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Futuro incerto

Foto: Daniel Alambert
Foto: Daniel Alambert

Valorizar o presente. Repensar trabalho e ócio. Ressignificar relações sociais. Essas são algumas reflexões manifestadas por parte da população mundial neste momento crítico da história. Além dessas questões que buscam formular uma outra normalidade pós-pandemia, para o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Francisco Alambert, é ainda mais importante “certa confiança na ciência e na razão, sobretudo política, do que ‘paz de espírito’ ou ‘estoicismo’”. Pesquisador na área de História Social da Arte e da Cultura, Alambert é cauteloso ao levantar possíveis resultados de um porvir: “Se essa crise fizer lembrar a importância crucial para qualquer coisa que chamemos de humanidade, de existir saúde pública, universal e gratuita, já será para se comemorar”. No entanto, o professor aponta que uma das consequências dessa pandemia provocada pelo novo coronavírus é, de fato, anterior ao atual contexto, e vem ganhando força. “Muitos dos que podem viver no ‘home office’ acabaram de descobrir isso: já são trabalhadores ‘24/7’ [24 horas por 7 dias]. A pandemia não criou esse estado, só o acelerou”, disse.

 

Sobre o isolamento social por conta da pandemia hoje, um pensador como Sêneca e seuolhar sobre a valorização do presente, ele mesmo acostumado às pestes comuns a Roma, ainda traz uma reflexão que serve como parâmetro?

Não sei se nos tornamos mais “estoicos” [alguém caracterizado pela rispidez; que demonstra resignação diante de alguma situação trágica] por conta do confinamento. Certamente não como os romanos. Na vida contemporânea, as ideias de ação e confiança em si estão tomadas pela autoajuda. Hoje precisamos bem mais reativar certa confiança na ciência e na razão, sobretudo política, do que “paz de espírito” ou “estoicismo”.

 

A situação atual, com o isolamento forçado, colocou a questão da morte como tema cotidiano. Para uma sociedade acostumada a “adiar” a morte, tal impossibilidade traz algum aprendizado?

O isolamento pandêmico coloca a morte como uma fantasmagoria, realmente. Mas não há novidade. Toda a modernidade, sobretudo no século 20, pode ser lida como a era do extermínio, das guerras, da morte. O desejo de “adiar” a morte deve ser entendido nesse contexto como uma reação (além, é claro, das promessas técnicas de longevidade trazidas pela ciência).

 

O homem contemporâneo está moldado para trabalhar e produzir em seu cotidiano, como analisou Foucault. De repente, seu cotidiano é reduzido ao espaço doméstico. O que essa nova realidade implica?

Foucault pensava, poderosamente, em termos de disciplinarização organizada pelos saberes constituídos em micro e macropoderes. O espaço doméstico é apenas parte disso. Nesse caso, Marx é mais instrutivo. O sujeito do mundo neoliberal é condicionado para o trabalho constante, para uma produtividade e insegurança jurídica que o faz viver para trabalhar, tanto faz se em casa ou fora dela. Só não trabalhamos quando dormimos – por enquanto (quem dorme com o celular já está trabalhando). Há um livrinho genial de Jonathan Crary, 24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono (Ubu Editora), que explica esse processo e sua “ciência”. Muitos dos que podem viver no “home office” acabaram de descobrir isso: já são trabalhadores “24/7” [24 horas por 7 dias]. A pandemia não criou esse estado, só o acelerou.

 

Fala-se bastante em um “novo normal”, o novo cotidiano pós-pandemia. Uma pandemia como a atual é capaz de mudar valores? Por exemplo, o homem será mais solidário?

Está na moda especular que sim. Gosto dessa disposição em sonhar. Mas eu creio que não. O fim da pandemia causará alguma inflexão profunda no capitalismo global (a única realidade que une todo o planeta)? Se a resposta for não, o novo normal será a volta ao normal com mais medo e desconfiança. Se essa crise fizer lembrar a importância crucial para qualquer coisa que chamemos de humanidade, de existir saúde pública, universal e gratuita, já será para se comemorar. Se pais, imbecilizados e consumistas, entenderem a importância do professor e da escola, já será para se comemorar. Se descobrirem que seus filhos precisam ler livros como eles mesmos nunca o fizeram, já será para se comemorar.

