensas. Ou seja, qual é nossa postura como cidadãos? Como atuamos dentro e fora do universo online? Somos um ser só, não há uma persona ali nas redes sociais e outra fora. Nosso trabalho é fazer com que a gente pense um pouco sobre isso. Essa é uma discussão que tem que ser feita a partir de casa. A educação midiática tem que começar em casa. E é uma educação para a vida. Você pode mudar a tecnologia, o governo, mas o princípio ético, moral, de responsabilidade e de cidadania tem que seguir para a vida toda.

 

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