 

QUALQUER UM QUE TENHA UM CELULAR OU

COMPUTADOR ESTÁ TRABALHANDO O TEMPO TODO

 

O isolamento também tem sido visto como redução de liberdade. O homem contemporâneo, com tantas distrações, é capaz de viver consigo próprio?

Mário Pedrosa [escritor, jornalista e crítico de arte brasileiro, 1900-1981] dizia que a sociedade moderna (ele falava isso no final dos anos 1960) era uma cultura de “extrovertidos”. Por isso, seria impossível que a arte confrontasse essa cultura em seus termos. Ela deveria ser o lugar onde esse sujeito tivesse o direito de se “introverter” para criar, repensar, imaginar livremente. Mas essa utópica arte libertária perdeu feio a disputa com a indústria cultural e o mercado. Solidão e anonimato são “sentimentos” modernos, nasceram com as grandes cidades e as multidões. O sujeito contemporâneo, entretanto, não é mais capaz de ficar sozinho, nem ser anônimo na “massa”. Ele é incapaz de se distrair criativamente, livremente, como sonhou Pedrosa. Tem que estar plugado, conectado, pronto todo o tempo para ser convocado a qualquer tempo. A reclusão não muda isso, apenas aprimora. Creio que os relatos de aumento de violência doméstica, de separação de casais, de brigas entre pais e filhos são sintomas dessa nova prisão.

 

Esse aumento de violência doméstica contra as mulheres mostra que a questão de gênero diante da atual crise permanece em seu padrão mais arcaico de patriarcado?

De todas as utopias revolucionárias da modernidade aquela que se realizou mais profundamente foi o feminismo. Nesse sentido, é a maior conquista da “humanidade”. A posição sociocultural das mulheres nunca mais será como era há apenas 100 anos. Mas o “feminismo do homem” não acompanhou essa espetacular mudança histórica. A revolução feminista ainda está longe de se completar e as feministas sabem disso. Mas o patriarcado, ainda que tenha havido mudanças consideráveis desde a segunda metade do século 20, não chegou sequer à metade do caminho. É triste que no isolamento pandêmico vejamos o aumento desse arcaísmo violento, mas é bom que se fale sobre ele para atacá-lo e nunca mais naturalizá-lo.

 

Podemos dizer que outro questionamento que veio à tona neste momento é sobre o papel do corpo na contemporaneidade?

Isso ainda não dá sequer para arriscar um palpite. O corpo na contemporaneidade vem há muito tempo sofrendo transformações e normatizações. Ele veio se tornando, especialmente para as mulheres, um campo de propriedade política libertária: o meu corpo, o meu desejo, os meus direitos. Por outro lado, o corpo vai se tornando, dentro da indústria cultural, um lugar de normas repressivas: meu corpo tem que ser assim ou assado, tem que ser magro, tem que ser saudável, tem que se parecer com um corpo idealizado. A isso se relacionam dois outros fenômenos temerários: a intervenção nos corpos pela genética e os corpos transformados para caber nas novas formas de trabalho. Porém, há ainda outro lugar para os corpos na contemporaneidade: os corpos “matáveis”. Como vem refletindo de modo profundo e categórico o filósofo italiano Giorgio Agamben, o mundo contemporâneo cria cotidianos campos de concentração onde a vida é desprotegida de tudo: as periferias das grandes cidades, os diferentes campos de concentração no Oriente Médio, campos de refugiados, os imigrantes que circulam em desespero pelo mundo, os africanos morrendo de Aids e de fome. A explosão atual de manifestações nos Estados Unidos surgiu justamente a partir de uma vida tão “matável” (a dos negros) que pode ser exposta para o mundo todo. Uma vida tão desprezada que pode ser encerrada pelo sufocamento causado por um policial branco que tranquilamente mantém a mão no bolso (nenhum artista seria capaz de elaborar uma imagem tão perversa) significa a percepção e a reação a este mundo no qual a vida dos deserdados está nua. A negação disso pelo povo na rua é um alento. Porém, a pandemia e sua desigual distribuição de morte não foge ao esquema.

 

SOLIDÃO E ANONIMATO SÃO “SENTIMENTOS” MODERNOS,

NASCERAM COM AS GRANDES CIDADES E AS MULTIDÕES

 

A pandemia, de modo geral, aumentou a sensação de insegurança da sociedade. Não apenas pela doença, mas pelas incertezas sobre o futuro. A palavra medo é muito repetida. No entanto, o medo em diferentes graus sempre permeou a história da humanidade e levou pensadores a importantes reflexões.

Há muitos e ótimos historiadores que fizeram a história do medo no Ocidente. Recentemente, podemos pensar o medo como personagem fundamental do mundo pós-Segunda Guerra. Medo do comunismo, medo do feminismo, medo dos negros, medo das revoluções e, sobretudo, medo da aniquilação do mundo pela guerra nuclear. Apenas este último medo parece ter desaparecido do horizonte (falsamente, pois a questão nuclear nunca foi tão perigosa quanto hoje). O neoliberalismo é por definição uma economia e uma cultura do medo e da insegurança. A ecologia, com toda a razão, lembra o medo da aniquilação do planeta pelo “progresso”. O medo da aniquilação virótica vem se somar a todos os outros. De minha parte, temo mais a aniquilação da economia mundial pela crise do capitalismo financeiro desregulado. Já aconteceu em 2008. Acontecerá novamente. Mas, se políticas de saúde universais (não privadas) forem fortalecidas para enfrentar os vírus e os medos, já será um ponto positivo.

 

Foto: Daniel Alambert

 

Se de um lado fala-se em solidariedade, a sociedade de agora tem convivido com uma espécie de normalização do ódio e da reafirmação de preconceitos. Seria uma espécie de medo diante das mudanças?

Há medos (como falei acima), mas a normalização do ódio não se explica apenas por eles. O ódio, a guerra de todos contra todos, é resultado da dessolidarização social, da desigualdade como um valor ou como um estado “natural”, da precarização do trabalho regulamentado (quando não de seu fim). Um mundo que nunca foi tão rico para tão poucos e nunca foi tão miserável para tantos poderia ser um mundo de paz e amor? A partir do final do século 20, pela primeira vez desde a Revolução Industrial, os jovens terão uma vida pior que a dos seus pais (isso nunca tinha acontecido nem nos Estados Unidos nem no Brasil). Como não odiar o presente quando ele não lhe promete um futuro?

 

RECENTEMENTE, PODEMOS PENSAR O MEDO

COMO PERSONAGEM FUNDAMENTAL

DO MUNDO PÓS-SEGUNDA GUERRA

 

Questiona-se bastante sobre o que seria verdade e mentira na contemporaneidade. A verdade deixou de ser um valor?

De novo: a desvalorização da vida, a descrença no futuro (com toda a razão) e a certeza da imperiosa desigualdade como um valor intransponível alteram a “verdade”. Se não há futuro, se não há utopia ou transformação, a verdade é uma “narrativa” entre outras. Eu gosto do bom e velho conceito de ideologia. Como disse perfeitamente Roberto Schwarz [professor e crítico literário brasileiro], ideologia é o engano bem fundado nas aparências. Hoje, o “engano” ou a autoilusão (mesmo por interesse de classe) é o que desapareceu. Pois agora se mente sabendo que se mente porque a verdade não vai mudar substancialmente o mundo. Se o mundo é fake, se o corpo é fake, se a esperança é fake por que a “verdade” não seria também fake? Esse niilismo [doutrina filosófica que considera que as crenças e os valores tradicionais são infundados e que não há nenhum sentido ou utilidade na existência] tem muito a ver com o ódio de que falamos. O nazismo se alimentou dele.

 

Junto com a pandemia vieram as modificações no trabalho – como o teletrabalho. As últimas gerações foram moldadas para trabalhar num padrão que agora se vê eclipsado. Ao mesmo tempo, fala-se numa espécie de obsolescência do ser humano diante das máquinas. O homem está frágil em relação a suas próprias invenções?

Historicamente, o medo das criações técnicas é parte fundamental da modernidade. Deu ótima literatura desde o romantismo, com o Frankenstein (1818), de Mary Shelley, até a distopia das ficções científicas. No início da industrialização, os novíssimos operários destruíram máquinas temendo que elas lhes roubassem o trabalho. Eram os luddistas. Pode-se pensar que lutaram por uma causa perdida, as máquinas tinham vindo para ficar, eram produto da mesma forma (o capitalismo industrial) que criou também o trabalhador assalariado. Se o luddismo [movimento trabalhista na Inglaterra entre 1811 e 1816, que se caracterizou pela destruição de máquinas por trabalhadores] tinha um aspecto “conservador” (e desesperado) no sentido de querer conter o novo tempo, por outro lado, ele lançou as bases da crítica a esse novo tempo. Os trabalhadores existiam, eles mostraram, não eram “máquinas” descartáveis ou mesmo destruíveis. Eram seres de direito. O capitalismo industrial europeu acumulava capital com trabalhadores e máquinas, no mesmo momento em que nas Américas acumulava com o oposto: com escravos tratados e produzindo da forma mais “antiga” e bárbara de exploração. E um se alimentava do outro. Duzentos anos depois, essa relação entre trabalho, técnica e direitos mudou novamente, mas não para “melhor”. Na verdade, explodiu. Como já disse, de um lado a robótica ou a internet não apenas expulsam trabalhadores, mas os cancelam. De outro, mesmo assim, todos trabalham cada vez mais: quando você tira extrato e realiza mil operações no homebanking, quem está trabalhando para quem? Qualquer um que tenha um celular ou computador está trabalhando o tempo todo: para si mesmo, para o patrão, para o aplicativo, para a propaganda. Quando você vê na rua um jovem negro pedalando uma bicicleta compartilhada carregando nas costas uma gigantesca mala (como os escravos carregavam um tabuleiro nas costas) com o nome de um aplicativo recebendo centavos por cada pizza entregue, que tipo de “trabalho” é esse? Tem mais a ver com o trabalhador assalariado do século 19 ou com o escravo de ganho das ruas do Rio de Janeiro? Nesse sentido, os neoescravos (da tecnologia ou do trabalho medonho) são obsolescentes da mesma maneira que a indústria cria seus computadores e celulares: como obsolescências programadas. Aqui é o caso de lembrar novamente dos corpos “matáveis”. O capitalismo contemporâneo (neoliberal) é “luddista” à sua maneira: não destrói máquinas; destrói pessoas. Como o escravismo.

 

É TRISTE QUE NO ISOLAMENTO PANDÊMICO VEJAMOS

O AUMENTO DESSE ARCAÍSMO VIOLENTO, MAS É BOM

QUE SE FALE SOBRE ELE PARA ATACÁ-LO E NUNCA MAIS NATURALIZÁ-LO

 

Olhando em retrospecto outros momentos agudos da humanidade, na fase atual a religião parece ter perdido muito de sua centralidade na sociedade.

A modernidade liberal acreditou de fato que as religiões seriam uma etapa superada pela racionalidade, pelo estado laico, pela técnica, pela informação. Hegel, com seu bom humor esquisito, dizia que o jornal era a oração matinal do homem moderno. Marx, menos ingênuo e mais generoso, pensou que a consciência de pertencer a uma classe internacional substituiria o “religare” místico. O famoso ensaio de Max Weber sobre a ética protestante ser a ética do capitalismo tinha o mesmo sentido. De novo saltando 200 anos, o jornal não é mais a oração das manhãs, mas sim as tais “mídias sociais” (a “mídia tradicional” não apenas definha diante das novas mídias como está sob ataque constante); a “consciência de classe” definhou junto com o trabalho até praticamente desaparecer (o único vestígio dela permanece em certos movimentos identitários que, entretanto, não se definem por classe, mas por raça ou sexualidade); e, por fim, ao contrário da afirmação, a religião em seu sentido mais dogmático, fanático e destrutivo volta solene e macabra: neopentecostalismo, fundamentalismo muçulmano, fundamentalismo judaico, fundamentalismo cristão. Em todo lugar. Inclusive sendo a base de governantes neofascistas.

 

A CIÊNCIA PARECE REOCUPAR SEU LUGAR ILUMINISTA:

SER O OPOSTO DO OBSCURANTISMO QUE HOJE GOVERNA O MUNDO

 

E a relação com a ciência? Há uma maior confiança na ciência como vetor de respostas e soluções?

Neste momento parece que sim, que podemos recorrer à ciência como aliada da vida contra o vírus e contra a boçalidade genocida de governantes, empresários e banqueiros. Fala-se dos médicos e demais profissionais da saúde como a “linha de frente” na “guerra” contra a pandemia. Ou seja, eles seriam a nova vanguarda. Nesse sentido, a ciência parece reocupar seu lugar iluminista: ser o oposto do obscurantismo que hoje governa o mundo. Por outro lado, vemos diariamente médicos agindo na contramão, apoiando barbaridades, tergiversando, jogando pesquisas contra pesquisas. O episódio recente em que a revista Lancet teve que se “retratar” por dar imenso destaque a uma pesquisa justamente sobre hidroxicloroquina, sobre a qual, semanas depois, houve gravíssimas suspeitas de manipulação de dados por um pesquisador dono de uma empresa privada, só piora as coisas. Me lembro de um médico, acho que no Rio Grande do Sul, que se recusou a atender uma paciente porque ela votava em um determinado partido político. Me lembro de médicos fazendo protestos diante de hospital e piadas sobre a morte da esposa de um ex-presidente. Lembro que 45% dos médicos na Alemanha hitlerista eram filiados ao partido nazista e executaram “pesquisas” para matar mais produtivamente em campos de concentração. O melhor que a pandemia pode deixar é que os médicos repensem seu papel e sua ética, que defendam a saúde pública, que defendam a democracia.

 

O PATRIARCADO, AINDA QUE TENHA HAVIDO MUDANÇAS

CONSIDERÁVEIS DESDE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO 20,

NÃO CHEGOU SEQUER À METADE DO CAMINHO

 

Outras pandemias trouxeram modificações na arquitetura e nas cidades – janelas maiores, largas avenidas, menor aglomeração de casas (embora sempre acompanhadas de polêmicas). Cidades europeias que já voltaram mais ou menos ao normal acenam com mais ciclovias e incentivo à caminhada. Algo de bom será deixado pelas marcas da Covid-19?

O que transformou a paisagem das cidades não foram as epidemias. Foram a disciplinarização e a gentrificação. A cidade de Paris, na segunda metade do século 19, bem como o Rio de Janeiro do início do século 20, não eram, de modo algum, exemplos de higiene e saúde, antes o contrário. Mas a reforma urbana brutal iniciada pelo prefeito de Paris em 1850, o Barão de Haussmann, tinha dois propósitos: alargar ruas e criar amplas avenidas para o trânsito e para impossibilitar as barricadas revolucionárias que tomaram a cidade de 1830 até 1848; separar “racionalmente”, organizadamente, os ricos dos pobres, criar literalmente centro e periferia. Nesse processo, surgia uma cidade saudável e higiênica para os ricos (aqui em São Paulo há um bairro que foi construído para a mesma finalidade e que se chama Higienópolis) e outra completamente diferente para aqueles que trabalhavam na cidade “higiênica”, mas moravam na “outra” cidade. Não preciso dizer que as reformas do prefeito Pereira Passos (que estudou em Paris na época de Haussmann) tinham o mesmo sentido. Evitar as constantes epidemias e pragas que assolavam o Rio desde os tempos coloniais era no máximo uma boa desculpa. Essa estrutura da vida urbana nasceu por motivos políticos e só poderá mudar por motivos políticos também. Se o episódio da pandemia servir para melhorar algo dessa estrutura, como os exemplos que você deu, de minha parte, acho muito bom. Muito mais importante, porém, para mudar políticas e cidades, é o povo na rua. Reivindicando a cidade como sua, como bem comum, como comunidade. Como muitos negros e alguns brancos têm feito nas ruas das cidades dos Estados Unidos em meio a uma pandemia que é terrível, mas que não é o pior dos males. Os governantes fascistas é que são.

 

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